Parece-me que chegámos a um novo período
histórico em que ninguém fará por nós, e que será preciso lutar sem concessões
pela defesa de alguns direitos, enquanto, simultaneamente, pagamos o galo a
Asclépio, pois essa é a dignidade que nos resta.
para examinar como desaparecia a
consciência
e que poder almejar sobre ela. René Daumal,
que a ser um lírico preferia ter sido Barrabás
e lavar as mãos sujas ao lado da
salvação.
Em 1936, oito anos antes sua morte,
escreveu: «De um fruto que se deixa
apodrecer
na terra, pode ainda sair uma nova
árvore.
Dessa árvore, frutos novos às centenas.
Mas se o poema é um fruto, não é
o poeta uma árvore.
Ele pede-vos que tomais as suas palavras
e as comeis imediatamente.
Porque ele não pode, sozinho,
produzir o seu fruto.
É preciso ser dois para fazer um poema».
Podia não ter escrito uma palavra mais,
o poeta de Monte Análogo, e teria
dito tudo.
Inclusive sobre «the time out of joint»,
pois, enquanto fazia retiros e traduzia
do
sânscrito e entesourava em comentários
beatos
o Livre d’Heures D’ÉstienneChevalier,
os nazis tomavam Paris e trocavam por
miúdos
de galinha o carácter do povo.
É preciso ser dois para fazer o poema,
mas não garanto que Daumal
tenha pago o galo a Asclépio.
Pela mesma hora, Eva de Vitray-
-Meyerovitch ouviu bater à porta. Abriu
e viu
Frankenstein, de olhos vítreos e pronto
para a degola.
Vinha com ele um oficial da Wehrmacht,
que arvorava um ar maçado. E
perguntaram-lhe pelo marido, como ela,
um operacional da Resistência.
Em pânico, ignorando absolutamente a
língua,
Eva apanhou-se a proferir no mais
castiço calão berlinense: «Esse, deu à
sola
com uma galdéria qualquer e, sabe que
mais,
estou-me nas tintas!», e continuou
num arrazoado tão convincente que o
oficial
lhe deu os parabéns pelo alemão
antes de despedir-se, resignado.
Não parou Eva de tremer depois deles
saírem
e amassou numa bola o maço de tabaco
que reservara para a troca de um pão.
Foi depois deste milagre que Eva
se foi aproximando dos sufis
e traduziu o Rumi e o Iqbal para francês
e uma luz lhe embrenhou um astro nos
olhos.
Mas antes pagou o galo a Asclépio.
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