domingo, 29 de abril de 2012

A ALMA CONTA OS PASSOS

                                                           matta, integral do silêncio

E de súbito apareceu em Lisboa com um urgência, um frenesim, uma energia fantástica. Durou três anos a nossa amizade, intensa; nesse período ele editou seis números da revista ibérica Canal, foi para o México e voltou, e passava a vida errante, entre Portugal e Espanha. De repente, numa véspera de natal teve uma morte macaca. Não há outra expressão, para morrer afogado dentro do próprio carro, capotado como uma peça do lego numa conduta de esgoto, na noite da maior chuvada da década.
Chamava-se Augusto Oliveira Mendes.
Fui agora buscar uma coisa à despensa e caiu-me aos pés o único livro que editou, já póstumo. Hei-de postar coisas deles, agora presto-lhe homenagem com o poema que escrevi sobre o choque da morte dele.


A ALMA CONTA OS PASSOS




                                                                      À memória de Augusto Oliveira Mendes



«La destinée de chaque homme ne lui est personnelle

que dans la mesure où il arrive de ressembler

à ce que sa mémoire contenait déjà»,

Edouard Mallea                                                   

A surpresa é total: nunca tinha regado este meu morto.

Jura Caballero Bonald, poeta que partilhávamos:

«o futuro dura tão pouco que é já presente.»

Adivinho-o nas tintas para a matéria volátil:



a apalpar ainda, na extensão da pele, as junções.

Nele, nenhuma compreensão ulterior forçava

as fontes, as mãos - o silêncio que as rói.

Como dormir entre dois tornados? Em miúdo



laçava lagartixas com a destreza do felino

que s' esgueira ao pensamento. Mas

despertar entre dois tornados? Finou-se

escaqueirado pela água que temia, dentro de uma 4-L:



alcião mijote porque vidente. A morte, uma fraude

mais infalível que o Papa, despenhou-o nas suas capelas

imperfeitas. E mentiu-lhe: essas abóbadas não são

as da Sílvia Kristel da nossa adolescência,



nem é sedosa a unha que lhe greta a pele: o crapuloso anjo

que nele catava deus cata agora fungos. Como dizer

que este mundo sem excessos, com contas a prazo

e a expensas de Alardo e Vitalis não era o seu?



Que esta gente de uma glamorosa gelatina

não era a sua? Mesmo nos frutos abertos à pressão

dos polegares algo indeslindável resiste. Nenhum

morto é passivo: levou uma hora dentro de água



a debater-se, pois nem sempre é o genoma humano

Passport. Tinha três cães cor de absinto.

O Trovoada (minto de memória) tremia como um canavial,

quando farejava homens com o entorse das perdizes na venta.



Sexos com bigode e ostras com limão: indispensáveis,

uns e outras – é uma questão de género!, afiançou-me

na tasca do Turco, em Alcântara Terra,

aguardávamos pelo reboque dos seguros.



Os búlgaros e sérvios clandestinos tomavam-nos

por panascas ou bufos. É quase sempre

com razão que se enganam sobre nós.

Só que eu não percebi. Nem foi por mal.



Não lhe faltava ferocidade no sorriso. Melhor:

disponível como certas veias ao clamor de uma irrestrita

pândega, tinha o sorriso do frade

que sonha episcopal com a madre superior.



Dele dificilmente diriam: uma vida de estudo

e tão cediço movimento! Não há aqui nada de sincero,

as mil faces do plátano dão ouvidos ao vento

e o mais é o mudo desassossego de quem olha



– grafou num livro que lhe emprestei. Não são

as suas palavras que porventura faltam mas a malícia,

a mostarda que as impedia de exangues

quedarem-se ao primeiro assento. Enfadava-me



de morte o seu William Clift (engates de segunda

nos cinemas de subúrbio) e eu metralhava-o com o Hugo

Claus (engates de morte às estrelas de subúrbio).

A chuva lá fora continua a soletrar-lhe o nome –



e já não sei por que ledo desengano s’extraviaram

o valão e o flamengo. Às vezes encafuava nas palavras

mas dilucido nitidamente como profético o que, depois

de virarmos uma garrafa de Jameson, repetia:



nunca vi um naufrago tremer de ansiedade! E eu retorquia,

imbecil: Khrisna estigmatiza a ilusão de não-agir.

Espalha-brasas, sempre que eu procurava ligar isto

à ilusão da poesia pura, da sua despersonalização, anuía



solene «hum, hum»  e voltava a encher-me o copo.

Ele, que até na morte agiu demais. Grandeza

de homem: falhar o encontro e não perder o humor.

Grandeza de pássaro: estudar a migração das tartarugas.



Grandeza de poeta: serenar, quando no cockpit da morte

o telemóvel nos falha. Tinhas razão, inadvertido amigo,

a rádio devia servir os alpinistas e assombrá-los

com o mar, e aos lavadores de janelas com os chilreios tropicais



– perdoa-lhes, passam Mozart! Algo que não calque

uma madrugada de risos e giestas – tudo o que pedias.

A rosa transparente que se desfaz no gelo

sustém nos espinhos um livro de horas: segredou-me



o tordo de Eliot. Tão inútil, o tordo de Eliot.

Olha, meu caro, um peixe é um reflexo que não conheceu

retorno - e a vida te guarde de voltares. Lázaro

nem sempre ri. Via-se: tinhas a teimosia do temerário



que se lança ao fogo antes de aceitar que queima.

Deixa agora que as veias corram como mato.

É perdulária a memória, como o vinho desarrolhado?

Deixa, o corpo precisa de imagens e a terra de chuva.



Por isso, nunca o desejo cerra as cancelas.

Bebo: não me esqueça Dante, em revisão pé-de-galo.

Bebo: o silêncio atrai os assédios e é ainda cedo para honrar

os dissabores. Bebo: gosto de ver as barrigas a rir,



sacolejadas pelo medo. Bebo, um olho indómito

escava do topo à bainha, onde o rasgão que atou o teu olhar

à palavra descortinou um fundo impróprio.

Não provinha de Delfos - hélas! – a palavra deste poeta-



-agricultor: ele há sempre o estorvo e o estorninho!

Um sonho sem margens, querido Augusto, chamava Pascal

à infância. Mas quando se depara um futuro sem leito, é o quê?

Choca, a exuberância com que deus quis subir



pela escada rolante que desemboca na cave. Sentes

ainda as agulhas da dormência, a estrela polar

que te lucila o sangue? Acertaste Vladimir Holan:

os mortos são invejosos. É esse o visco irrevogável,



o drama: a pretérita inveja dos mortos. O único invejoso

que conheci puro foi o meu amigo Augusto,

que deglutia sem gelo, do sangue até à alba.

Nas condutas, a água contrai-se ao contacto do betão.



O mesmo protocolo não se aplica à carne.

Está para saber se foi a sua reprimida gaguez

ou o decoro mas deu um morto exemplar e, fora

uma unha ou outra, manteve as cores. O nevoeiro



que por ora o decanta e as pegadas que imprimia

nas areias do México são uma, a mesma coisa?

Às vezes parecia querer fugir. Fugir, apenas. De Lisboa

para Sevilha, e dos bares de flamenco para Tampico,



fugia das mulheres. Aflige-me vê-las lânguidas

e de repente lívidas! - essa imagem transtornava o amor

que lhes tinha, e de mulher em mulher fugia da morte

que nele habitava como o crocitar nocturno da madeira.



O sangue coalhado nos lábios e o clac das tesouras

no silêncio comprovam, a morte nunca nos é familiar:

há que purificá-la noutras sombras e noutros medos,

como o dos vimes contra o vento, como o da plaina



contra os nós, o das urzes à beira do açude, ou no medo

do sexo quando rompe a disformidade do xisto.

Habituado a que me aparecesses sem avisar (o último

dessa estirpe), desprega-se agora um silêncio



novo, sem rugas, igual ao do lençol estendido

por mãos acostumadas. O nome é o caule onde deus

sustém a sua queda? Desconfia -  à mínima

distracção, rio que desças é a fonte que perdes.

 

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