terça-feira, 22 de maio de 2012

LEMINSKI, O ARRAÇADO DE GROUCHO COM BASHÔ

O ”Vampiro Silencioso”, Dalton Trevisan, não é a única glória de Curitiba, não. Vêde Leminski (1944-1989), Paulo de sua graça, filho de polaca e de negra, um arraçado de Groucho com Bashô, de quem fez uma biografia, e que fez canções com o Caetano, para a Cor do Som, para dezenas de outros músicos, publicista e prosador experimental, que tem em Catatau a sua coroa de glória (e é de ter, e é de ter), concretista & dissidente, tropicalista & tradutor (falava seis línguas, entre as quais latim); poeta das arábias e cinturão preto do judo. O mais quem quiser que descubra, eu só abri a porta.
Esta antologia é feita de três livros (o homem escreveu para aí 20): La vie en Close, Caprichos & Relaxos e de Distraídos Venceremos. Há uma biografia divertida, O Bandido que sabia Latim, que se encontra pela net. Ah, já me esquecia, morreu de porre. Boa aragem:

CURITIBAS

Conheço esta cidade

como a palma da minha pica.

Sei onde o palácio

sei onde a fonte fica,



Só não sei da saudade

a fina flor que fabrica.

Ser, eu sei. Quem sabe,

esta cidade me significa.



                               MINHAS 7 QUEDAS

minha primeira queda
                                 não abriu o pára-quedas
                                
                                 daí passei feito uma
                                 pedra pra minha segunda queda
                                
                                 da segunda à terceira queda
                                 foi um pulo que é uma seda
nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda
                                 na sexta continuei caindo
                                 agora com licença
                                 mais um abismo vem vindo


                                  
                                 quem me dera um abutre
                                 pra devorar meu coração!
                                 naco de carne crua
                                 comida de pé no balcão!

 quem me dera um apache
pra colher meu escalpo!
                                 que desta vez não escape
                                 nenhum disfarce!

 tomara que um furacão
caia sobre meu navio!
                                 que nenhum deus nem dragão
                                 possa ser meu alívio!


um dia

a gente ia ser homero
                            a obra nada menos que uma ilíada

 depois
                              a barra pesando
                              dava pra ser aí um rimbaud
                              um ungaretti um fernando pessoa qualquer
                              um lorca um éluard um ginsberg

 por fim
                              acabamos o pequeno poeta de província
                              que sempre fomos
                               por trás de tantas máscaras
                               que o tempo tratou como a flores





                                      um poema
que não se entende
é digno de nota

a dignidade suprema
                                      de um navio
perdendo a rota


                            PAPAJOYCEATWORK



(Noite. Joyce começa a escrever)

Madmanam eye! Light gone out!

(Cai no papel)

Mustmakesomething! Reverythming!

(Morde os lábios e gargalha)

A poorirish is a writer mehrlichtsearching,

yesternighteternidades!

(Troveja. Relâmpagos iluminam o quarto. Joyce

prossegue)

Thomasmorrows? Horriver!

Nice and sweet — the speech of England,

damnyou! Dont?

Must destroy it, just like a destroyer would do it

yourself! Como um verme. Yes, I no.

Done to Ireland! What have they done? It will do.

Beforeblacksblanco, we are even, this very evening!

Think is so.

My vengeance will be as big as say a country as big

as say Brazil.

Someday my prince will come. Our prince:

Seabastião!

Arrise, Lewisrockandcarroll!

Waterrestrela, am I a dayer?

Just a wakewriter.



AVISO AOS NÁUFRAGOS

 Esta página, por exemplo, 

não nasceu para ser lida.

Nasceu para ser pálida, 

um mero plágio da Ilíada,

alguma coisa que cala, 

folha que volta pro galho,

muito depois de caída.



Nasceu para ser praia, 

quem sabe Andrômeda, Antártida,

Himalaia, sílaba sentida, 

nasceu para ser última

a que não nasceu ainda.



Palavras trazidas de longe 

pelas águas do Nilo,

um dia, esta página, papiro, 

vai ter que ser traduzida,

para o símbolo, para o sânscrito, 

para todos os dialetos da Índia,

vai ter que dizer bom-dia 

ao que só se diz ao pé do ouvido,

vai ter que ser a brusca pedra 

onde alguém deixou cair o vidro.

Mão é assim que é a vida?



ICEBERG


Uma poesia ártica, 

claro, é isso que desejo.

Uma prática pálida, 

três versos de gelo.

Uma frase-superfície 

onde vida-frase alguma

não seja mais possível. 

Frase, não. Nenhuma,

Uma lira nula, 

reduzida ao puro mínimo,

um piscar do espírito, 

a única coisa única.

Mas falo. E, ao falar, provoco 

nuvens de equívocos

(ou enxame de monólogos?). 

Sim, inverno, estamos vivos.



 ANCH'IO SON PITTORE

 fra angélico 
quando pintava
uma madona col bambino 
se ajoelhava e rezava
como se fosse um menino

 orava diante da obra 
como se fosse pecado
pintar aquela senhora 
sem estar ajoelhado


 orava como se a obra 
fosse de deus não do homem



sossegue coração

ainda não é agora

a confusão prossegue

sonhos a fora



calma calma

logo mais a gente goza

perto do osso

a carne é mais gostosa





lá fora e no alto

o céu fazia

todas as estrelas que podia



na cozinha

debaixo da lâmpada

minha mãe escolhia

feijão e arroz

andrômeda para cá

altair para lá

sirius para cá

estrela dalva para lá






TEXTOS TEXTOS TEXTOS

malditas placas fenícias

cobertas de riscos rabiscos

como me deixastes os olhos piscos

a mente torta de malícias

ciscos



                           BLADE RUNNER WALTZ 



Em mil novecentos e oitenta e sempre,

ah, que tempos aqueles,

dançamos ao luar, ao som da valsa

A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,

nome, confesso, um pouco longo,

mas os tempos, aquele tempo,

ah, não se faz mais tempo

como antigamente.

Aquilo sim é que eram horas,

dias enormes, semanas anos, minutos milênios,

e toda aquela fortuna em tempo

a gente gastava em bobagens,

amar, sonhar, dançar ao som da valsa,

aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento

que a gente dançava em algum setembro

daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.



                            O QUE PASSOU, PASSOU


Antigamente, se morria.

1907, digamos, aquilo sim

é que era morrer.

Morria gente todo dia,

e morria com muito prazer,

já que todo mundo sabia

que o Juízo, afinal, viria,

e todo mundo ia renascer.

Morria-se praticamente de tudo.

De doença, de parto, de tosse.

E ainda se morria de amor,

como se amar morte fosse.

Pra morrer, bastava um susto,

um lenço no vento, um suspiro e pronto,

lá se ia nosso defunto

para a terra dos pés juntos.

Dia de anos, casamento, batizado,

morrer era um tipo de festa,

uma das coisas da vida,

como ser ou não ser convidado.

O escândalo era de praxe.

Mas os danos eram pequenos.

Descansou. Partiu. Deus o tenha.

Sempre alguém tinha uma frase

que deixava aquilo mais ou menos,

Tinha coisas que matavam na certa.

Pepino com leite, vento encanado,

praga de velha e amor mal curado.

Tinha coisas que tem que morrer,

tinha coisas que tem que matar.

A honra, a terra e o sangue

mandou muita gente praquele lugar.

Que mais podia um velho fazer,

nos idos de 1916,

a não ser pegar pneumonia,

deixar tudo para os filhos

e virar fotografia?

Ninguém vivia pra sempre.

Afinal, a vida é um upa.

Não deu pra ir mais além.

Mas ninguém tem culpa.

Quem mandou não ser devoto

de Santo Inácio de Acapulco,

Menino Jesus de Praga?

O diabo anda solto.

Aqui se faz, aqui se paga.

Almoçou e fez a barba,

tomou banho e foi no vento.

Não tem o que reclamar.

Agora, vamos ao testamento.

Hoje, a morte está difícil.

Tem recursos, tem asilos, tem remédios.

Agora, a morte tem limites.

E, em caso de necessidade,

a ciência da eternidade

Inventou a criônica.

Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.



esse vôo

ao vento que mais dói

eu dôo



                                     
                                              saber é pouco



como é que a água do mar

entra dentro do coco?




o dia é um escombro

o vôo das pombas

sobre as próprias sombras






a noite — enorme

tudo dorme

menos teu nome




o corvo nada em ouro

nem o céu estraga o vôo

nem o vôo dana o céu




chove no orvalho

a chave na porta

como uma flor no galho




A LUA NO CINEMA

 A lua foi ao cinema,
passava um filme muito engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

 Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

 A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!



A palmeira estremece
palmas pra ela
que ela merece


 Amar é um elo
entre o azul
e o amarelo



DESENCONTRÁRIOS

 Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.

Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
fazer poesias, eu sinto, apenas isso

Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.



nu como um grego
ouço um músico negro
e me desagrego


soprando esse bambu
só tiro
o que lhe deu o vento




Foi em 1963, na “Semana Nacional de Poesia de Vanguarda”, em Belo Horizonte, que o Paulo Leminski nos apareceu, 18 ou 19 anos, Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô, o Senhor Bananeira, recém-egresso do Templo Neopitagórico do simbolista filelênico Dario Veloso.
            Noigandres, com faro poundiano, o acolheu na plataforma de lançamento de Invenção, lampiro-mais-que-vampiro de Curitiba, faiscante de poesia e de vida. Aí começou tudo. Caipira cabotino (como diz afetuosamente o Julinho Bressane) ou polilingüe paroquiano cósmico, como eu preferiria sintetizar numa fórmula ideogrâmica de contrastes, esse caboclo polaco-paranaense soube, muito precocemente, deglutir o pau-brasil oswaldiano e educar-se na pedra filosofal da poesia concreta (até hoje no caminho da poesia brasileira), pedra de fundação e de toque, magneto de poetas-poetas.
            Das primeiras invencionices ao Catatau, da poesia destabocada e lírica (mas sempre construída, sabida, de fabbro, de fazedor) ao verso verde-verdura da canção trovadoresco-popular, o Leminski vem chovendo no endomingado piquenique sobre a erva em que se converteu a neoacadêmica poesia brasileira de hoje, dividida entre institucionalizadas marginalidades plácidas e escoteiros orfeônicos, de medalhinha e braçadeira. E é bom que chova mesmo, com pedra e pau-a-pique. Evoé Leminski!

Haroldo de Campos


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