A poesia moderna continua a ser um grande mistério
para muitos. Talvez devido a que, nela, o raciocínio sintáctico da língua se
ressente com o contínuo cavalgamento das imagens poéticas, verificando-se aliás
em muitos criadores uma ruptura definitiva com a ordem tanto sintáctica como
semântica.
Mas há um poema de Mário Cesariny muito
esclarecedor quanto ao que seja a «liberdade livre» dos poetas no último século.
Começa o poema, que se lê no Manual de
Prestidigitação, por falar respeitosamente das Obras (literárias), em letra
grande e solene, e da sua majestade – di-lo o título – idêntica às catedrais.
Façamos a paráfrase das primeiras duas estrofes do poema TAL COMO CATEDRAIS:
«Consumada
a Obra fica o esqueleto da mesma
e as
inerentes avarias centrais
entre céu
e terra à espera do descanso
Consumada
a Obra ficamos tu e eu
pensando
frases como: como é possível
o
que foi que fizemos?
ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
onde está a
camisola?
Sim
realmente
onde está
a camisola? Ola
palavra
espanhola que quer dizer-nos: Onda
coitadas
das palavras sempre a travessar fronteiras há tantos anos
não há aí
quem possa dar descanso a estas senhoras?»
Os primeiros dois versos previnem-nos quanto ao
desfasamento entre a idealidade traçada e o conseguimento, algo manco, da Obra;
apesar do extremo devotamento à dita, inerentes
avarias centrais impossibilitam de antemão a sua execução plena, não
obstante se ter insistido, uma e outra vez no processo, ao ponto de diante de
tal esforço ser legítimo esperar-se por descanso. Segue-se a perplexidade
diante da obra falhada e a natural reflexão sobre a extensão das aporias.
E de repente uma pontada de ar frio introduz a
única questão que importa: Onde está a camisola?,
numa significação livre de si mesma - da ordem do poema.
Portanto, o real interceptou o poema, os seus
cálculos, manobras e discursividade, desmontou com o seu acaso o seu encadeamento
lógico, deu-lhe uma imediatez descontínua, estilhaçando em partículas a unidade
de composição.
E o inesperado de Heráclito irrompe de tal forma,
com a dita camisola, que a repetição da pergunta pressupõe já o decalque de um
arrepio. E como se bate o dente e se dividem as sílabas no tiritante frio, a
última naturalmente destaca-se e conforma a
ola, cujo significado imerge do espanhol e duma insuspeita onda (a onda do
arrepio, a onda do mar).
Eis esboroada numa associação livre a seriedade da
intencionalidade primeira – a resolução alquímica da obra –, e o poeta lastima
agora o infatigável, atoleimado, trânsito das palavras, essas senhoras que apostam pouco no vínculo duma relação contínua e
antes fazem o trottoir entre fronteiras.
O poema que começara com um tema prévio ao seu
acontecer (e todo o espírito de seriedade se revê em tal método), estilhaçou-se
paródico, em significações parciais, auto-recriando-se primeiro a partir da
deriva (o desvio) que o acontecimento da
realidade (neste caso, o frio) sempre desponta no poeta que se mantém
poroso às suas incidências, depois pela erupção de um fragmento da palavra, a ola, que, em deslocando-se, já está como
o homem a distanciar-se (em pura perda?) da indivisa inocência/visão original.
Em doze versos de ritmo quebrado e irregular o
poema informalizou-se e tomou as suas próprias rédeas, caminhando por si mesmo,
dispensando-se de recapitular o tema, qualquer tentação mimética, e fazendo juz
à conversa entre palavras, que é
tanto mais livre quanto nele o poeta fez coincidir o pensamento com o que
escondia a sua formulação escrita.
Como avança o poeta Alain Jouffroy, o homem é uma
abertura inacabada, um «lontain intérieur» a experimentar, e quanto mais
liberto de qualquer ideia de si mais se verifica a osmose entre o seu interior
e aquilo que, no exterior, o descentra e desidentifica.
Quando Césariny escreve nas estrofes seguintes:
«O rato
roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia
- frase
entre todas triste, a atentar na significação
Sim
consumada a Obra sobram rimas
Pois ela
é independente do obreiro
No deitar
da língua de fora, no grande manguito aos Autores
é que se
vê se uma obra está completa.»
entretém-se a desmantelar os mitos simbolistas com uma inexcedível força sarcástica. Com a
lengalenga infantil do rato mima o la
musique avant toutes les choses dos simbolistas e a tristeza que aponta à
frase remonta à reminiscência do célebre verso de Mallarmé «a carne é triste, hélas, e li todos os
livros!» que, de ter sido escrito, pôs Satã feliz por um dia.
Contudo, apesar de não ser possível tudo, ainda o
poeta faz do poema criatura (ou uma Arca) autónoma, livre do seu propulsor,
mesmo que, contraditoriamente (e a contradição aqui é tudo), não lhe retire a
responsabilidade:
«Fiquemos
tristes abraça-me nós fizemos tão pouco
E ela aí
vai pelo mar fora cavando a sua avaria!»
A obra (a “Óobra”), como o Espírito e o Vento,
sopram donde querem. Quanto muito, de vez em quando o poeta e o poema
colaboram, ou antes, coincidem:
«(O mundo
é redondo
Talvez a
reencontremos…
-
Esperança cínica e renovadora…)»
A mesma impossibilidade de uma apropriação mágica,
órfica, pelo poema, se repete além disso no amor. Do mesmo modo que Orfeu foi
ao Inferno buscar a sua Euridíce em
vão, tendo caído como a malha na meia na armadilha da sua impaciência, também o
Amor é uma contingência que sobraça o quase, o quase-acontecer, o
quase-ser. Fecha assim o poema, numa distopia, onde às maiúsculas da
promessa, sucedem as minúsculas do relativo amor:
«TU MEU
ÚNICO AMOR MEU
MÚLTIPLO AMOR MEU!
Sim, sim
de facto
Efectivamente
Mas o dia
arrefece
E pálidos pálidos estamos.»
Porque afinal de que é que ambos precisam mais do
que tudo, em primeiríssimo lugar? Duma camisola de lã, mais voraz que o frio -
que por sua vez fora mais voraz que o poema, um frágil vislumbre da Obra...
Embora no fim se constate que o poema, não
obstante ter apenas aludido ao tema (a impossibilidade da construção da Obra
face à inconstância do homem) fez obra a
partir do acaso (da aragem da associação livre), manifestando inclusive uma
arquitectura (daí a presença da palavra esqueleto
no princípio), ainda que numa sequência aparentemente
dispersa.
Ou seja, o poema, sigilosamente, trabalhando a
partir da sua desordem/irracionalidade interna, impôs uma ordem ao caos e modelou-o num outro nível de relação, onde, em liberdade livre, se fez, como diria
Valéry, da inteligência uma festa.
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