sábado, 4 de maio de 2013

LEITURAS NA RETRETE


Filipe Branquinho

Leio esta tradução de Paulo Vizioli de A Deserção dos Animais do Circo, de Yeats (Companhia das Letras, 2001):
«1

Busquei um tema que não foi achado;
Por seis semanas procurei, ou mais.
Talvez eu pare enfim, velho e alquebrado,
Mesmo sabendo que meus animais,
Verão e inverno, até chegar a idade,
Tenham estado todos em cartaz:
Jovens pomposos, reluzente biga,
O leão e a mulher, e Deus que o diga.»

 E fico com a sensação de que está tudo correctinho, o poema é que está morto.
O tradutor quis ser tão respeitoso, ser tão atilado na rima e na métrica que engomou o Yeats a um ponto que o torna em objecto museológico. Pouco me sensibiliza este Yeats. Gosto muitíssimo mais do prefácio do livro, esclarecedor, bem informado, que das traduções. É definitivamente muito difícil traduzir os clássicos.
Na sala de aulas a indagar passeio», assim começa outro poema, que é para rimar com recreio, ao terceiro verso, e eu fecho o livro.

 
 
A interdição da escrita, entre os celtas, «é explicada por César com muita clareza: os druidas não querem que a sua doutrina seja divulgada a qualquer um, e a escrita torna as pessoas preguiçosas. Com efeito, o facto de escrever suprime a função da memória…», lembra Markele, um especialista da cultura celta.
De facto verificamos isso na comunicação: quanto mais somos invadidos pela comunicação mais se instala um eterno presente, que nos petrifica. De igual modo, interrogo, se este afã de nos derramarmos em partilhas, opiniões e pronunciamentos no FB, não conterá em si o desejo profundo de esquecimento, que a descarga nos pacifique, secretamente. Porque a faculdade de pensar não se atinge pelo assédio, não é?

 

A magnífica fotografia de Filipe Branquinho em cima leva-me a este capítulo de A Maldição de Ondina, onde precisamente um outro dos frescos do hotel Central, na Rua do Bagamaio (ex-Rua Araújo, a institucionalizada rua da prostituição em Maputo), faz parte da acção:
 «Há quantos anos não entrava no Luso, a rainha das boîtes da ex-Rua Araújo, caudaloso rio de putas e de fogosas venalidades? Doze anos, quinze? As constantes idas e voltas entre Moçambique e Portugal foram-lhe alterando os ritmos e aos poucos a noite deixou de ter atractivos para César; deixara de enternecer-se com as pessoas, reduzindo-as a existências de papel, a «personagens» da série policial que o projectou como escritor. O casamento com Beatriz constituiu a machadada final na sua outrora afamada compulsão noctívaga, paralela ao seu entrosamento profissional na escrita, que o acondicionou no sótão dos artefactos literários: muita disciplina e contrita emoção.
No entanto, recebera a encomenda de um conto para uma revista de Barcelona e o tema era a vida nocturna das cidades, o que o obrigava a espiolhar sob o manto da ilusão e da sordidez nocturna algumas sílabas de néon, sede & sexo, a compassividade que inspira.
Pediu um uísque duplo. Habituava-se ao ritmo sincopado das luzes e ao anacronismo dos seus tímpanos aturarem Boney M - um funky corcunda e bicado pelo abutre do disco sound - trinta anos depois do prazo de validade, quando uma multidão de unhas pintadas de vermelho, suavemente, lhe coloriu o ombro.
- Darling, do you looking for us?
Duas calmeironas de mini-saia e olhar de gasolina. A de cabeleira loura, atestava-o os gestos soltos e o brilho da esclerótica, estava ligeiramente tocada. Rodearam a mesa e sentaram-se, sem cerimónias. César sentia-se uma plataforma petrolífera a atrair os tubarões – sempre o incomodara naquele ambiente o cheiro a carniça, a sangue. A mais sóbria exibia uma estampa no incisivo esquerdo, onde se via um velho marinheiro a fumar cachimbo enquanto uma sereia lhe apalpava o músculo do outro braço. Uma moda chegada de Captown, que pegara como brasa no mato.
- Quanto tempo dura essa estampa, perguntou César.
- Três meses, vai sumindo.
- Empalidece.
- Darling, isso é português?
- Oh yes, indeed!
- Nice, como é que se diz, lindo?
- Em-pa-li-de-ce: fica pálido…
- Ah, yah, gramo demais esta profissão, todos os dias aprendo uma palavra nova.
- As posições é que são sempre as mesmas… - Provocou a ‘loura’ 
- Não é? – Reforça a amiga, sacudindo o peito numa gargalhada intempestiva. Depois recompõe-se, olha César num desafio e atira:
- Tu, darling, o que é que gostas no amor?
- Do silêncio que se segue…
A resposta dele suspendeu-lhes os gestos. A ‘loura’ é a primeira a reagir:
Nice… - E retorque – Mas eu estou sempre muito ocupada em dar à sola…
- Não lhe ligues… - Ameniza a outra – a minha amiga ‘tá muito revoltada porque o namorado a deixou, ‘tá magoada… pagas-lhe um baileys?
César encolheu os ombros ao mesmo tempo que a cabeça anuía. A luz baixou e a música do streap invadiu a cena, impondo o silêncio.
- Gramo dele…- Confidenciou para a outra a da cabeleira loura, ao mesmo tempo que poisava a sua mão em cima da de César.
A famosa Silver Girl, vinda em tournée directamente de Brazaville[1], ocupou o centro da pista de dança. Segundo os relatos, abria o clítoris eriçado como uma navalheira.
César saca do bolso do casaco o seu pequeno caderno de apontamentos e escreve, indiferente ao streap:
 
«À entrada do Hotel Central, os baixos-relevos não enganam: a festa vai ser de foder até partir. É um hotel para quem a tem segura. Como a do John O’Connor que, cansado da vaca loura que tem em casa, meteu prego a fundo e duas horas depois franqueia a porta do Luso, uma boate à moda antiga, com streapers e mulas boas, como ele diz, na ex-Rua Araújo, a mais afamada babilónia das noites laurentinas. 
O’Connor veio ao que todos os boers vêm: meter-se em cima de uma preta como quem baldeia de água fria o motor que escalda.
Era nova a miúda, nunca a tinha visto. Ainda bem, O’Connor não gosta de repetir os pratos. E a Laurinda ainda tem aquele recato das novas.
Laurinda viveu sete anos na África do Sul e compreende o afrikânder mas não lhe diz, visto a delicadeza nele não ser o forte.
Combinam o preço e vão para o Hotel, a 50 m da boate.
À entrada do Hotel Central, ele, que lhe tinha posto o braço sobre o ombro, mete-lhe a mão na mama, a imitar o baixo-relevo e solta uma gargalhada alarve. Laurinda sabe que tem de o despachar, antes que a sua brutalidade se torne pesada.
No quarto, despem-se e depois de dois mimos grosseiros, ele ordena:
- Faz-me um bico. 
Ela não está ali para ser relutante.
A meio do serviço toca o telemóvel dele. A mão esquerda de O’Connor afaga a cabeça dela e a outra ampara o telemóvel, e barafusta:
- Foda-se, a vaca não me larga, nem às duas da manhã.
Fala da mulher. Ela quer interromper mas a mão dele impede-a:
- Don’t stop… - E põe o telemóvel no altifalante…
- Estás a telefonar-me para quê? Aconteceu alguma coisa ao Peter?  - É o filho.
- Porco brochista…- responde-lhe do outro lado uma voz embriagada - passaste-me o AIDS, filho da puta.
- Apanhas-te-a com o Iorg, minha puta…
- Tu é que inventas essas histórias para te justificares. Aposto que estás em Maputo, com as tuas pretas.
- Sabes por quê? Mamam como tu nunca soubeste fazer, minha vaca podre.
Amparando a cabeça de Laurinda, a sua mão continua a pontuar o ritmo do broche. Responde a mulher:
- Já lhe disseste que tens AIDS?
- Não se fala com um naco de carne…
- Fascista!
- Fascista é o caralho do teu pai…
É aí que Laurinda é sacudida por um vómito provindo do fundo dalguma mina e que, para se aguentar, num esforço incontrolável, fecha os dentes. Estava fora de si, garantiu.
Oito da manhã. A caminho da tipografia, atravesso como sempre a Rua Araújo, e à esquina encontro uma multidão rumorejante e O´Connor a sair em maca, desacordado, do Hotel Central.
Na esplanada do Café Rossio, defronte das varandas laterais do Hotel Central, uma rapariga ri e chora com o sucedido à amiga. É ela que me conta o ocorrido, depois de o ouvir de Laurinda.
A polícia já passou no hotel mas nenhuma colega de ofício delatou o nome da amiga. E se melhor gente, como Osíris, perdeu a pila, por que não O’Connor?».

Fecha o caderno e guarda-o.
A mais sóbria das miúdas, está intrigada:
- Darling, nem viste a baby!
César esboçou um sorriso triste. Pediu-lhes nova rodada. Releu rapidamente o que tinha escrito. Uma trampa repleta de clichés, mas era o realismo sujo, nonchalant, cínico, que esperavam dele. Na verdade, pensa César, o estilo do escritor resume-se à expressão que menos o assusta, desde que descobriu em miúdo que até o triciclo lhe provocava vertigens. Onde é que li isto?
César engoliu o seu Passport num sorvo e levantou o copo a pedir outro. Varria a sala, à procura da empregada, quando o viu. Parecia uma fotografia desfocada no meio de duas enguias que lhe disputavam a atenção. Teria mesmo aquela tonalidade sépia? Estava, no mínimo, tão desinteressado pelo ambiente como César, mas – confirmá-lo-ia a caminho do banheiro, ao entreolharem-se – verdadeiramente insólito era o seu olhar metálico, insondável, de quem desde tempos imemoriais já só tem passado.»

    



 


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