sexta-feira, 10 de maio de 2013

CRISTAIS FLUIDOS/ JORGE SOUSA BRAGA

                                                                       Noé Sendas

Estou a ler um clássico que navega no território do haiku, Fourmis sans ombre/le livre du haiku, de Maurice Coyaud, que o autor, com graça dedica A Diogène, à ses chiens, mas o que atrai de imediato é o haiku em epígrafe, que justifica o título.

O poema é de Seishi e reza assim:
No jarro de água flutua
Uma formiga
Sem sombra

É impossível condensar melhor o que a vida é, os seus limites e o que nela cede ou não cede
ao espírito do tempo. Está morta, a formiga, e não tem sombra. Uma vida que é vida tem traço, imprime um resgate pessoal e uma responsabilidade social: não entrega a sua sombra.
Se de um golpe falece é uma palha na água, inerte, em distraída glaciação.
É agora pura matéria, mas fantasmeou a sombra. Biologicamente, caiu da árvore, e não passa da ruína do nome que atribuímos à sua aparência, até nos esquecermos de o proferir.
Por que, perdurará o nome formiga para além da morte da última formiga na terra?
Condolências. Estamos sós. A vida está só, tirita de solidão, aquém dos nomes, no âmago da tempestade com que os elementos combatem entre si.
Por enquanto, há uma quietação na água que sustenta o cadáver da formiga, mas é temporária, um intervalo. Que serve para a morte passear nas artérias daquele corpo, que já incarnou o pulsar de uma energia que permaneceu para ele um mistério. Afinal, se a morte nos desfere o seu golpe é porque não acedemos à chave da vida, não é?

Soberbo, o haiku.
Acabei de estalar entre as palmas da mão a fuselagem de um mosquito. Outro para quem a vida era só um domínio fugaz mas não uma inerência.

Mas voltando aos haikus, que me fascinam e ao mesmo tempo me desesperam, a sua clareza não é inata mas um resultado do processo de se entrelaçar (verticalmente – de momento, não o sei definir de outro modo) em três linhas vários níveis de realidade e de significação. Vejamos este exemplo:

Todo o mundo dorme
Ninguém entre
A lua e eu.

Seifujo

Várias coisas diferentes, ainda que concomitantes, se entretecem aqui:
- o sujeito do poema vive num mundo em que é difícil estar só, ou, pelo menos, a sua condição social não lhe permite estar só e atento à escuta do mundo
- não existe separação entre homem e natureza, uma dualidade falsa e forjada que se desmancha assim que ficamos finalmente a sós
- que alguém nos pode estar a sonhar, “único” estado não-dual
Etc., etc.

O que eu gostaria de discutir estas coisas com o Jorge Sousa Braga, um dos poucos que pode saber algo do que pressinto por aqui e que aprofundou, com as suas traduções das coisas orientais (ou mesmo de poetas ocidentais, como o polaco Zbigniew, que praticam no poema um mesmo tipo de recorte/costura cirúrgica entre vários níveis de realidade) o que em si, desde a primeira hora, era já nele uma intuição: a clareza e a “simplicidade-confluente”, exigem um trabalho extenuante, uma sedimentação de estratos que vai cozendo uma síntese, para se manifestar de súbito como um relâmpago.
Vejamos o exemplo do seu famosíssimo Poema de Amor:

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que ele não
te coubesse no dedo.

O que parece um poema-piada - e é - ganha de súbito outra relevância porque intercepta dois níveis, um macro e micro, levando a que uma mera anedota humana se extrapole num assunto cósmico - o que “não é” mas “é” como todo o amor que se preze -, dando um alcance, uma ambivalência, um modo reverso, ao poema que ele parecia destinado a não ter. Eis como o simples é motivado pelo complexo.
Acertar uma vez na piada da coisa pode acontecer, mas que o recurso se repita e multiplique com propriedade (e não como mero tique para o trocadilho) é que já sinaliza um ponto-de-vista personalizado num padrão. Este trabalho não tem que ser consciente, mas está nos antípodas das fáceis traduções com que se dá azo a impressões fugidias, retinianas, sendo antes uma “visão” que se vai impondo, a partir de dentro. Agora, por que raio não se quer entender que o humor em Sousa Braga (sendo-o), como o humor nos koan, é uma forma de contornar as aporias e de apontar o horizonte de outras coisas?  

Como quem não quer a coisa, o Jorge Sousa Braga tem feito a sua obra à margem de tudo. Acusa ainda outro “defeito”: é diferente. “Esse é diferente…” – concorda-se – e toda a gente sorri quando se menciona o Sousa Braga, mas julgo que a evidente “ternura” que ele concita (que verbo notarial, ó Jorge…) e o seu humor têm impedido a sua leitura com a atenção requerida. E ele prossegue, tranquilo, nas tintas. Faz muitíssimo bem. E ainda não será desta vez que ele terá a devida exegese, mas não quero ter falta de comparência e quero assinalar para já (prometo voltar ao livro) o imenso prazer que me deu a leitura de Novíssimo Testamento e outros poemas. O gozo bruto.
Como estou longe não sei se houve artigos sobre o livro, eu simplesmente não o vi em nenhuma lista dos melhores livros de 2012. Ora aqui começa a porca a torcer o rabo: devia estar. Não porque fosse o 4º, ou o 7º, o 9º, ou 13º melhor livro de poesia portuguesa do ano, o Jorge não trabalha para os rankings ou a premiação… mas simplesmente porque o livro não trai a diferença que autonomizou a sua voz e antes a potencia, como um cristal fluido – operação que é para raros.

Desde Poeta a Nu que não lia o Jorge, e por isso recebi o seu livro com uma expectativa redobrada. O primeiro poema serenou-me de imediato, depois confirmei: este livro é um golfo – sendo indiscutivelmente um dos poucos livros que gostaria de ter escrito na última década, arrancando-me da tagarelice em que me atolo.
Infelizmente, o Jorge tem mais de cinquenta anos, o que, para uma certa “camada dirigente” ainda em voga é um pecado maior; tem, contudo, o seu livro a energia de quem começou agora e impõe ao vento um fio-de-prumo.
Não vou estar com análises, vou simplesmente citar dois poemas, como estímulo para que comprem o livro, o primeiro:

O NOVÍSSIMO TESTAMENTO

Para acabar de vez com os direitos humanos
                                                                                                                      e restaurar os direitos divinos

 Escrevi este testamento com sangue
de galinha
eu que não esqueço nunca a minha condição de pilha-galinhas
condenado a viver num galinheiro povoado de fantasmas de
                                    galinhas-da-índia patos perus gansos garnizés
e a cacarejar pela noite fora
sem que um só galo da vizinhança me responda
nem os galos dos cataventos
— quando o galo cantar renegar-me-ás três vezes quando o galo
cantar —
Quando era criança antes de matar uma galinha
a minha mãe pedia-me para lhe prender as pernas e as asas
eu metia as mãos por debaixo da saia e prendia-lhe as asas e as
                                  pernas com todas as minhas forças
O sangue jorrava da sua cabeça para uma malga com vinagre
e ficava depois muito tempo ainda a espernear no alguidar
o pequeno olho muito aberto…
Os meus sonhos estão cheios de cabeças de galinha
ainda escorrendo sangue
de milhões de asas de milhões de patas de galinha de milhões de
                                                                                                     ovos
Quem vai bater esta gigantesca omeleta de ovos
na frigideira celeste?
A minha alma é uma pequena alma entre biliões de outras almas
Que tamanho tem a alma dum mosquito?
Proclamo a minha solidariedade com todos os biliões de frangos
                                                                                           do planeta
que tentam em vão escapar à máquina de depenar eléctrica
com todos os carneiros cabras ovelhas avestruzes
— Eu sou um cordeiro inocente que se perdeu do pastor
e não sabe senão balir —
com todas as vacas
condenadas a comer rações impróprias e a um orgasmo gelado
No silêncio dos estábulos elas preparam a sua vingança
enquanto sonham com um prado verde de gramíneas  
— e essa vingança será terrível —
Este é um testamento escrito com o sangue
do último dos genocídios
— e esse sangue é da cor do alcatrão —
tendo como testemunhas apenas as duas metades
do meu coração

e este outro, extraordinário, singularíssimo, que pode ler-se, à vez, como um poema unitário ou como um colar de haikus (autónomos) com uma chave (absolutamente) desconstrutora:

EPÍSTOLA SOBRE O MAR

Que luta é esta
com que noite e dia
o mar se digladia?



Ninguém é tão avesso
a margens
como o mar

O coração do mar
é um cemitério
de navios e de luar

 
Também o mar
gosta por vezes
de dançar

Não é tão difícil
como parece caminhar
sobre as águas do mar

 
Por vezes o mar
arrasta tudo
com ondas de veludo


Maresia:
o coração dum peixe
enche-se de alegria

 
Só os meus pés
conhecem o ritmo
das marés

O mar brama:
dum peixe desprende-se
uma pequena escama

 
Noite de breu:
onde acaba o mar
e começa o céu?


(nota: espaçamentos todos errados, esta merda do blogger não me obedece)


Duma coisa tenho a certeza: o Sousa Braga faz parte (como eu, a suplente) de um Clube dos Reis Magos que não pretendem chegar a Belém e que adoram rir e escanhoar-se, e cujos membros mantém uma única certeza: a morte há-de dignificá-los (o que quer que isso signifique)! Que a Guerra do Gosto lhe seja benéfica, já que a sua ética não tem desvio.


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