E o elevador parou. Sem esganiçar um cabo, um ronco de sobreaviso. Parou. Entre dois andares. E abriu a porta para que eu me visse nas entranhas, diante duma parede cega e encardida. E se já não havia espanto em mim, voltou a aflorar. Primeiro vociferei, merda! Imaginando quantas horas ia ficar naquilo, pus-me a adivinhar o botão de alarme, que nesta velha carcaça não está assinalado. Qual deles? E vieram-me, de supetão, os pequenos sustos e as apreensões maiores. E de coração suspenso jorraram-se as lamentações, merda, nunca irei a Veneza, não vou ter dois meses para ler exclusivamente e de cabo a rabo Os Cantos de Pound, nem de reler a Divina Comédia, lá se me vai a integral da filmografia do Godard, não vou conhecer os próximos livros de Christian Bobin, ou, não irei ao Japão seguir as pistas do Dogen, o meu segundo sonho mais entranhado, merda, lá se me vai a oportunidade de voltar ao Prado e às salas do Goya, e ainda nem cumpri a promessa de passar uma semana só a ouvir as sinfonias do Mahler… um minuto e meio de lava lamentosa e torturada, em que não me veio à cabeça a tristeza de deixar de ver as paisagens ou o sol, ou o mar… em mim, afinal, necessidades secundaríssimas. Dentro de um elevador fechado só penso na cultura. Não sei de facto o que faço em África. A vida tem destes desnortes. De repente noto que o elevador está cheio de mosquitos...
Queria ocupar um
lugar mínimo neste mundo mas tive cinco filhas, e fui inconstante como o raio
que adivinhando a força do seu próprio trovão se desvia, na esperança de não
rebentar com os tímpanos.
Quem teve culpa
dos meus cinco rebentos suponho ter sido a orgia de leituras nocturnas que tem
sido a minha vida. E algum mimetismo: eu sou um homem de admirações e admiro o
Jorge de Sena e o Assis Pacheco, oito e nove filhos, respectivamente – se bem
me lembro. Bom, a cabotinice de os imitar foi minha, aí sofri a passividade emocional, de que fala o Espinosa. Mas concluo
que em metade do que fazemos – macaqueamos. Podíamos era ter consciência disto
um bocadinho mais cedo, para desviarmos o alvo.
A orgia de
leitura desta noite foi em torno de Espinosa. Julgo ter achado a porta de
entrada que me levará a ler de rajada várias coisas de e em torno de Espinosa -
o livro que lhe dedica Roger Scruton, onde entre outras gemas se lê:
«Espinosa, assim como Pascal, viu que a nova
ciência inevitavelmente "desencanta" o mundo. Tomando a verdade como
o nosso critério, desentocamos de seus antigos domicílios o miraculoso, o
sagrado e o santo. O perigo, no entanto, não é o fato de seguirmos esse
critério - pois não temos outro, mas o de só o seguirmos até o ponto em que
perdemos a nossa fé, e não longe o suficiente para que a recuperemos. Livramos
o mundo de superstições úteis, sem que o vejamos como um todo. Oprimidos pela
sua falta de significado, nós então sucumbimos a ilusões novas e menos úteis,
superstições nascidas do desencantamento, que são tão mais perigosas por tomar
o homem, e não Deus, como o seu objeto. O remédio, conforme nos lembra Espinosa, não é retroceder para a visão do mundo pré-científico, mas o de seguir mais além no caminho do desencantamento. Perdendo tanto as velhas quanto as novas superstições, descobrimos finalmente um significado na verdade em si. Pelo mesmo pensamento que desencanta o mundo, chegaremos a um novo encantamento, reconhecendo Deus em tudo, e amando as suas obras no acto mesmo em que as conhecemos».
Não sei se Deus (o da tradição juadaico-cristã) me interessa nesta equação, mas o sagrado sim.
Como eu gostaria de ler isto aos meus alunos.
A cada morto o
universo contrai-se, faz-te saber que o amanhã não está contido na palavra
«hoje» - e o gato come o teu sorriso.
Nunca nos saturaremos,
Nós os dois.
Temos tantas coisas
Para não dizer.
É como o mar
E as marés.– é rara, mesmo entre os nossos.
Tão rara como a carta que vem de alhures.
(Que raio queria
eu dizer com os nossos?)
Calhou-me a mesa
que fica debaixo da televisão. Uma cerveja média, como sempre. Vinte fixam o ecrã,
quatro observam-me – sou para eles um objecto de faiança. Os restantes estão
presos aos quanta da electricidade estática. A vida está ao lado, etc., etc.
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