Filipe Branquinho
Leio esta tradução de Paulo
Vizioli de A Deserção dos Animais do
Circo, de Yeats (Companhia das Letras, 2001):
«1
Busquei
um tema que não foi achado;
Por
seis semanas procurei, ou mais.
Talvez
eu pare enfim, velho e alquebrado,
Mesmo
sabendo que meus animais,
Verão
e inverno, até chegar a idade,
Tenham
estado todos em cartaz:
Jovens
pomposos, reluzente biga,
O leão
e a mulher, e Deus que o diga.»
O tradutor quis ser tão
respeitoso, ser tão atilado na rima e na métrica que engomou o Yeats a um ponto
que o torna em objecto museológico. Pouco me sensibiliza este Yeats. Gosto muitíssimo mais do prefácio do livro, esclarecedor, bem informado, que das
traduções. É definitivamente muito difícil traduzir os clássicos.
Na sala de
aulas a indagar passeio», assim começa outro poema, que é para rimar com
recreio, ao terceiro verso, e eu fecho o livro.
A interdição da escrita, entre os
celtas, «é explicada por César com muita
clareza: os druidas não querem que a sua doutrina seja divulgada a qualquer um,
e a escrita torna as pessoas preguiçosas. Com efeito, o facto de escrever
suprime a função da memória…», lembra Markele, um especialista da cultura
celta.
De facto verificamos isso na
comunicação: quanto mais somos invadidos pela comunicação mais se instala um
eterno presente, que nos petrifica. De igual modo, interrogo, se este afã de
nos derramarmos em partilhas, opiniões e pronunciamentos no FB, não conterá em
si o desejo profundo de esquecimento, que a descarga nos pacifique,
secretamente. Porque a faculdade de pensar não se atinge pelo assédio, não é?
A magnífica fotografia de Filipe
Branquinho em cima leva-me a este capítulo de A Maldição de Ondina, onde precisamente um outro dos frescos do
hotel Central, na Rua do Bagamaio (ex-Rua Araújo, a institucionalizada rua da prostituição
em Maputo), faz parte da acção:
No entanto, recebera a encomenda de um
conto para uma revista de Barcelona e o tema era a vida nocturna das cidades, o
que o obrigava a espiolhar sob o manto da ilusão e da sordidez nocturna algumas
sílabas de néon, sede & sexo, a compassividade que inspira.
Pediu um uísque duplo. Habituava-se ao
ritmo sincopado das luzes e ao anacronismo dos seus tímpanos aturarem Boney
M - um funky corcunda e bicado pelo abutre do disco sound - trinta
anos depois do prazo de validade, quando uma multidão de unhas pintadas de
vermelho, suavemente, lhe coloriu o ombro.
- Darling, do you
looking for us?
Duas calmeironas de mini-saia e olhar de
gasolina. A de cabeleira loura, atestava-o os gestos soltos e o brilho da
esclerótica, estava ligeiramente tocada. Rodearam a mesa e sentaram-se, sem
cerimónias. César sentia-se uma plataforma petrolífera a atrair os tubarões –
sempre o incomodara naquele ambiente o cheiro a carniça, a sangue. A mais
sóbria exibia uma estampa no incisivo esquerdo, onde se via um velho marinheiro
a fumar cachimbo enquanto uma sereia lhe apalpava o músculo do outro braço. Uma
moda chegada de Captown, que pegara como brasa no mato.
- Quanto tempo dura essa estampa,
perguntou César.
- Três meses, vai sumindo.
- Empalidece.
- Darling, isso é português?
- Oh yes, indeed!
- Nice, como é que se diz, lindo?
- Em-pa-li-de-ce: fica pálido…
- Ah, yah, gramo demais esta profissão,
todos os dias aprendo uma palavra nova.
- As posições é que são sempre as mesmas… - Provocou a
‘loura’
- Não é? –
Reforça a amiga, sacudindo o peito numa gargalhada intempestiva. Depois
recompõe-se, olha César num desafio e atira:
- Tu, darling, o que é que
gostas no amor?
- Do silêncio
que se segue…
A resposta dele
suspendeu-lhes os gestos. A ‘loura’ é a primeira a reagir:
Nice… - E
retorque – Mas eu estou sempre muito ocupada em dar à sola…
- Não lhe
ligues… - Ameniza a outra – a minha amiga ‘tá muito revoltada porque o namorado
a deixou, ‘tá magoada… pagas-lhe um baileys?
César encolheu
os ombros ao mesmo tempo que a cabeça anuía. A luz baixou e a música do streap
invadiu a cena, impondo o silêncio.
- Gramo dele…-
Confidenciou para a outra a da cabeleira loura, ao mesmo tempo que poisava a
sua mão em cima da de César.
A famosa Silver
Girl, vinda em tournée directamente de Brazaville[1],
ocupou o centro da pista de dança. Segundo os relatos, abria o clítoris eriçado
como uma navalheira.
César saca do
bolso do casaco o seu pequeno caderno de apontamentos e escreve, indiferente ao
streap:
«À entrada do Hotel Central, os
baixos-relevos não enganam: a festa vai ser de foder até partir. É um hotel
para quem a tem segura. Como a do John O’Connor que, cansado da vaca loura que
tem em casa, meteu prego a fundo e duas horas depois franqueia a porta do Luso,
uma boate à moda antiga, com streapers e mulas boas, como ele diz, na ex-Rua
Araújo, a mais afamada babilónia das noites laurentinas.
O’Connor veio ao que todos os boers vêm: meter-se em
cima de uma preta como quem baldeia de água fria o motor que escalda.
Era nova a miúda, nunca a tinha visto. Ainda bem,
O’Connor não gosta de repetir os pratos. E a Laurinda ainda tem aquele recato
das novas.
Laurinda viveu sete anos na África do Sul e
compreende o afrikânder mas não lhe diz, visto a delicadeza nele não ser o
forte.
Combinam o preço e vão para o Hotel, a 50 m da boate.
À entrada do Hotel Central, ele, que lhe tinha posto
o braço sobre o ombro, mete-lhe a mão na mama, a imitar o baixo-relevo e solta
uma gargalhada alarve. Laurinda sabe que tem de o despachar, antes que a sua
brutalidade se torne pesada.
No quarto, despem-se e depois de dois mimos
grosseiros, ele ordena:
- Faz-me um bico.
Ela não está ali para ser relutante.
A meio do serviço
toca o telemóvel dele. A mão esquerda de O’Connor afaga a cabeça dela e a outra
ampara o telemóvel, e barafusta:
- Foda-se, a vaca não me larga, nem às duas da
manhã.
Fala da mulher. Ela quer interromper mas a mão dele
impede-a:
- Don’t stop… - E põe o telemóvel no altifalante…
- Estás a telefonar-me para quê? Aconteceu alguma
coisa ao Peter? - É o filho.
- Porco brochista…- responde-lhe do outro lado uma
voz embriagada - passaste-me o AIDS, filho da puta.
- Apanhas-te-a com o Iorg, minha puta…
- Tu é que inventas essas histórias para te
justificares. Aposto que estás em Maputo, com as tuas pretas.
- Sabes por quê? Mamam como tu nunca soubeste fazer,
minha vaca podre.
Amparando a cabeça de Laurinda, a sua mão continua a
pontuar o ritmo do broche. Responde a mulher:
- Já lhe disseste que tens AIDS?
- Não se fala com um naco de carne…
- Fascista!
- Fascista é o caralho do teu pai…
É aí que Laurinda é sacudida por um vómito provindo
do fundo dalguma mina e que, para se aguentar, num esforço incontrolável, fecha
os dentes. Estava fora de si, garantiu.
Oito da manhã. A caminho da tipografia, atravesso
como sempre a Rua Araújo, e à esquina encontro uma multidão rumorejante e
O´Connor a sair em maca, desacordado, do Hotel Central.
Na esplanada do Café Rossio, defronte das varandas
laterais do Hotel Central, uma rapariga ri e chora com o sucedido à amiga. É
ela que me conta o ocorrido, depois de o ouvir de Laurinda.
A polícia já passou no hotel mas nenhuma colega de
ofício delatou o nome da amiga. E se melhor gente, como Osíris, perdeu a pila,
por que não O’Connor?».
Fecha o caderno
e guarda-o.
A mais sóbria
das miúdas, está intrigada:
- Darling, nem viste a
baby!
César esboçou um
sorriso triste. Pediu-lhes nova rodada. Releu rapidamente o que tinha escrito.
Uma trampa repleta de clichés, mas era o realismo sujo, nonchalant,
cínico, que esperavam dele. Na verdade, pensa César, o estilo do escritor
resume-se à expressão que menos o assusta, desde que descobriu em miúdo que até
o triciclo lhe provocava vertigens. Onde é que li isto?
César engoliu o
seu Passport num sorvo e levantou o copo a pedir outro. Varria a sala, à
procura da empregada, quando o viu. Parecia uma fotografia desfocada no meio de
duas enguias que lhe disputavam a atenção. Teria mesmo aquela tonalidade sépia?
Estava, no mínimo, tão desinteressado pelo ambiente como César, mas – confirmá-lo-ia
a caminho do banheiro, ao entreolharem-se – verdadeiramente insólito era o seu
olhar metálico, insondável, de quem desde tempos imemoriais já só tem passado.»
Sem comentários:
Enviar um comentário