terça-feira, 15 de maio de 2012

A LIBERDADE LIVRE: CESARINY

        
A poesia moderna continua a ser um grande mistério para muitos. Talvez devido a que, nela, o raciocínio sintáctico da língua se ressente com o contínuo cavalgamento das imagens poéticas, verificando-se aliás em muitos criadores uma ruptura definitiva com a ordem tanto sintáctica como semântica.
Mas há um poema de Mário Cesariny muito esclarecedor quanto ao que seja a «liberdade livre» dos poetas no último século. Começa o poema, que se lê no Manual de Prestidigitação, por falar respeitosamente das Obras (literárias), em letra grande e solene, e da sua majestade – di-lo o título – idêntica às catedrais. Façamos a paráfrase das primeiras duas estrofes do poema TAL COMO CATEDRAIS:

«Consumada a Obra fica o esqueleto da mesma
e as inerentes avarias centrais
entre céu e terra à espera do descanso
Consumada a Obra ficamos      tu e eu
pensando frases como:     como é possível
                                            o que foi que fizemos?
 ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
                                  onde está a camisola?

Sim realmente
onde está a camisola?    Ola
palavra espanhola que quer dizer-nos: Onda
coitadas das palavras sempre a travessar fronteiras há tantos anos
não há aí quem possa dar descanso a estas senhoras?»

Os primeiros dois versos previnem-nos quanto ao desfasamento entre a idealidade traçada e o conseguimento, algo manco, da Obra; apesar do extremo devotamento à dita, inerentes avarias centrais impossibilitam de antemão a sua execução plena, não obstante se ter insistido, uma e outra vez no processo, ao ponto de diante de tal esforço ser legítimo esperar-se por descanso. Segue-se a perplexidade diante da obra falhada e a natural reflexão sobre a extensão das aporias.
E de repente uma pontada de ar frio introduz a única questão que importa: Onde está a camisola?, numa significação livre de si mesma - da ordem do poema.
Portanto, o real interceptou o poema, os seus cálculos, manobras e discursividade, desmontou com o seu acaso o seu encadeamento lógico, deu-lhe uma imediatez descontínua, estilhaçando em partículas a unidade de composição.
E o inesperado de Heráclito irrompe de tal forma, com a dita camisola, que a repetição da pergunta pressupõe já o decalque de um arrepio. E como se bate o dente e se dividem as sílabas no tiritante frio, a última naturalmente destaca-se e conforma a ola, cujo significado imerge do espanhol e duma insuspeita onda (a onda do arrepio, a onda do mar).
Eis esboroada numa associação livre a seriedade da intencionalidade primeira – a resolução alquímica da obra –, e o poeta lastima agora o infatigável, atoleimado, trânsito das palavras, essas senhoras que apostam pouco no vínculo duma relação contínua e antes fazem o trottoir entre fronteiras.
O poema que começara com um tema prévio ao seu acontecer (e todo o espírito de seriedade se revê em tal método), estilhaçou-se paródico, em significações parciais, auto-recriando-se primeiro a partir da deriva (o desvio) que o acontecimento da realidade (neste caso, o frio) sempre desponta no poeta que se mantém poroso às suas incidências, depois pela erupção de um fragmento da palavra, a ola, que, em deslocando-se, já está como o homem a distanciar-se (em pura perda?) da indivisa inocência/visão original.
Em doze versos de ritmo quebrado e irregular o poema informalizou-se e tomou as suas próprias rédeas, caminhando por si mesmo, dispensando-se de recapitular o tema, qualquer tentação mimética, e fazendo juz à conversa entre palavras, que é tanto mais livre quanto nele o poeta fez coincidir o pensamento com o que escondia a sua formulação escrita.
Como avança o poeta Alain Jouffroy, o homem é uma abertura inacabada, um «lontain intérieur» a experimentar, e quanto mais liberto de qualquer ideia de si mais se verifica a osmose entre o seu interior e aquilo que, no exterior, o descentra e desidentifica.
Quando Césariny escreve nas estrofes seguintes:

«O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da ssia
- frase entre todas triste, a atentar na significação

Sim consumada a Obra sobram rimas
Pois ela é independente do obreiro
No deitar da língua de fora, no grande manguito aos Autores
é que se vê se uma obra está completa.»

entretém-se a desmantelar os mitos simbolistas com uma inexcedível força sarcástica. Com a lengalenga infantil do rato mima o la musique avant toutes les choses dos simbolistas e a tristeza que aponta à frase remonta à reminiscência do célebre verso de Mallarmé «a carne é triste, hélas, e li todos os livros!» que, de ter sido escrito, pôs Satã feliz por um dia.
Contudo, apesar de não ser possível tudo, ainda o poeta faz do poema criatura (ou uma Arca) autónoma, livre do seu propulsor, mesmo que, contraditoriamente (e a contradição aqui é tudo), não lhe retire a responsabilidade:

«Fiquemos tristes abraça-me nós fizemos tão pouco
E ela aí vai pelo mar fora cavando a sua avaria!»

A obra (a “Óobra”), como o Espírito e o Vento, sopram donde querem. Quanto muito, de vez em quando o poeta e o poema colaboram, ou antes, coincidem:

«(O mundo é redondo
Talvez a reencontremos…

- Esperança cínica e renovadora…)»

A mesma impossibilidade de uma apropriação mágica, órfica, pelo poema, se repete além disso no amor. Do mesmo modo que Orfeu foi ao Inferno buscar a sua Euridíce em vão, tendo caído como a malha na meia na armadilha da sua impaciência, também o Amor é uma contingência que sobraça o quase, o quase-acontecer, o quase-ser. Fecha assim o poema, numa distopia, onde às maiúsculas da promessa, sucedem as minúsculas do relativo amor:

«TU MEU ÚNICO AMOR MEU
    MÚLTIPLO AMOR MEU!

Sim, sim de facto
Efectivamente
Mas o dia arrefece
E pálidos pálidos estamos.»

Porque afinal de que é que ambos precisam mais do que tudo, em primeiríssimo lugar? Duma camisola de lã, mais voraz que o frio - que por sua vez fora mais voraz que o poema, um frágil vislumbre da Obra... 
Embora no fim se constate que o poema, não obstante ter apenas aludido ao tema (a impossibilidade da construção da Obra face à inconstância do homem) fez obra a partir do acaso (da aragem da associação livre), manifestando inclusive uma arquitectura (daí a presença da palavra esqueleto no princípio), ainda que numa sequência aparentemente dispersa.
Ou seja, o poema, sigilosamente, trabalhando a partir da sua desordem/irracionalidade interna, impôs uma ordem ao caos e modelou-o num outro nível de relação, onde, em liberdade livre, se fez, como diria Valéry, da inteligência uma festa. 

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