segunda-feira, 23 de abril de 2012

BUROCRACIAS

SERÁ?

1
Uma urgência inesperada impõe-me uma ida ao banco. Como é inesperada não tenho comigo nem cheques nem o cartão. Terei de ir ao balcão pedir o meu número de conta e um cheque avulso.
Fila. Lá chego transpirado ao balcão. Pedem-me o passaporte. Explico que se trata da minha conta e que eles têm fotocópia do meu passaporte no processo. A mão é inclemente. A mão que leva o documento à máquina de fotocópias e tira a décima milionésima cópia do meu passaporte. Preencho entretanto o impresso para o pedido de cheque avulso, pelo qual irei pagar a módica quantia de 7 euros.
O caixa chama-me dez minutos depois. Preencho o cheque avulso, passo-lho. Ele devolve-mo outra vez, não assinou por trás. Enquanto eu assino ele levanta-se e vai com o meu passaporte à máquina de fotocópias nas suas costas para tirar outra cópia do passaporte. O que não obsta a que, diligente, escreva os dados do meu passaporte no verso do cheque.
Mira outra vez o cheque, antes de começar a meter os dados no computador. Franze uma sobrancelha e passo-mo, de novo. Está em falta, diz. Com o quê, pergunto, olhando parvo para o cheque. Tem que escrever nesta linha o seu nome ou “ao próprio”. É a linha do endereço. Tento perceber, oiça, mas sou eu a levantar um cheque avulso da minha própria conta. Esclarece-me ele definitivo, precisamente, como é um cheque avulso e não é passado a outrem tem que escrever obrigatoriamente ao próprio. 
Os bancos em Moçambique dão os maiores lucros do mundo, acho que é o segundo ou terceiro país onde mais lucram. Não me perguntem porquê.

2
Definitivamente, dar aulas neste período pós-simbólico, de soberania do relativismo, onde tudo tem de ser regido pelo modelo da eficácia e os entusiasmos se medem em termos de funcionalidade e dos valores da venalidade, é uma coisa triste.
Hoje estava a explicar aos alunos os três mecanismos do trabalho do sonho, segundo Freud: condensação, deslocação, identificação. Ilustrei a explanação com vários exemplos do quotidiano deles, de forma a agarrá-los. E eles pareciam ter aderido, riam, intervinham, faziam perguntas e fui deixando que eles assim experimentassem a informação que lhes estava a ser transmitida. E os sonhos é sempre uma matéria que naturalmente suscita interesse.
Chegamos à deslocação e eu, antes de irmos buscar equivalentes ao quotidiano deles, dou o exemplo clássico de Freud, do senhor que não conseguia nomear o seu problema e que sonhava com guindastes. Ao fim de umas sessões a ouvir falar dos omnipresentes guindastes do sonho do paciente, Freud decidiu decompor a palavra e deu-se conta de que esta se compunha de outras duas: do verbo guindar (erguer) e do substantivo haste. E então, por simples associação de ideias, percebeu que o paciente sofria de impotência crónica.
Foi uma festa, e eles acrescentaram três ou quatro exemplos que ali foram gizados e a participação da aula foi total.
O clima da aula estava quente, quase eufórico, à entrada do terceiro mecanismo, a identificação. E, de repente, num estalar de dedos, sinto-os frios, irrequietos, pouco receptivos. E pergunto, está na hora? E eles confirmam. Proponho, são cinco minutos, deixem-me acabar isto em cinco minutos, mas mostraram-se absolutamente arredios, indiferentes ao que há dois minutos atrás os estava a entusiasmar. E saímos da aula, com aquela pequena parte da matéria pendurada, coxa, exactamente às 12h – nem mais um segundo.
Se o problema tivesse a ver com o meu latinório eles não me classificariam normalmente como um dos melhores professores do curso. Não, o problema é geral – eles já não acreditam, eles já não se entusiasmam, ou só com a moderação que baste, eles estão lá para o canudo, ponto.
Sim, Max Weber, a burocracia venceu, o mundo está desencantado.



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