No prólogo do Dicionário Etimológico da Língua Espanhola, de Corominas, diz este académico que em nenhuma outra língua são tantas as palavras fantasmas como na castelhana. E observa Octavio Paz, que nos dá esta informação: «Eu estremeço só de pensar que há palavras que perderam o seu corpo, palavras que flutuam e que não sabemos já o que querem dizer.»
Não é que o não soubesse, que as palavras têm um talo histórico que as alimenta e que depois perdem, secando ou fenecendo, ainda que, ao jeito das estrelas, durem com fantasmas. Sabia-o. Mas chocar com as evidências faz-nos abanar.
Em Moçambique é essa a impressão que tenho quanto ao uso do português: há um fantasma na grelha, que, ainda que viremos para não esturricar, se estiola à vista desarmada. Claro que há, paralelamente, um fluxo de recriação da língua, dado que um rio se faz de muitas correntes desencontradas que se vão compensando a montante e a jusante, porém, se as dinâmicas colectivas têm sempre um lado de sombra, escamoteá-lo parece-me desonesto. Tenho uma idêntica sensação ao assistir a alguns programas populares nos canais de tv brasileira: às vezes coincide o português com o linguajar que ali se exprime, mas, em fundo, esplende outra coisa. Não digo que seja bom ou mau, só constato que por vezes se burla a língua em nome da comunicação, e que nesta batota nem tudo me parece saudavelmente transgressivo. Que se transformem substantivos em verbos pode ser enriquecedor, mas que ao mesmo tempo só se saiba empregar os verbos no infinitivo soa-me a amputação. É natural que as línguas sofram recriações morfo-sintáticas, mas já me traz apreensão o laxismo que lhes avoluma os fantasmas.
De quantas palavras continua a letra no comboio, quando o espírito já saltou fora? Ou perdão, o corpo. Palavras que já só servem para ready-mades, esvaziadas de outro significado que não seja o rasto do seu travestimento, da deslocação. Em Moçambique, por exemplo, todo o estuário semântico associado à palavra democracia está moribundo, apesar das aparências. E num pântano, não só proliferam os miasmas e doenças do catano, nas suas águas insalubres ficam certos talos impossibilitados de se desenvolver, volvem impensáveis. Não sei se as palavras não se assemelharão às pessoas: a partir de determinado mau-estado mostra-se inútil a respiração boca-a-boca, qualquer tentativa de reanimação.
Não podemos baixar os braços, ainda hoje descobri no Rabelais uma expressão lindíssima, posta em desuso, morta para milhões de falantes do português, o termo lúzios: para significar a vista, o olhar - as mulheres esbugalhavam os lúzios e pasmavam, assim se lê no Pantagruel - e de facto pasmo: como se perdeu esta sugestiva tradução do olhar num cardume de peixes luminosos?
Como é que se abandonou um vocábulo com este brilho? Vou fundar um Clube do Amigo dos Lúzios. Se conseguir desenterrar uma palavra de tanta beleza, resgatá-la, devolvê-la ao convívio dos mortais, terei sido finalmente útil, como o sapateiro que remendou as sandálias de Ulisses, a caminho de casa.
Ezra Pound: “ a merda
empesta desde o princípio do mundo os guardadores do depois”.
Franze a testa como o egípcio apreensivo ao ver a nuvem de gafanhotos que se abeira da seara – mas não é um cultor de Ra, e à sua frente só passam chapas repletos de o
velhas da igreja universal. Ele afinal só urina contra a acácia e solta preocupado à passagem do branco: white, um brada quando não mija é o quê?
Apesar de andar cansado de Benjamin e sobretudo dos seus intérpretes, que não se decidem a fazer o desmame, faço minhas algumas das suas formulações, como a que o levava a exigir do marxista (eram outros os tempos) que escovasse a História, a contrapelo? Será o Hollande homem para isso?
REPORTAGEM NA BEIRA/ “Quando
o pangolim aparece ao pé das casas das pessoas, diz-se por aqui, tem presságio:
ou é bom ou é mau” – explica o repórter. Se o filho do edil, nesse dia entala o
seu pangolim no zip é mau, mas se, pelo contrário, escapa de trucidar o seu
dedo gordo no zip é um bom presságio. “Tem sempre presságio”, sabem porquê, conclui
o jornalista: “presságio está sempre amarrado ao pangolim!”. Assim com três
voltas e quatro nós.
Olhem, proponho uma
fábula. Um dia um pangolim quis casar-se com a filha do régulo. A filha do
régulo estava indecisa mas gostava de coisas com escamas. Quando a gente deseja
muito as coisas com escama ou vai de jangada para a Ilha da Páscoa e passa a vida
no mar ou casa com um pangolim. Pode não ser mau casar com pangolim, se não der
diarreia. Se der diarreia é porque o nosso pangolim não era o das profecias.
Eu se vir um pangolim, não
desdenho – escuso de comprar.
Depois dele, Jacques
Maritain empenhou-se em tornar sinónima a “possessão” do oeta do “habitus”
escolástico, e trilha no passo de Eliot. Não por coincidência eram ambos
católicos.
Primeiro esta concepção
reinstaura a maldição do dualismo que é preciso rebater, depois uma lebre se me
levanta: esta aposta de Eliot no banco de coral da tradição não é uma
derradeira e afligida defesa contra o escândalo do incontinente inconsciente
freudiano? A pensar. No excerto do Manifesto do Surrealismo, de Breton, que Mário Cesariny traduziu para os seus Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial há uma deliciosa gralha, que transcrevo: «… quando ia dormir, Saint-Paul-Roux mandava sempre pôr sobre a porta do seu solar de Camaret o seguinte letreiro:”O POETA TABALHA” (pág. 67). Mais correcto não há: o sonho tabalha sem parar.
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