Ao longo da minha vida tenho tido alguns bons encontros. Um deles com a Maria Velho da Costa, que me ensinou muitíssimo sobre a escrita e até teve a generosidade de me aceitar como parceiro para um livro. Aqui tentei fazer-lhe a minha homenagem, num texto que teve como pretexto a recente adaptação de Casas Pardas para o palco, feita pela também excelente Luísa Costa Gomes. Saiu no Manual de Leituras de Casas Pardas, editado pelo TNSJ, que não teve a gentileza de me mandar uns exemplarinhos. O esquecimento há-de ser corrigido.
UMA BOA CICATRIZ NA SUA
ALMA
1. Voltar a Casas Pardas 30 anos depois do meu
primeiro assombro, num sórdido
tasco de Maputo,
enquanto à minha direita se murmura sobre técnicas de lavagem de dinheiro e à esquerda o glu-glu, glu-glu nas glotes femininas não afeiçoa uma
ária de Offenbach mas o caldo adstringente do mutchuchu (cabeça de vaca), é uma
experiência atordoadora, alucinante, e quase inenarrável, semelhante à de querer
trasladar para terra, com tenazes, algumas ínsuas.
Curiosamente, comecei a ler a Maria Velho da Costa pela Desescrita, cilindrando -
-me depois o Da Rosa Fixa. Foi esta a minha porta de entrada para o aluvião das
mnemónicas que a escrita de Velho da Costa levanta: iniciei-me pela desescrita
dos géneros. Há em Casas Pardas uma citação de Shakespeare do poema “A Lover’s
Complaint”, que a autora traduz assim:
Numa colina cuja côncava barriga reapalavrou
a história chorona de uma vala irmãpuseram-se os meus espíritos a ouvir a duas vozes
e deitou-me muito abaixo o desgraçado relato.
Dificilmente algo podia
ser mais exacto em relação ao seu “método”. A transitividade
do raccord que o
primeiro verso opera, “Numa colina cuja côncava barriga…”, desvela a inerência do processo criativo nos seus jogos verbais: ambivalência e metamorfose
– reapalavrar é a ignição.
Velho da Costa adora reapalavrar, talvez porque, no dizer do Herberto, tudo seja
o seu nome noutra coisa, ou então porque, ao invés, pela inquieta renomeação das
coisas e do mundo persiga a autora o alvor da palavra justa , o sulco que em câmara
lenta active o acontecimento como uma fidelidade ao dito, ao fiat lux do verbo
original. Inquietação que Elisa prenuncia: “Se Eu escrever, então terei a certeza
de que a escrita é também uma coisa frívola como um sapato pensado. Até lá tenho
que me comover por não saber o que hei-de calçar-lhes”; ou num diálogo do mesmo
capítulo, “I Casa de Elisa / Vaga”: “Dizes o meu nome sem nada dentro”.
A maiúscula do eu na primeira citação anuncia o demiurgo da escrita, um
demiurgo decaído, descrente como um sapato pensado e à nora com a adequação
face à eruptiva realidade: o que calçar para a unidade do espírito e do acontecimento?
Gente truncada, ou antes, desendereçada, a deste romance, e de tal forma que aliás
o marido da filha é o amante da mãe, como se a história do universo começasse por
um deslize de linguagem, num fundo impróprio.
querer achar numa floresta a entrada principal quando o seu conhecimento se faz
pelos desvios. Rapidamente percebemos que a autora desenvolve ferozmente a
perícope, uma figura de retórica, muito utilizada entre os predicadores. Consisteem pegar numa breve passagem da Bíblia e em reconstruir a partir daí, por encadeamento lógico e uso de analogias oportunas, todo o fundamento da fé cristã. É um jogo de propulsão fractal, do micro
ao macrocosmos, numa caça ao padrão que re-liga.
Quer isto dizer que não há no romance qualquer palavra desmotivada. No enterro
da mãe de Mary e de Elisa, Maria Velho da Costa descreve o cortejo do enterro e
às tantas escreve: “Mary sentia o braço despegado, sem apoio do de Frederico [o
marido], porque ele ia teso como um morto” (sublinhado meu). A partir deste fulcro
(que irradia uma empatia inusitada), podemos adivinhar um dos núcleos do livro: o
incesto entre genro e sogra, com imaginação pode-se encadear a história do romance
a partir deste nó, que é uma metáfora expansiva.
Daí o acerto da adaptação de Luísa Costa Gomes quanto ao modo como escolheu o
arranque para a peça. Ponho como hipótese que a sugestão para a solução adoptada
tenha partido desta frase, na cena de suicídio de Mary (tomados os comprimidos): “O
corpo ondula-te, as paredes movimentam-se como entranhas de tonel iluminadas
vivacíssimo, mas há uma grande e serena determinação de depor o teu espírito e a
proliferação das suas vozes” (sublinhado meu). Corolariamente, a peça abre com um
concerto de sombras, ecos e vozes, as que o espírito rememora, num fluxo descon-
tínuo, e vaza na mente antes da consciência se apagar. E antes que esta se apague
desfila a trança de aconteceres e vozes pretéritas, a trança que entremeia os nós
de uma vida; por isso diz o texto, “o teu braço oscila mole como um colo de cisne
velho”: o romance ressoa como um canto de cisne na véspera da morte, o filme do
que pudemos não perder , para glosar uma fala de Mary – mesmo que isto implique
a aceitação do bem e do mal.
E esse fantasmeado
momento coral (a caixa negra) com que abre a dramaturgia
propicia o surto de
reminiscências que a peça desencadeará. de que este será um espectáculo onde o sabor das palavras terá mil imagens para
desvendar, sendo Casas Pardas um romance para ser ouvido.
Observe-se como nele as frases não temem as rimas internas, ou engendram ali-
terações: “É a comiseração do Lúcio, cidadão dos aliados adiados”, “o assento de
minha precária passagem na preclara consciência, acrescida”; e se organizam por
polarizações (às vezes ópticas) que só reforçam a fonética dos vocábulos: “A terra
está quase branca, zebrada de brechas pretíssimas”, ou: “um aquário de água san-
guínea, peixes já disse lívidos”, ou: “não vou chorar outra vez, já chove”; podendo
as imagens até gerar sinestesias: “D. Marieta vem da cozinha com o tacão grosso ametralhar” (quem deixa de ouvir na sua cabeça o tacão, nesta frase?); e não faltam as
paranomásias: “Meus Manitos Maninhos Muitos”; ou o equilíbrio das assonâncias,
inúmeras: “Os candelabros em folha de alga em prata, os lavabos de cristal no seu
suporte de garra de grifo onde jaz uma pequena concha coral vivo”; e como mesmo
quando os parágrafos são de natureza mais imagética, obedecem absolutamente a
um pendor rítmico, que os comanda, bastando lê-los em voz alta para lhes sentir
a escansão: “Eu bebia chá, ele bebia água sentados sob árvores, as catatuas dormiam,
o sol radiava sobre uma carapaça de nuvens, fitável, sobre altíssimas ramadas, coado.
A cigana avançou, qual barca nazarena, toda casco silente e olho imenso à popa, as
saias de ondas, pé de rede em afago de areias, a manhã, a manha, os longos dedos
guitarreiros, mesma estatura de Angelo, os altaneiros rins, a cara marcada como solo
lunar, crateras de bexigas, Quer que lhe leia a sina, minha menina?”
São pouquíssimos exemplos entre milhões; em Casas Pardas, o esplendor da
língua, a sua percussão, torna secundária a trama, o enredo, ou antes, enovela-se
nela como em poucos romances.
A breve descrição de
uma figurante ocasional, “Isobel, a
Magnífica”, expõe muito
claramente os recursos
criativos desta escrita: “Tem voz de
rapaz mas não mais que os baixos sonoros da Greta. Um garbo insuperável e dois olhos amarelos com a
mesma placidez pronta de uma leoa com crias. Lisboa dá cabo dela”. A evocação de
Greta muda o apelido em substantivo e a leoa faz brotar automaticamente a sua rima,
e pela associação desloca. Em ambos os casos, a associação recorre ao ouvido, pois
Greta “reactualizou” de imediato a entranhada memória da actriz (“o ouvido-dizer
é um sétimo sentido”, diz-se algures no romance).
Chegar as Casas Pardas ao palco faz por isso parte da ordem natural das coisas.
Ainda bem que foi pelas mãos de uma outra escritora sensível aos acordes fonéticos
da língua. Logo na primeira fala da dramaturgia, lê-se: “Cabeça azoada de vozes de
toda a noite fechada a ver se aprendo, para onde ides, fugidos, correntes e deter-
minados, ganhá-lo, ganhá-lo – ganho”. Não se trata aqui apenas de uma questão de
fidelidade à matriz, mas de coragem. Da coragem necessária para ousar passar isto
para palco numa época de frenesim embrutecedor.
tempo e do espaço ordinários. Cada capítulo é um acordeão de reminiscências que
se conectam por um princípio de vizinhanças percoladas. Quem nos explica bem o
que é a percolação é Michel Serres, para falar do tempo. Diz ele: o tempo é como um
lenço dobrado, se espetarmos um alfinete no lenço dobrado os seus pontos de incisão
vão ligar lugares que pareciam muitos distantes com o lenço aberto. Aquilo que se
afigurava desgarrado é devolvido a uma unidade por uma vizinhança inesperada .
Aliás, o que é natural a um romance poliédrico, como os murais de Bizâncio, que
precisa de uma certa distância para se ver o efeito-de-conjunto: reanima-se essa
distância sempre que repetimos a leitura e verificamos então como tudo afinal se
enlaça e encaixa – a cada nova leitura somos penetrados pelo inconsciente do texto .
Lê-se no capítulo “II Casa de Elisa / Os Trabalhos de Casa: Pote Podre”: “Posso contar histórias, posso lembrar-me, a quem é que eu vou culpar deste pousio nas
desordens?, eu não devia ter as imagens tão isoladamente engastadas, falta-me o
percebimento do tecido, vou por brechas de luz, já disse, os ratados da malhada”.
Quem comenta aqui? A autora num aparte ao “método descosido” do seu romance?
Elisa, como alter ego, sobre a sua prática de uma escrita impulsiva, intermitente,
cheia mas intervalar – como a sua consciência?
Casas Pardas, à semelhança de Spleen, de Baudelaire, é um bicho ao qual seguimos
hipnotizados pela tensão que dimana mas que, se ao princípio não deslindamos qual
é a cabeça e a cauda, depois se revela, num ápice, na violência que o habita, mobiliza e
articula. Desenvolve a sua locomoção numa ordem diferente de relação com a unidade.
O capítulo “I Casa de Mary / Acquosa”, por exemplo, é um prodígio de construção
romanesca. A forma como a autora pulveriza a durée do tempo sucessivo e o torna
plástico para encaixar passado e presente, a corrente da consciência e os aconteci-
mentos exteriores, a situação e o engaste da personagem nos seus traumas conju-
gais, diálogos e monólogos, no breve espaço duma casa de banho, é intraduzível para
qualquer outra linguagem. Talvez Sokurov o conseguisse em cinema, dado que a
câmara condensa e catalisa e que os movimentos de câmara são propícios à elipse, mas
no teatro, onde cada espectador é que faz a sua découpage de cena, não sendo como no
cinema conduzido por uma ordem prévia de significação, é muito mais difícil ilustrar
o tempo dilatado deste palimpsesto da percepção.
O que seria impossível
não aproveitar deste capítulo, em qualquer dramaturgia
que se preze, são os
diálogos, violentíssimos, e definidores duma relação conjugal que chegou ao seu esboroamento final – o que evidentemente não escapa a Luísa Costa Gomes. Mas se trago este capítulo à liça é para evidenciar que, em qualquer
dramaturgia de Casas Pardas, a forma como se articulam os tempos múltiplos da
acção seria sempre uma das grandes dificuldades a ultrapassar.
Luísa Costa Gomes não aplaina a dificuldade e fornece soluções de grande eficácia,
como no exemplo que se segue, em que deslizamos dum momento de elocução da
infância para o tempo presente, quando Elvira e António, o seu marido, esperam o
pai da primeira na gare:
elvira : “Vais pequena e descalça por um carreiro na bouça, com o avental da escola
que tem duas asas folheadas em cada ombro de chita vermelha às pintas. Tens dois
carrapiços de tranças de cada lado da cabeça, rematados com linha âncora, da grossa
de bordar, da vermelhão. A cada ferradela de urtiga ou tufo de silva guinchavas de
gozo ufano e pisavas, pisavas pelos ares, adejando do teu caminho os besouros e
os varejões alvoraçados, as velhas borboletas de fim de Verão, o ar gordo dos céus
baixos arruivados, com o teu irmão a berrar atrás Espera, Vira, espera. Chegas já
a um chão de caruma e areia e borras e restos de parra amarela e bagas abertas.
Agachas-te por detrás de um tonel vazio e mijas à pressa. O teu irmão põe-te o
dedo no olho do cu e tu ris-te a dar-lhe uma murraça falsa que o apanha no meio
do coletinho surrado. Urinaste os pés, estão quentes e entras num grande júbilo
com o teu irmão atrás por um portal de postes de castanho pela frescura da adega
adentro onde, no vozear dos vultos e no estrondear surdo das sombras vermelhas
do escuro, não atinas logo com o teu pai.
antónio : Ná, vem à tabela, a gente é que chegámos cedo, assentamo-nos ali naquele
banco. Deixa lá, a gente não podia adivinhar que apanhava logo dois eléctricos de
seguida, isto hoje foi um dia estuporado, já não se endireita”. O raccord é plenamente conseguido e julgo que será executado por uma “natural” mudança de registo na representação. Mas além disso, segue-se-lhe uma solução dramatúrgica excelente: a
da troca no alinhamento do “Monólogo do Soldado Quando Cão”, montagem que irá possibilitar uma leitura nova. Enquanto Elvira e António esperam pela chegada
do comboio, António conta como lhe remói o que, como soldado, o obrigaram
a fazer nessa noite, a malhar num vendaval de putos (estudantes) que protestavam
contra a guerra do Ultramar. E esta condensação que a dramaturgia realizou,
sobrepondo a espera por um farrapo de pai ao afloramento da consciência política, faz
com que, quando o pai desce do comboio, a sua figura possa ser lida como o retrato de
um país falido e entregue à autoritária teimosia dos desmemoriados.
5. Exactamente a meio do romance, como se fora
um biombo, há uma Última Ceia,
a que se assiste no segundo
acto de a “Terça Casa”. Tem a força
da farsa com que Buñuel encenou a Última Ceia dos pobres, em Viridiana, só que reunindo à mesa a
desvitalizada burguesia marcelista. É um momento delirante, que roça o nonsense
e encadeia um fluxo mágico de palavras vãs, em perpétuo curto-circuito, irredento
mas marcado por um humor convulsivo e ácido. Raramente o “bom-gosto” da burgue -
sia portuguesa foi esbofeteado com tanta violência.
Este é um momento-chave no livro, e não apenas porque nele Mary se despede
socialmente, num discurso claríssimo, sem arrebiques, e que termina num pungente:
Um dia destes eu fecho os olhos paro de respirar muito quieta de pé e as pessoas vão
ter só bastante pena porque eu mereço isso. Mas no fundo ninguém dá por nada.
Eu queria também dizer que ninguém tem culpa nenhuma e pedir muita desculpa
de os estar a incomodar. Mas esta é que é a verdade. Também queria dizer que se
algum dia alguém gostasse muito de mim eu não sabia o que havia de fazer porque
eu não sei como é que se prefere excepto aquele cão que eu disse que me preferia.
E eu também não soube o que é que havia de lhe fazer porque não se pode coçar
um cão melhor do que ele se coça. Era isto que eu queria dizer. Que tenho muita
pena e que acho que não se deve viver assim.
O diálogo constrói a
mais “amena desconversa”, tendo a ferocidade como regra:
“mulher ii : Ó Ziza, a menina ainda é praticante?elisa: Hoje não, estou menstruada”.
Toda esta cena me faz
lembrar o que dizia Koltès sobre a escrita de diálogos: que não
passam de monólogos com
encontros esporádicos nas expectativas. A não-comuni-cação campeia. Mas o que ressalta nesta cena-chave, a que inteligentemente Luísa
Costa Gomes chamou “A Bolha”, é que nela todas as personagens presentes orbitam
dentro da sua, inquebrável, mónada – é gente isolada, paralisada naquilo que lhes
é imóvel, sem contacto .
Com acerto, a dramaturgia enxugou um pouco o texto – havia pequenas gorduras,
como referências um bocadinho epocais demais, passaram-se 35 anos desde a edição
do livro – e sobretudo fez de novo uma operação de montagem feliz com a introdu-
ção da entrada de José Oom antes do discurso de Mary; pois assim se reforça o peso
fruste deste amante no destino de Mary: nem sequer ele manifesta estar ali por ela
mas antes por causa do bavarois de chocolate.
6. A mãe Maria do Carmo “troca” de homem com a filha Maria das Dores (não há coincidências neste romance), do mesmo modo que o pai Abílio troca
os nomes de todos os filhos, no idêntico movimento que contagia também esta cena:
“elisa: Lídia, vá mudar de bata e de avental. Bata preta e avental branco. Crista.
Luvas quando for servir.
lídia: Como, menina?
elisa: Bata preta e avental branco, Lídia.
lídia: Sim, menina.
sara : Porque é que a menina a mandou mudar de farda?
elisa: Porque ela é da casa, Sara, nunca está bem como está” (sublinhado meu).
Em Casas Pardas ninguém tem a palavra ou o gesto conformes,
ninguém está ou se
comporta segundo o seu
lugar, ninguém se salva da insignificância dos gestos, todos eles fatigados (ou impregnados) por uma memória que ao repetir-se só desconecta
hábitos e emoções… e ainda por cima “cientes de que pelo sangue morre o ânimo”.
E é desânimo transversal às classes. Ou seja, como em A Regra do Jogo, de Renoir,
a miséria humana é um contágio e algo que se comunga unilateralmente, pelo que,
quase por inteiro, as personagens se sentem aquém, frustes, irrealizadas, em défice,
partilhando, para além da patine dos modos discursivos que as difere, a pequenez
e o medo da intensidade quer do presente, quer do futuro.
A história com que Malraux abre as suas Antimemórias sempre me impressionou.
Malraux encontra o futuro capelão de Vercors, e pergunta-lhe: “Que lhe ensinou
a confissão sobre os homens?”; “Sabe”, responde aquele, “a confissão não ensina
nada… No entanto, primeiro as pessoas são mais infelizes do que se pensa… e depois,
a essência de tudo é que não há gente grande...”
Casas Pardas expõe a aflitiva e desatinada equivalência entre grandes e pequenos,
patrões e serviçais, mas não cristaliza, não faz prevalecer o desespero, nem cai
numa simetria especular, e prefere abrir um poro, colocando a esperança do lado
dos pequenos, dos deserdados da História. A ébria cegueira de Mary, a crueldade de
Frederico, a indiferença de António, o atormentado egoísmo de Maria do Carmo, a
vacilação em Elisa entre o fingimento e a sinceridade – eis uma família de “handi-
capados”, de almas dispostas a desistir de tudo por uma imagem estável de si próprias .
E esta é muito provavelmente a deformação com que nos ilude sempre a aura do
fascismo , aquele de que nem damos conta que de nós se apodera pela razão apontada
para o que perdeu Mary: “Porque a ignomínia cuidada fica bem a Mary, fica-lhe
lindamente”.
Casas Pardas, em termos de painel humano, seria neste aspecto um
romance negro
(“Só me resta todo o
desconhecido e a inefável memória dos infernos”, resume Elisa), não fosse o contraponto popular nas desinteressadas generosidades de Rosa e Estela,
uma ama recordada e uma amiga – gente pobre, irrelevante, mas que incandesceu a
algidez da vida com as surpresas de uma indivisível bondade –, e fechar a narrativa
com a luminosa ejaculação feminina de Elvira, a irmã de Lídia, a criada da casa,
supostamente arrebatada pelo seu primeiro orgasmo e por uma súbita, desatada,
sintonia com o presente e com o seu corpo nele, que a reinscreveu (em unidade do
corpo e do espírito ) no prazer arredio. E diz-lhe o marido, depois desse “sobressalto”:
“Pareces a cara da aurora lavada na nascente”.
Não haveria melhor
fecho e a ele se cinge Luísa Costa Gomes, que cirurgicamente
enxuga a exaltação
lírica, que no romance tem sentido mas no palco seria uma enxur-rada em overacting .
Terminemos pois também nós com o desejo que aí se exprime: “Caio agora
nas grandes águas nocturnas onde desabam rios e se retomam ares, que a água é
sempre mais, benigna, mor, e é de seu comércio com o astro hiante que se revolvem
as estações. Mas durmo já, a língua inerme, porém no merecimento da felicidade
entendida que só da felicidade pode vir”.
7. No meu lúgubre tasco de Maputo ouço o
seguinte diálogo, que dedico às duas
escritoras:
Jura ela, sacudindo a fúria da estiagem,
e sopesando-lhe um peito na palma da mão: “Esta rilação vai funcionar muito bem, ‘cê
vai ter uma boa cicatriz na sua alma”.
Meia hora depois, a sua pachorra espaneja
ainda as reticências dele: “Não escolho nada… contigo só escorro!” Voam
duas Laurentinas antes dela se confessar
andorinha exilada: “Não volto pra ele,
aquele é só pra bater, é estrago, mas ti digo , miolo de crocodilo cura
asmático, cura até flor de isquileto ”.
E aí rendeu os lábios aos bico da andorinha, o intranquilo*.
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