Clemente
Proliferam os que escrevem na mira de afogar o
peixe. Começam a rarear os que levam o sangue à guelra do peixe.
Se alguém debita: “Adalberto viu Rita pela primeira vez na esplanada” e continua nessa
toada, sei de imediato que estou diante de um burocrata do aparo com hábitos de
voyeurismo. Porque nada está implicado naquela frase, nem o narrador, nem as
personagens entre si; nada se desencadeia. Eis-nos em arabescos sobre a
congelada pista dum mundo reificado.
Se, ao invés, o relato se inicia desta forma: ”Os seios dela olharam argutamente para mim”,
o escritor cola-nos diante de uma relação, de algo que se pôs em
movimento e envolve ambas as personagens, sem a intermediação distanciada do
narrador. E a frase imprime, além disso, uma aceleração narrativa: a primeira
hipótese exige mais dez linhas antes de se chegar ao ponto (o telos), nesta hipótese parte-se do
ponto.
Não querer entender isto equivale à pretensão de
ignorar três séculos de conquistas processuais no que à expressão escrita diz
respeito. É muita arrogância para tão pouco sumo.
Mas que fazer se o leitor comum se satisfaz com o
pequeno suborno da preguiça em detrimento do jogo lúdico que lhe exige activar
a inteligência no acto da leitura? E que dizer se à primeira descrição se
associa um registo «realista», tão prenhe da ilusão da objectividade (um mito
positivista) que é uso manter-se em épocas de conformismo?
Contudo, ao inverso do que parece a frase acaba
por nada comunicar e a sua famigerada mensagem é tão vaga como a abstenção do
narrador, que aí não mete prego ou estopa. Encontraram-se na esplanada, e so
what? Que se passa em seguida, quais as motivações das personagens, que as vai
unir ou separar, etc? Foi tudo adiado, a mensagem patina no vazio, ou antes,
processa uma procastinação.
Pelo contrário, a segunda hipótese labora um acto
de economia narrativa: as motivações das personagens imbricam-se na forma da frase,
tornam necessária essa expressão e não outra, e inclusive, de forma implícita,
a frase até nos dá a informação metereológica, pois se fosse Inverno os
escultóricos peitos da rapariga estariam tapados por sobretudos e cachecóis e
não teriam o efeito devastador que aí se adivinham, provocando mudanças na vida
das personagens. Adoptando uma sinédoque, tomando a parte (os seios) pelo todo
(a Gisela, para lhe dar um nome), numa frase menos vulgar, comunicamos afinal
muitíssimo mais, em intensidade, e de chofre.
Como se vê, que me desculpem os desatentos, não
estávamos a falar de seios – ainda que seja exaltante a sugestão de Alexandre
O´Neil de que pela manhã nos deveriam servir seios em vez de pãezinhos quentes
– mas de procedimentos narrativos.
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