domingo, 1 de abril de 2012

DÁ-ME UMA TOSTA DE HEGEL, POR FAVOR?

olhando rothko, mais quente que hegel

Um tipo aos 53 anos começa a querer matar algumas lacunas no seu piqueno sistema, a tentar encaixar algumas peças numa abóbada que se apresenta desdentada. Ler Hegel, por exemplo. Devorei todos os anti-hegelianos mas nunca me bati a sério com o objecto da sanha, para além dumas páginas da Estética, por obrigações de trabalho. E então fui juntando dúzia e meia de livros dele e sobre ele para me decidir um dia, até um Dicionário Hegel arranjei.
Há muito que tenho este encontro adiado. Na verdade, é assustador enfrentar um pensador para quem a História da Filosofia é a manifestação progressiva de uma verdade que extingue todas as perguntas.
Esta pretensão só me lembra um “apanhado” que vi uma vez e me pôs a pensar. Os actores que conduziam a rábula passeavam-se pelo Centro Comercial das Amoreiras e aproveitavam as escadas rolantes para se meterem com as mulheres, exclamando “ai que olhos tão bonitos, nunca vi uns olhos azuis assim!”, apesar da vítima ter olhos castanhos. Insistiam e teimavam na cor azul dos olhos, contra a negação das pessoas. Então os actores chamavam outros passantes, evidentemente figurantes contratados, que confirmavam o azul dos olhos das vítimas. O espantoso é que em 80% dos casos, ao fim da terceira mentira, as pessoas abandonavam a certeza e desatavam a ter dúvidas. A permeabilidade das pessoas à persuasão da unanimidade, não obstante todas as evidências, era quase uma coisa obscena. 
Peguei então no primeiro, coisinha ligeira para me entronizar: 10 lições sobre Hegel, de Deyve Redyson, seguir-se-ão dois ou três comentários no agá (Hartmann, Heidegger, Hyppolite), coisas mais pesadas, e depois bater-me-ei aos seus escritos de juventude e ao volume da Estética em torno da poesia. É o meu programa para o mês de Abril.  
Mas, continuando, a leitura avançava porreirinha até que deparei com isto: «A Fenomenologia do Espírito foi terminada, segundo Hegel, na noite que precedeu a batalha de Jena, ‘um desses acontecimentos, escreveu, que só se produzem a cada cem ou mil anos’
Recuo, para ver melhor. Esfrego os olhos: retomo… terminada, segundo Hegel, na noite que precedeu a batalha de Jena, ‘um desses acontecimentos que só se produzem a cada cem ou mil anos’.
Que Hegel considerasse a Fenomenologia… um acontecimento da importância da batalha de Jena, não me causa qualquer prurido, não há nenhum grande filósofo que não tenha em si uma parcela de solisipsismo e não se considere póstumo e a coisinha mais importante que aconteceu ao mundo, depois do seu próprio (do filósofo) nascimento. Até aqui, tudo dentro da ordem das coisas. O que me pasma é a “hesitação” entre cem e mil anos, como se fosse um lapso menor. Portanto, o método científico de Hegel prevê uma deriva entre cem e mil anos nos seus cálculos probabilísticos para a eclosão de um acontecimento nuclear e não só o formula como, pela forma como o faz, considera essa diferença menor, irrelevante, invisível.
Porque é que não me espanta que a seguir, num mero jogo de simetrias, leia: «…o absoluto é espírito, isto é, o espírito absoluto. Dessa forma, Hegel enxerga no Absoluto a unidade e a diversidades simultâneas, pois, para ele, o absoluto é o que é a si mesmo
Não sei a que diversidade, ou antes, a que singularidades pode estar sensível alguém para quem se confundem e plasmam o cem e o mil, e temo que o cento e cinquenta e três ou o seiscentos e nove (um número que sempre me apaixonou) deixem de ser relevantes, na finalidade maior (o mil) em que se fundem. Porque, nesta lógica, os fins justificam todos os meios na condição da inscrição dos mesmos se apagar entretanto… E só me vem à cabeça a afirmação do Dada Georges Ribemont-Dessaignes que adoptei como lema para a vida: «Evidentemente. Também eu posso dizer: nove milhões setecentos e quatro mil e trezentos e vinte cinco. Mas… conheces o quatro?... conheces o seis?»
Por outro lado, Hegel ao sustentar que o absoluto é o que é a si mesmo parece-me embarcar numa desvantagem de base, na medida em que aquele que coincide totalmente consigo mesmo deixa de se ver, isto é, de capturar a consciência; e talvez aí se imponha recomeçar tudo de novo como o deus absconditus que busca a própria sombra, numa labuta que não se afasta da de Sísifo. E como evitar, como o sabia Husserl, que a visão seja "cegada" pelo visto?  Por outro lado, esta coincidência a si não me parece conforme à forma como Redyson define o Espírito Absoluto em Hegel: «…o espírito absoluto é infinito, uma vez que o espírito constitui um objecto para o seu próprio espírito e que necessariamente se reflecte em algo distinto dele mesmo.» Tenho a impressão que é melhor passar imediatamente para o Châtelet, para ver se ele me explica melhor este imbróglio.
Não começa bem, o meu mês. 

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