Bolas, lembrei-me agora que nesta minha
longa entrevista com o arquitecto José Forjaz não falamos nem de sexo, nem da
crise portuguesa, nem da reforma ortográfica, nem da importância das redes
sociais.
Uma desgraça, vai ser um insucesso.
Coitados dos meus fãs. Coitadas das fãs
do José Forjaz.
Já me imagino no Céu, Siô Pedro, posso
entrar?
Você, responde-me o façanhudo, nem
pensar,
faltou-nos muito quando mais
precisávamos. Até o seu amigo Francisco
Bélard está para ali um cangalho com o
que você lhe fez…
O Francisco, meu deus, o Francisco já morreu?
Não,
mas anda com a maçã-de-adão muito
inchada por causa das vogais mudas
de que fez reserva e culpa-o de não lhe
ter emprestado
no devido tempo as suas cordais vocais
para o armazenamento de algumas,
e ainda por cima o António deixou-se de
histórias picantes…
Um herético quando se reforma só faz dó!
– E mete-me na rua.
Desço ao Purgatório e dou de caras com a
minha mãe.
Está inconsolável. Pergunta-me de
chofre, mas como filho, como é que pudeste
cair nessa armadilha? Uma entrevista de
setenta páginas
só a falar de arte, arquitectura, de
mutações sociais num país periférico,
onde é que tu andas com a cabeça?
Ó mãe dulcíssima, replico eu, 3 em cada
9 dos meus livros
já aludem ao sexo, não chega?
É que aqui no purgatório, explica-me
ela, aderimos todos ao Tantrismo.
Como diziam os antigos, lá saio eu
amofinado.
Só vejo uma saída, o meu próximo livro
será sobre “a influência do Salô, de Pasolini, no pensamento político de Melo
Antunes e do Gupo dos Nove”.
Glamour, voyeurismo, bastidores da
geopolítica em 75, uma por outra linha de coca, e uma tarde tórrida de sexo
entre Sá Carneiro e Snu Abecassis nos elevadores do Sheraton, momentaneamente
paralisado, durante o 11 de Março.
Aí terá mais sucesso no Facebook que a
biografia do Otelo.
Depois do Facebook virá a televisão,
depois caso com a pivot do telejornal, e vou passar a minha lua de mel ao
Brasil nas maisons do Paulo José Miranda e do Alexei Bueno e aproveito e faço
um contrato com a Companhia das Letras e a minha sorte está lançada…
Mas, antegozando embora, esse meu
próximo êxito, terei agora de falar deste livro, como dizer, um livro decente,
muito bem
tratado graficamente (parabéns, ó Luis Cardoso!),
com um homem
sério,
inteligente, loquaz,
que é um mestre na sua arte e não receia
falar nem dos afectos nem das feridas,
e que comigo percorre a sua estória e a
história comum aos dois países (Moçambique e Portugal) nestes últimos 40 anos,
e que com uma
verdadeira paixão crítica discute a arte e os sistemas de ensino, a arte antiga
e a contemporânea,
as expectativas, ilusões e disforias do
país que escolheu para si;
para além de relatar os
encontros humanos que teve, com Samora, com António Quadros/Grabato Dias, Pancho
Guedes,
e com inúmeros outros que não vou citar
só para os senhores jornalistas não pensarem que já leram o livro…
criatura que, para além disso, defeito
imperdoável, ama a poesia.
Não chegará? Temo que não: falta o sexo, a
crise portuguesa, a reforma ortográfica e a importância das redes sociais –
tudo esquecimentos meus.
Bem fui avisado pela minha mulher, mas
teimei na via abstrusa. Críptico, até na veia.
Ninguém me pode despedir, nesta terra?
Aqui vos deixo uns excertos.
O resto, o melhor, terá de ser
descoberto a sós,
de livrinho na mão, no café, na escola,
no sofá, na retrete...
Hoje podem adquiri-lo na Escola
Portuguesa de Moçambique, em Maputo, onde terá lugar o lançamento às 18, e depois
estará disponível nas livrarias.
Vai ser um lançamento de arromba, o João
Paulo Borges Coelho é que o vai apresentar. Mais uma boa razão para aparecer.
E aí vão os lamirés:
(…) em seu entender é
preciso fazer
-se primeiro homem – no seu
significado mais humanista - para se ser um bom arquitecto?
Acho que sim. Uma boa
arquitectura só pode resultar duma atitude amadurecida, e depois cultural, o
que pressupõe um sedimento que está para lá dos aspectos formais. Nessa
conferência menciono um aspecto cada vez mais importante, para mim, que é a desaprendizagem - uma
imagem com que procuro transmitir a necessidade de voltar a uma certa inocência
na atitude criativa. Nós para nos superarmos temos de estudar muito, de
assimilar e compreender certas coisas complexas que nos levarão a romper com
algumas ideias adquiridas e uma delas é a da especialidade, pois temos de
manejar uma grande panóplia de ferramentas, por um lado, e de realizações e de
invenções, por outro. E esta habilitação técnica, de alguma maneira, conspurca,
marca uma forma de expressão, ao carregá-la de influências que são extremamente
importantes e indispensáveis mas que ao mesmo tempo não podem ser elas a
cristalizar uma atitude criativa e genuína, que brote da ânsia poética que cada
um de nós transporta. Embora isto aqui possa motivar uma grande confusão, e por
isso nessa conferência também menciono que é indispensável considerar que não
estamos a fazer arquitectura pela primeira vez, temos noventa mil anos atrás de
nós a modificar o espaço, como espécie, e que, ainda por cima, de alguma
maneira, aquilo que se foi aprendendo pode ser esquecido. Pelo que este legado
precisa de ser estudado, revisto, projectado no futuro, compreendido no passado,
etc., e tudo isto são dimensões que hoje me parecem fundamentais e onde a
criatividade e a memória vão a par. Ora, é preciso fazer-se homem para
compreender como estes dois movimentos, o da desaprendizagem e o do resguardo
da memória, são complementares e não antagónicos…
(…)
(…) constato que considerará um bem que o Corbusier não tenha
executado os seus planos urbanísticos para Paris, que mudariam absolutamente a
face da cidade…
Ainda bem que não o deixaram, são planos absolutamente criminosos…
mas que continuam a ser publicados com uma certa ausência de crítica, apesar de
merecerem ser mostrados em qualquer escola de urbanismo como o exemplo do que
não se deve fazer. Mesmo as definições do ponto de vista de arquitectura são
frouxas, quase sempre as reduções com que o seu racionalismo exultava, herdadas
do «less is more» e do Alfred Loos, não levam a nada, são apenas falta de
alguma coisa… de imaginação, por exemplo. E a tendência panfletária dele acabou
por levá-lo a abraçar algumas coisas perigosas, ele engraçava com o fascismo
por que este tinha conseguido pôr os comboios em ordem, a andar segundo a
tabela… Ora, merda para a tabela…Este levantar a saia para mostrar a perna ao
duce dá-nos um pouco a medida do homem… Ele era um oportunista, de um ponto
de vista material, agora com um capacidade espantosa, admirável, de persuasão,
que acabava por ludibriar todos os incautos que se lhe colocavam em redor… e
aproveitou-se do facto de Paris ser naquela altura um centro cultural para se
afirmar de maneiras extremamente discutíveis. Mas sempre achei, eu era miúdo,
desconfiava daquilo, estudei mais, li muito, estive em França, trabalhei lá… e
sempre quis questionar as opções dele… porque para mim é muito fácil alienar
dimensões da realidade para a caracterizar com chavões…
(…)
Isso leva-me a perguntar, se fosse o Dante, que tipo de inferno é
que imaginaria para um arquitecto?
De antemão, devo esclarecer que não acredito nem no céu nem no inferno…
ademais os arquitectos são uma classe extremamente heterogénea em termos da sua
atitude, e na minha observação não os consigo classificar em termos de preto e
branco, nem mesmo quero criar para eles um qualquer purgatório. Penso que é
suficiente cada um deles arder no fogo brando da sua consciência, que com o
tempo provocará os seus danos, caso haja alguma coisa a recriminar… mas,
entrando no seu jogo, em relação aos arquitectos sem escrúpulos julgo que o
inferno seria não ganharem dinheiro… para outros, os muito megalómanos, seria
precisamente nunca conseguirem os meios para conseguirem pôr em pé os seus
projectos, isto pela eternidade, a maldição de Tântalo… e chega.
Aqui, em Moçambique, os engenheiros podem assinar os projectos?
Podem, podem…
Talvez isso explique tanto kitsch à solta em muitas moradias das
novas avenidas que se projectam nos bairros novos de Maputo…
O que explicará isso talvez seja o facto de em 1975, depois da
independência, terem ficado 8 arquitectos para o país inteiro, e cinco anos
depois, sermos 6… houve uma carência de formação que se reflecte ainda
no tecido da cidade… mesmo depois da criação da Faculdade de Arquitectura. Mas
para além disso não podemos esquecer que vivemos mergulhados num país novo, com
uma classe dirigente e política com bastantes lacunas culturais e que chega ao
poder desprovida de imagens de poder… Chega ao poder e tenta consolidar
uma imagem própria e elaborar uma imagem física da expansão do seu poder… mas
não podemos escapar ao facto de que nós somos também os reflexos dos nossos
modelos, e o exemplo que eles têm em termos de imagem de poder na cidade é
ainda o que vem de trás, do poder colonial… e então imitam… e é por isso que na
maior parte dos países africanos a imagem que se tem preferido é a da
arquitectura neo-clássica, com marcas greco-romanas, ou a de um ecletismo
chino-asiático - por que não, quanto a mim tão válido como as referências à
greco-romanidade -, quando tudo afinal desponta da ausência de uma atitude
própria… porque nós importamos tudo, e não ousámos inventar imagens nossas com
um vernáculo próprio, local, e articulado na dimensão duma profunda poesia
espacial com o meio ambiente, e que tenha em conta as condições climatéricas…
Portanto esse kitsch vem de quê? Vem dum completo desfasamento de referências,
a não ser de referências que são irreprodutíveis, a maior parte delas saturadas
de estilo, uma palavra que aprendi a rejeitar porque nos tem conduzido a
coisas deploráveis e que agridem o contexto… Depois, neste aspecto e no marasmo
actual, acredito que tem mais influência uma telenovela brasileira do que um
cabaz de livros de arquitectura, nós continuamos a ter uma educação que é zero
do ponto de vista estético…
(…)
Existem
muitos mitos sobre o artista como criador. Há um pintor chinês que se chama
Xi-Tao, que escreveu o seguinte: «Pintar é resultado da receptividade da tinta.
A tinta abre-se ao papel, o papel abre-se à mão e a mão abre-se ao coração. E
todos eles da mesma forma em que o céu engendra e a terra produz: tudo é o resultado
da receptividade». Perguntava-lhe se para si o acto produtivo tem mais a ver
com a noção romântica de criação ou com este conceito de receptividade?
Se eu tivesse que escolher entre as suas hipóteses eu iria menos
pela criatividade que pela receptividade. Julgo que essa formulação está mais
próxima do pano de fundo da produção. A criatividade gerou outro vocábulo cheio
de equívocos, a inspiração, que para
mim continua a ser o acto de meter o ar nos pulmões. Mas o chinês está mais
próximo do essencial do acto produtivo, e produzir é sempre uma forma de
criação, seja produzir sapatos, milho, poemas ou arquitectura é sempre um acto
criativo, isto é um acto de transformação de qualquer coisa num significado
social. É evidente que a criatividade aqui também se utiliza no sentido de se
fazer qualquer coisa que nunca se viu antes, e esta é uma dimensão válida, mas
no fundo trata-se de nos conformarmos ao grande modelo que é a Natureza e aos
seus processos de criação…
Lembrei-me disto porque
ontem vi na tv uma entrevista com o Júlio Pomar, o pintor, que estava
acompanhado do Jorge Palma, que é um músico de rock. E este pôs-se a falar dos
“processos de criação” e o Pomar, que é trinta anos mais velho, às tantas
interpelou o músico e disse-lhe: “Ó Jorge, olha que a gente não cria, a gente
recebe…“, O músico ficou meio desconcertado. E eu achei graça. E ocorrem-me agora dois versos de um argentino, o
Roberto Juarroz, que me parecem próximos do seu conceito de desaprendisagem.
Diz ele: «desbaptizar as coisas para lhes devolver o seu estado de presença».
Desbaptisar parece-me interessante. Sobre a criação lembro-me
sempre da ambiguidade da língua em português que nos permite, quando
perguntamos “onde é que está a criação?”, estarmos na verdade a sondar o local
onde fica o galinheiro. Acho que se adapta muito bem…
Esta gargalhada que me fez dar obriga-me a perguntar-lhe isto: há
humor na arquitectura? Como é que se arma o humor na arquitectura, através da
mistura dos materiais, dos ritmos, do jogo com o espaço?
Sim, sim, há exemplos de arquitectura com humor, olhe, ocorre-me…
(…)
O Louis Khan chega a falar
em «essências» e o Jean-Luc Godard dizia que a cada momento e para cada
situação só havia um lugar para pôr a câmara, que era inútil multiplicar os
pontos de vista…O que talvez seja o mesmo por outras palavras…
Olhe, diria que talvez essas formulações sejam um “exagero
necessário” pois estamos a tentar delinear em traços grosseiros, coisas que são
complexas. Lembro-me do que, quando eu era estudante, me dizia o Barata-Feyo,
um escultor que para mim foi a personalidade mais rica da minha formação… eu ia
muitas vezes para o atelier dele e assistia-o, e uma vez estive presente em
todos os passos da feitura de uma escultura, vi-o conceber uma escultura,
desenvolvê-la, modificá-la, e ele dizia uma coisa interessante, que não estará
distante da senda dessas formulações do Godard e do Khan, dizia ele, “olhe José, nós quando estamos a trabalhar a
pedra, uma escultura… nós comandamos até determinado ponto, depois é a peça
quem manda… a peça pede e nós vamos só fazendo…”. E no fundo é isto,
criamos um jogo de lógicas internas àquela construção ou criação e estas
reproduzem-se e passam a ser determinantes para as próximas decisões, e isto
nem tem que ser um processo consciente, é uma mecânica natural… e um bocadinho
em oposição àquela ideia de que se concebe tudo cristalinamente e que depois é
só resolver os problemas. Na minha prática esta é a maneira de trabalhar,
partir de um caroço de ideia consistente, e depois a polpa vai-se revestindo a
si mesma…
No desenho do projecto, vai
das parcelas para o todo ou só começa um projecto depois de intuir o todo?
Há um vai e vem nesse processo, às vezes chegamos ao fim e
recomeça tudo no princípio, o que às tantas implica uma economia do tempo muito
grande…
O José Forjaz nos seus
últimos textos teóricos pretende restituir à «emoção» um lugar fulcral, mas
esta parece-me ser em si um lugar de passagem ou a porta para uma recondução a
uma certa ordem prévia ao metabolismo da expressão, como os arquéticos em Jung.
Acredita numa memória transpessoal?
Acredito profundamente e acredito que isso pode ser traduzido para
o que mais correntemente chamamos de cultura. Nós herdamos uma gramática do
olhar e os vínculos a determinadas práticas que estão muito para além das
nossas determinações subjectivas. E por isso convém estarmos bastante
conscientes sobre o que herdámos… até para darmos o passo decisivo para a desaprendizagem. Mas estamos condenados
a certos patterns, quer queiramos
quer não, nem acredito que seja possível escapar a eles, o que fazemos muitas
vezes é evitar a coisa pela negação, adoptando o oposto, mas mesmo aí, sem
querermos estamos sob influência…
(…)
Acha que hoje a arquitectura
ainda conserva alguma coisa das guildas, dos ateliers renascentistas, onde os
discípulos cresciam como seres humanos ao mesmo tempo que se apoderavam das
técnicas da disciplina?
Acho que sim, bastante até… Não da mesma maneira, está claro, mas
algo se mantém… embora cada vez mais, equivocamente, os arquitectos pensem que
podem arrancar por si próprios sem o contacto com a experiência, mas o
exercício projectual e depois, não esqueçamos, a outra parte igualmente
importante que é o exercício construtivo, são das actividades mais complexas
que se podem ter, em termos humanos, as relações entre as pessoas não são
fáceis de gerir, com o cliente, o empreiteiro, entre os técnicos, ou tratar a
legalidade dos processos…
Tudo isso é preciso
aprender, estando enquadrado num escritório…
É preciso aprender e isto
não se aprende na faculdade. O aluno, na faculdade, para começar a aprender
alguma coisa séria de arquitectura, da construção, destes aspectos todos, teria
de andar para aí dez anos na faculdade. Por isso a estupidez do Tratado de
Bolonha não tem qualificação. Em Itália as faculdades já rejeitaram a patetice;
ou seja, no momento em que Moçambique cegamente embarca nas imposições de
Bolonha, os que inventaram a coisa romperam com ela e reconheceram o erro. E é
gravíssimo…
(…)
E (Samora) era um homem que
escutava?
Quando queria sim, sabia escutar. E fazia-se anunciar: agora
escuto. Não era um homem para ser interpelado, tínhamos que o conhecer para na
altura certa sugerirmos, e se isto ou aqueloutro, então ele escutava. E nunca o
ouvi recusar razão quando esta era arguta e bem firmada… Em termos pessoais eu
tenho um grande afecto por ele, porque ele na altura parecia-me uma pessoa
dedicada aos ideais, mais que um político era um ideólogo… ele foi o inventor
deste país, e tinha um espírito independentíssimo em relação aos
marxismos-leninismos mais básicos, sabia também ter o pragmatismo da política
mas privilegiava uma sintonia com as características étnicas e culturais do
país, isso não tenho dúvidas nenhumas. Tinha também umas fraquezas um pouco
indefensáveis, a amizade com o Kim Il Sung era uma coisa difícil de perceber.
Uma vez deixou-me em embaraços na Coreia do Norte porque o ditadorzeco quis-nos
mostrar o palácio dele, que era uma merda, uma coisa arquitectonicamente atroz,
do mais monhé e dubai que se possa imaginar, com o mármore a imitar plástico,
que é uma coisa inconcebível, e o cabedal a imitar napa, tudo ao contrário, e o
Kim Il Sung durante a visita pergunta a opinião ao Samora que me endereça a
pergunta, e eu tive de sussurrar, depois
falo consigo. E mais tarde o Samora ria-se muito e comentava, não me digas que era assim tão medonho!? Não
era fácil nas circunstância encontrar um homem com uma personalidade semelhante
e uma tão grande capacidade de agregar e de inventar o país…
Conte-nos um pouco da sua experiência
como Secretário de Estado do Planeamento e Território…Quanto tempo exerceu?
Três anos.
Depois demitiu-se,
disseram-me que com um manifesto.
Não. Há sobre essa história muita confusão, não foi assim…
Trabalhava comigo uma das pessoas mais inteligentes que conheci e uma das
pessoas fundamentais da minha vida, o Patrice Rauszer, levaram-no ao meu
gabinete, tive com ele uma conversa inicial de meia hora e ficámos amigos para
a vida toda. Ele era arquitecto, refractário ao exército francês, tinha lutado
contra a guerra colonial, tinha um mestrado em urbanismo, era muito
interessante, muito culto, e uma pessoa excepcional. Trabalhou comigo desde o
princípio na concepção duma filosofia do planeamento, pois ele havia trabalhado
na Argélia, depois da independência, como conselheiro de Estado Argelino para a
mesma área, e era um homem de esquerda, não marxista, nem PCF, duma esquerda
independente e sadia… e ajudou-me muito. E houve um momento em que era
inevitável uma reacção à asfixia a que o planeamento económico de linha
pró-soviético (aquela gente tinha metido a cartilha soviética na cabeça e não
se apercebia da desadequação dos modelos ao lugar e às condições humanas) nos
conduzia. Era absolutamente extraordinário o que se estava a passar. E nós lá na
Assembleia Popular tínhamos de intervir e tentávamos introduzir alguma
racionalidade e algumas regras no planeamento que ordenava o país, em termos
espaciais, e o Patrice apresentou um documento. O documento tinha sido gizado
comigo mas ele fora a cabeça, e o Documento chamava-se, se não me engano, Plano
e Projecto de Planeamento Físico, e eu como Secretário do Estado imprimi e
mandei circular pela Assembleia da Popular. Houve pessoas que me deram os
parabéns e outras que reagiram “você está a brincar!”. E claro que os
«apparachiqui», os homens mais alinhados com um marxismo tacanhamente ortodoxo,
reagiram, porque aquilo era um ataque frontal à situação. Nós na altura
atravessávamos um período complicado, marcado pelo PPI, Plano de Perspectiva Indicativo, que era uma construção teórica e
impossível… que os pequenos tecnocratas (a maioria deles está hoje no Banco
Mundial) procuravam executar sem discussão, e que se regia não por procurar
activar uma dinâmica que tivesse em conta os potenciais existentes mas os
objectivos, por exemplo, agora é preciso fazer uma fábrica de têxteis na
Zambézia, e não importava se em tal província havia matéria-prima, mão
de-obra-qualificada, técnicos, etc. A experiência redundou em alguns
disparatados elefantes brancos e numa sangria de meios e fundos. Partia-se do
princípio de que definidos os objectivos tudo se conformaria à sua mágica
materialização… o que talvez fosse possível onde houvesse dinheiro, recursos e
saber, o que não era o caso de Moçambique. O nosso documento atacava este
processo e fomos duramente criticados, e ainda hoje, infelizmente, é um
documento que mantém a sua actualidade…
E saí. Mas nunca fui atingido directamente. Pouco depois
solicitaram-me para dirigir o processo da construção duma ideia para a Faculdade
de Arquitectura e eventualmente tomar conta dela como director, ao que aderi
com gosto. Paralelamente a isto, desenhava-se no ar, na Assembleia da
República, a hipótese de se levar a cabo uma segunda Operação Produção, sem
sequer corrigir os erros da primeira. E quando no nosso grupo de trabalho
quiseram silenciar os meus protestos contra um tal disparate, e me mandaram
calar, então isso foi a machadada final e retirei-me, resignei como deputado,
pois não me mandam calar duas vezes se eu tenho razão. Entretanto, o projecto
da Faculdade ia germinando e os italianos lançaram-me o convite, Vem para
Itália, a gente quer-te lá a ensinar
Planeamento no Terceiro Mundo, e acabei por lá passar uns anos, distanciado
já da nata política, a estudar e a trabalhar no aprimorar o projecto da
Faculdade de Arquitectura…
A função de Secretário de
Estado, tecnicamente, deu-lhe ensinamentos para a sua actividade futura?
Aquilo que aprendi foi que as decisões sobre o espaço são
essencialmente de carácter político. O controle do espaço, da sua exploração ou
da organização, acontece acima duma lógica tecnológica e rege-se por interesses
– sejam legítimos, como eram naquela altura, sejam ilegítimos como acontece
amiúde hoje – económico-financeiros, às vezes ao serviço da consolidação de
poderes e interesses pessoais privados.
(…)
Eu não sei como é na
Arquitectura, mas nas Ciências Humanas, onde dou aulas, os alunos chegam
absolutamente desprovidos…Os meus alunos chegam muitas vezes como se tivessem a
quarta-classe.
Pois digo-lhe, tenho desenhos de acesso à Faculdade de
Arquitectura que a minha neta com 5 anos faria melhor. Digo-o com mágoa. Não
estão providos de qualquer instrumento…
E preocupam-se depois em
melhorar?
Quem? Eles, ou os professores… (risos)
Esse é que é o problema. Estamos a fazer uma Faculdade de Arquitectura com
docentes que acabaram de sair da Faculdade. Quando digo acabaram, pode ser há
cinco anos, uma pessoa com cinco anos de não-prática profissional, e estamos a
falar de um país onde há pouquíssimos centros de formação pós-escolar e na
maioria dos casos são 100 por centos comerciais… Isto é uma
condicionante histórica, nem estou a fazer uma crítica, estou apenas a
constatar: é assim e vai continuar assim durante muitos anos. Repare, na
actividade projectual, 50 por cento da sua afinação é feita por erro, por
tentativa e erro, e os erros fazem-se no tempo, no espaço e no tempo, e não se
podem fazer os erros suficientes para se começar a perceber alguma coisa de
arquitectura em menos de 10 ou 15 anos. Faz-se o exercício mas levá-lo todo até
ao fim e levá-lo bem é extremamente complexo, é uma das profissões mais
ingratas, porque nós somos responsáveis por tudo na obra, quer sejamos ou não,
legalmente, somos responsáveis por tudo na obra, sobretudo em Moçambique, onde
não há consultoria técnica, ou a que é há é tão insignificante e… não quero
dizer atrasada, mas ineficaz… pois o arquitecto está sozinho; desde o projecto
à obra.
Vou-lhe ler uma frase
terrorista do Undertweizer, diz ele: «Só quando o arquitecto, pedreiro e
ocupante são uma unidade, uma e a mesma pessoa, é que podemos falar de
arquitectura. O resto não é a arquitectura, mas sim a encarnação física de um
acto criminoso…»
Bom, a frase vale o que vale… mas no nosso caso o problema estende-se
a qualquer universidade… mas eu nunca acreditei muito na universidade como
local de formação das pessoas, acho mais que as pessoas são formadas umas pelas
outras, através de encontros… e é
isso que a universidade deve ser, e ainda é, e esses encontros devem ser
estimulados, não para discutir as pernas da prima mas para discutir os
problemas sociais e as novas emergências intelectivas da sociedade em que se vive.
Da minha observação de vinte e tal anos, quase trinta de contacto com a nossa
universidade, eu não vi esse estímulo, até na maneira como os espaços entre as
salas de aula são tratados, cheiram a urina, não têm luz, são abandonados, não
têm bebedouros, não têm sanitários para o estudante… Para além do ambiente que
se está a criar, pidesco, de controlo de tudo o que faz, dos passos que se dá,
muito mascarado mas que existe, e que também não autoriza que o estudante
desenvolva e teça opiniões com desassombro… Mas também não há uma
intelectualidade neste momento em Moçambique, foi rasurada…
(…)
A muito nos levaria esta
senda mas é melhor retomarmos a arquitectura. No seu “texto de reflexão dos 70
anos”, escreve: “temos de voltar a uma arquitectura que não seja uma
performing-art”, o que implicaria uma atitude que hoje se encontra pouco entre
os jovens estudantes que se prende com a humildade… Não existe mais, a
humildade?
Não, não existe.
Donde lhes chega uma tão
desproporcionada confiança nas suas aptidões?
É uma consequência directa da falta de cultura.
Quando eu era um jovem
jornalista, em Lisboa, entrar no «Expresso» era como ser ejectado para o
Olimpo. E havia um itinerário quase iniciático para lá chegar que passava por
provas de qualidade. Quando eu já lá estava comecei a dar conta que chegavam
muitos jovens estagiários que davam a coisa como adquirida, como se tivessem
nascido para aquilo… A qualidade do trabalho era o menos relevante, na questão.
O respeito pelo mérito e pelo saber foi-se dissipando…
Completamente. E estamos a falar a duas escalas, à escala
universal e à escala local. À escala local o respeito pelo saber dissipou-se
por uma razão simples: não há saber. O que é um problema, para só falar do caso
da arquitectura. Portanto, eles também não têm a quem respeitar. É dramático,
mas é verdadeiro…
Mas, no caso da arquitectura,
Moçambique a dado momento funcionou quase como uma escola, com o Mesquita, o
Pancho, etc.,
Não é o anódino, não é o excepcional, não é o fora de comum que
cria uma cultura. O que cria uma cultura é a consistência e a constância de uma
prática ao nível geral que cria referências que os mais jovens podem tomar como
padrões e que, os melhores entre eles, devem pretender ultrapassar. Isso não
existe aqui, há uma falta de modelos. Por isso quando surge alguém de qualidade
ficam logo endeusados de imediato, um Malangatana, um Mia Couto, etc., e
estupidamente, quer-se imediatamente fazer cópias, porque se procura o sucesso
a qualquer custo, e sobretudo sem o trabalho que este implica… alguém aponta um
caminho e vamos copiar, é mais fácil.
Não é ser melhor que eles, é ser
como eles, e como não têm a noção do percurso, o primeiro boneco que põem
no papel é genial, até porque a sociedade os empurra para isso, muitas vezes só
pela sua origem étnica já é genial… a mentalidade é: temos de ter gente rapidamente, não temos tempo para estar à espera
deles… isto é muito grave. Embora também pense que é natural, é uma fase, a
História vai apagar muitas destas coisas… e ficará, na essência, muito mais
rarefeita, e penso que intelectualmente se vão acumulando experiências, realidades
e realizações que irão depois servir de referência. Agora, eu lembro-me de que
quando saí da Faculdade tinha a noção clara de que tinha muito que aprender,
apesar de que inclusive, já antes de ter entrado para a faculdade ter tido a
tarimba de participar no desenho de projectos e continuei a fazê-lo, e só um
bom bocado depois é que comecei a assiná-los, cheio de dúvidas e medos de errar
e de desiludir os meus mestres e, mais tarde, tive de me aventurar…
Quer dizer, só se aventurou
a ter opinião depois de alguns anos de prática?
De alguns bons anos, e com uma atitude que eu não vejo hoje e que
reclamo para mim próprio que é a de uma profunda dedicação ao estudo. A estudar
técnica, a estudar a filosofia da arquitectura e os processos da arquitectura…
Eu estava muito isolado, eu estive sempre muito isolado. Antes de vir para
Moçambique estava na Suazilândia, que era um isolamento ainda maior. Com uma
diferença, por ser um país de língua inglesa estava mais ligado à África do
Sul, que era mais central no mundo, que por vez estava ligada a outros canais
maiores como a Grã-Bretanha e os EUA, de que eu beneficiei, mas no trabalho
profissional de todos os dias eu estava sozinho…e portanto só através do estudo
contínuo eu podia tirar as minhas dúvidas.
(…)
Mas ó Arquitecto, será por
isso que a ideia duma harmonização da realidade urbana me parece bastante
abandonada por estas bandas?
Nesse aspecto o que é mais grave é que as cidades africanas
exacerbam os conflitos de classe, os conflitos políticos e continuam a
desprezar oitenta por cento da sua população, ou seja, as cidades africanas
continuam a ser projectadas como se fossem exclusivamente para uma classe média
baixa, ou alta – deixando de fora toda a gente que não tem dinheiro para pagar
água, luz, telefone… Depois, como já aconteceu aqui, encomendam-se planos
urbanísticos a quem não está no terreno e que apresentam depois projectos
abstractos sem a menor estrutura ou inserção espacial e sem soluções que
respondam às necessidades de 80% dos habitantes que já vivem no local. E isto
passa-se em Luanda, em Nairobi, em Maputo, em Joanesburgo… Só se fazem planos
para alguns…
(…)
Quem vem a Maputo durante
pouco tempo não notará mas quem fica durante algum tempo começa a notar que se
mantém uma estrutura social absolutamente estratificada na cidade. Não só se
verifica que coexistem muitos tempos históricos diferentes, e estamos a falar
das mentalidades das pessoas, como se torna claro que há duas ou três cidades
que coexistem mas sem que sejam muitos os convívios francos entre pessoas de
raças diferentes… ao fim de cinco anos, de quatrocentos alunos, de me ter
integrado na cidade, tenho dois amigos negros. Você desculpe-me, considero isto
um escândalo…
Isto é uma coisa que só o tempo curará. É estritamente uma herança
cultural, não é por qualquer rejeição ideológica ou biológica, mas vai mudando.
O meu filho já foi casado duas vezes com duas negras – só tenho netos mistos. E realmente as barreiras caíram todas,
não há aqui quaisquer impedimentos legais para um convívio são, como diz. E
esse é meio caminho andado. Claro que há 30 anos atrás, pensávamos todos que ia
ser mais rápido, mas tenho esperanças. Mas há outro aspecto com que temos de
lidar sem complexos: ser racista é mais natural que não o ser. Ser anti-racista
é uma atitude voluntária: eu quero ser amigo de toda a gente… em todos os
lugares começam por haver cliques territoriais, que começam a desaparecer
conforme as circunstâncias… mas que na origem são contraditórias consigo mesmo
e que incluem elementos mais racistas ou não… mas as barreiras vão-se diluindo
e vejo nas camadas mais jovens na Universidade que entre eles é muito mais
fácil ultrapassarem essas coisas e já respiram de outra maneira. Tudo tem o seu
tempo. E ainda há desequilíbrios que só o tempo sanará. Muitos dos alunos mais
brilhantes da universidade neste momento são negros, no entanto a média geral
dos alunos brancos é melhor, porquê? Porque têm mais apoio em casa. Há PCA’s ou
mesmo ministros que metem os filhos nas melhores escolas mas eles não obtém
aproveitamento. E não podiam porque em casa não há um único livro e como tal
eles não têm o exemplo em casa. O grande problema do ensino em Moçambique não
começa na escola mas em casa… e isso não se resolve em dois tempos, não é com
mais escolas e mais professores mal preparados mas com a subida da cultura
média em casa…Melhorando este quadro geral as pessoas também tenderão a
conviver mais entre todas e a abater as últimas barreiras raciais…
incríblê!
ResponderEliminarRaposão,
VENHA NOS VISISTAR NA CASINHA NOVA!
(CISA NEM TRAZER TAIÉ!)
http://pramimidormir.blogspot.com.br/
braços!
carlona
Eliminarestou neste momento sem net em casa, hecatombe que resolverei na egunda, ai prometo a visita. bjinho, cabrita
Eu quero comprar o livro...
ResponderEliminarmeu caro, o livro estara nas livrarias, pelo menos na minerva tenho a certeza que nao se farao rogados, sen\ao pode oedi/lo na escola portugesa, mail teresanoronha89@yahoo.com.br , abra;o cabrita
EliminarExcelente. Gostei da entrevista, melhor diria conversa, um diálogo inovador, tanto na técnica utilizada como no nível da conversa. Pude conhecer melhor o Forjaz na sua amplitude humana e quiçá o Cabrita na sua multivivência. Este abraço.
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