terça-feira, 22 de maio de 2012

ARDER COM AS FLORES, A SUL

                                                                      Nolde, red flowers

Os três poemas que abrem o meu livro Piripiri Suite, de 2006, e que explicam a razão do meu "inxílio" a sul.


O NÓ DO PROBLEMA

 Só de um estado se entra e se sai. Em ti, contigo, ouço

a batida do meu sangue. Julgo-te atrás de mim

e desfechas à minha frente um mar de assoalhadas,

és o pavão que abre o leque e recolhe a paisagem.

As formas encobriam a realidade. Antes de ti.
Antes de ti, antes da compreensão de que a pele é a ombreira
onde a que mira o horizonte trinca a maçã reineta.

A tua dentada na polpa que me adoça.


Não há memória nem passado. Há a forma como cantas
e o aceno de te escutar. Modos de evasão
que crescem para dentro.


Antes de ti, só nos objectos despertava. Na extensa respiração
dos talheres. No bocejo dos anéis. No jogging

dos ponteiros. Antes de ti, na ponta dos dedos

nascia uma ilha. Ataduras que isolam.


Dois cientistas trabalham num laboratório. Um deles toca
a mão do outro e faz uma descoberta: “este é o meu corpo”.
Transmite ao outro a equação, explica-lhe que combinações

realizou a fim de obter o resultado. O seu companheiro

deve ter confiança no que está a receber. Mas

recolhe uma informação em segunda mão.

Então toca na mão do outro e repete: “este

é o meu corpo”. Depois toca-lhe o braço.

Etapa a etapa trocam de lugar. Então despertam.


Distintos ecos mas só em ti a montanha se faz sopro

e a minha boca é presença a si mesmo.
 
Por cima da amendoeira os cirros, debaixo a carne,

sobrenatural, que me restaura os dedos

como à água nas cegonhas o voo.



Contigo: seguindo-me a mim mesmo sem nunca
me preceder. Sem ti: os cães da noite

batem portas no meu espírito.
 


A tua ausência escarpa o ar, pesa ancestral

nos reposteiros, ilumina a sujidade

dos abat-jours, ressoa nos livros inertes

como palha, sorve o silêncio da casa, atento

inconfidente a si mesmo – pela primeira vez

imaterial. Aquietar o coração se nada na sensação é fixo?

Só o olho da rã acompanha a velocidade dos movimentos

em ziguezague, hipótese que Deus me sonegou.

A minha intimidade (a tua pedra

de toque) migra e arde a Oriente.



PARTIR, O FORMATO LÍRICO

Será possível que o meu corpo
tenha afinado a lupa
que a tua pele refractava?
É esta a condição do homem:
a sua fronde não esgota
o ciclone, a sua inclinação
para a morte não desabitua
a Primavera. A estação
dos outros, quando não estás.
Eis-me afeito a partir.
Já não receio ferir-me no cabo
em marfim do destino,
no vestígio vivo que alumia
o passo no gume da manhã.


RIR, COM OS NERVOS DA CHEGADA

 Reveja-se o zombie jubilado a sair do avião.
Reencontra-a após cinco meses
de lameiro como vegetal irregular,
e interroga-se: “amo esta mulher,
que frutos arborescemos juntos?”
Abraça-a, enguia miúda, e espanta-se
pela sua nova madeixa branca (o que só
lhe realça os olhos), enleado na doçura
do sorriso com que ela armou o laço
à sua alma apardalada. Imagina-se
fora de toda a distância, sobre a pele
das Índias, como alguém que é orfão
e ao amor pede desplante: o lúbrico
e paleolítico estoiro das fronteiras.

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