sexta-feira, 27 de abril de 2012

O GALO DE ASCLÉPIO

                                                                             picasso






Parece-me que chegámos a um novo período histórico em que ninguém fará por nós, e que será preciso lutar sem concessões pela defesa de alguns direitos, enquanto, simultaneamente, pagamos o galo a Asclépio, pois essa é a dignidade que nos resta.


O GALO DE ASCLÉPIO


Aos 16 anos intoxicava-se com benzina

para examinar como desaparecia a consciência

e que poder almejar sobre ela.  René Daumal,

que a ser um lírico preferia ter sido Barrabás

e lavar as mãos sujas ao lado da salvação.

Em 1936, oito anos antes sua morte,

escreveu: «De um fruto que se deixa apodrecer

na terra, pode ainda sair uma nova árvore.

Dessa árvore, frutos novos às centenas.

Mas se o poema é um fruto, não é

o poeta uma árvore.

Ele pede-vos que tomais as suas palavras

e as comeis imediatamente.

Porque ele não pode, sozinho,

produzir o seu fruto.

É preciso ser dois para fazer um poema».



Podia não ter escrito uma palavra mais,

o poeta de Monte Análogo, e teria dito tudo.

Inclusive sobre «the time out of joint»,

pois, enquanto fazia retiros e traduzia do

sânscrito e entesourava em comentários beatos

o Livre d’Heures D’ÉstienneChevalier,

os nazis tomavam Paris e trocavam por miúdos

de galinha o carácter do povo.

É preciso ser dois para fazer o poema,

mas não garanto que Daumal

tenha pago o galo a Asclépio.



Pela mesma hora, Eva de Vitray-

-Meyerovitch ouviu bater à porta. Abriu e viu

Frankenstein, de olhos vítreos e pronto para a degola.

Vinha com ele um oficial da Wehrmacht,

que arvorava um ar maçado. E

perguntaram-lhe pelo marido, como ela,

um operacional da Resistência.

Em pânico, ignorando absolutamente a língua,

Eva apanhou-se a proferir no mais

castiço calão berlinense: «Esse, deu à sola

com uma galdéria qualquer e, sabe que mais,

estou-me nas tintas!», e continuou

num arrazoado tão convincente que o oficial

lhe deu os parabéns pelo alemão

antes de despedir-se, resignado.



Não parou Eva de tremer depois deles saírem

e amassou numa bola o maço de tabaco

que reservara para a troca de um pão.

Foi depois deste milagre que Eva

se foi aproximando dos sufis

e traduziu o Rumi e o Iqbal para francês

e uma luz lhe embrenhou um astro nos olhos.

Mas antes pagou o galo a Asclépio.







Sem comentários:

Enviar um comentário