domingo, 19 de maio de 2013

UM REMO PARA PAULO JOSÉ MIRANDA

                                                                                     Saul Leiter
                                                                

Há um conto do moçambicano Carneiro Gonçalves, O Remo, que sempre me agradou muito e cujo final não esqueço:

«Sabes o que me apetece? Qualquer dia pego num remo e fujo. Mato adiante, só paro quando tropeçar na primeira aldeia. Logo que veja um homem: Sabes o que é isto?, e mostro-lhe o remo. Se ele disser que é um remo continuo a fugir. Juro-te que ninguém me agarra. Fugirei até desentranhar nova aldeia, até que ela me surja, por entre as franjas das árvores mais altas da floresta, limpa como no princípio do mundo. E logo que veja o primeiro homem pergunto: Sabes o que é isto? E se mesmo assim ele disser que é um remo continuarei a fugir. Quando enfim encontrar o homem que for capaz de  dizer que aquilo é uma pá de um moinho, espeto o remo no chão, instalo-me e recomeço a viver.»

Este homem foge dos sentidos únicos, movido pelo espírito de um irrigador de infinitos. O tenaz desejo que o impele à errância preserva, por outro lado, e paradoxalmente, a unicidade da arte, no sentido em que valida atrevidamente nas imagens a ambivalência que as descristaliza, conciliando o singular recorte hidrográfico com a potência do delta.   

É num espírito idêntico que Exúpery desenha a jibóia que faz a digestão de um elefante – o que as pessoas “sensatas” tomam invariavelmente por um desenxabido chapéu. Curioso é que libertação das coisas da cadeia da sua aparência reproduz-se até nos erros da ilustração: Exupery empresta uma peruca verde aos três embondeiros do planeta do Principezinho deixando-nos sem dúvidas quanto ao facto do escritor nunca ter visto tal árvore - contudo, como o narrador confessa terem sido aqueles embondeiros “inspirados por uma grande sensação de urgência” legitima-se que uma certa e inesperada prenhez se estenda à folhagem da árvore, que prolifera, cheia como a motivação ininterrupta.

É mais que um simples jogo: o homem que diz convictamente que um remo é uma pá de um moinho foi “movido” por uma mutação do olhar que abole qualquer ricto estilístico, o que autoriza a que se enterre o remo, fixo, no chão até enflorescer o moinho que um dia levantará voo com o vento, levando o fugitivo dentro.

Porque aquele que aceita em si a semente do devir, da metamorfose, nunca aceitará que esta cesse.

A arte que abre uma janela para o devir é a que mais me interessa, porque essa encara o mundo como um mundo imperfeito, portanto, etimologicamente, um mundo inacabado. Talvez nos caiba a nós perfazê-lo, acabá-lo. Para os celtas era esta a missão que Deus deixara aos homens quando se retirara para descansar, no sétimo dia. Agrada-me este desafio e a sua responsabilidade.


Sem comentários:

Enviar um comentário