quarta-feira, 18 de abril de 2012

5x5 CEREJAS SALTEADAS

o cesto das cerejas, soutine

Cinco poetas maiúsculos. As traduções, como sempre minúsculas, são minhas

 

CULMINAÇÃO DA DOR


ouço inclusive como riem
as montanhas,
no abaixo e acima
das ladeiras azuis.
e em baixo na água
choram os peixes
e toda a água
é as suas lágrimas.

oiço-a, corre
como as garrafas na polpa
da noite
enquanto a tristeza se enovela
e lateja
no meu relógio
e dispõe
os ramalhetes
na cómoda
ou torna-se papel

sobre o chão
calçadeira ticket
da lavandaria
ou fumo de cigarro
escalando
um templo de obscuras

trepadeiras...
que importa
pouco amor
ou coisa pouca
a vida a coisa
passa,
o que conta
é observar as paredes
eu nasci para isso -

nasci para roubar
rosas
das avenidas da morte.
Charles Bukovski




NOTAS DE UM HOMEM ESPANTADO

Nascido debaixo de grandes nuvens
e tu também,
debaixo das nuvens,
eis-nos

*

ela muitas vezes está aqui,
tal como vos vejo
O instante depois dela é mais além
ouço-a cantar numa rua vizinha
É a vastidão, Senhor, a vastidão

*
Ao meio-dia no momento em que não morre
mais de uma folha
à sua sombra sobrepõe-se
Eu de todo disperso nesta larga paisagem
nascida da luz dos meus olhos.

*

Esta manhã o pleno de plantas
bichos e homens
saiu de uma só casa
repartida pelos caminhos,
nada respira acima deles
além da luz

*

Aquele que atravessou o mar
e aquele que se contenta com pouco
e todos os outros,
movemo-nos como os dedos duma mão.

*

Os móveis estalam
O patamar berra
Quem é que se evade daquela coisa?

*

A sombra cresce como os mortos
Entre o dia
e a noite
hesito

*

Tremer como varas verdes? As portas
uma após outra
estão fechadas:
ele vai chegar.

*

Mas não nem o sofrimento é certo
Não passará de um instante
De resto estaremos perto

*

Se bem que eu não acompanhe o ritmo
o melhor é saber antes de expulsar-me.
Mais que uma palavra
uma só palavra
e raspo-me.

Jean Tardieu





CALEIDOSCÓPIO

Sacode com toda a força,
como um caleidoscópio,
o teu próprio crânio.
E a seguir espreita
nos buracos dos teus olhos,
vê o que se engendrou.
Se nada aconteceu, aleluia…
sacode-a firmemente
três vezes, sete, nove vezes.
Nada? É um sinal de alguma coisa
e sacode, meu velho, sacode
e volta a espreitar no cerne.
Sacode de maneira a que a casa seja abalada
que o caminho se recurve
e as montanhas tombem de joelhos;
que pestanejem céleres, convulsas, as estrelas
e que o homem sopese na sua mão o coração.
Mas se esbarrares com a fealdade
agarra o teu crâneo como um pote rachado
e atira-o!
Ou nem isso.
Enche-o de terra,
de bom adubo,
e planta lá dentro
um gerânio vermelho.

Mihai Beniuc


 

Os olhos do meu espírito não têm
a boca do meu espírito,
As mãos do meu espírito não têm
o corpo do meu espírito.

Esquartejado flutuo no abismo.
Azamboado de morte como uma água inquinada.

Já não quer dizer que não foi nada?
Todo um jogo de luzes e espelhos,
Todo um retábulo de fumo tenebroso?

As veias do meu espírito não têm
o sangue do meu espírito.

Juan-Eduardo Cirlot




O ÚLTIMO ENCONTRO

O último encontro foi tristonho.
Eu esperava uma resolução impossível:
que me seguisses a uma cidade ignota
unicamente ligada ao afundamento
de um submarino alemão
e tu esperavas que eu não to propusesse.
Com a vertigem dos suicidas
disse-te: «Vem comigo», adivinhando-o improvável,
e tu – sabendo-o impossível – respondeste:
«É lugar a que nada me prende » e deste a conversa
por arrumada. Pus-me de pé
como quem fecha um livro
ainda que soubesse – as cicatrizes reconhecem-se –
que agora começava outro capítulo.
Ia sonhar contigo – numa cidade ignota –
onde apenas um velho submarino alemão
se deu por perdido.
Ia escrever-te cartas que não te enviaria.
E tu, ias esperar o meu regresso
- Penélope infiel – com ambiguidade,
sabendo que os meus curtos regressos
não seriam definitivos. Não sou Ulisses. Não
conheci Ítaca. Tudo o que perdi
perdi-o muito ciente
e o que não ganhei
foi por desleixo. O último encontro
foi, sim, um pouco triste.

Cristina Peri Rossi





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