Marcelo Ariel é escritor, performer e proprietário de um “sebo” (um alfarrábio) itinerante num subúrbio de Santos, sendo, neste momento, um dos mais interessantes poetas brasileiros. Mas o melhor é citar Adelto Gonçalves: «A exemplo de Paulo Lins (1958), autor do romance Cidade de Deus, oriundo de espaços periféricos e conflagrados em que o poder do Estado há muito foi substituído pelo poder de facções armadas pelo dinheiro do tráfico de drogas, Marcelo Ariel vem de uma “perigosa” linhagem de escritores», o que é corroborado por Manuel da Costa Pinto, da revista Cult, uma das melhores revistas literárias do Brasil, quando escreve: «…tantas antologias de poetas da periferia valem apenas por trazerem poetas da periferia... E, também por isso, um poeta como Marcelo Ariel, autor de “Tratado dos Anjos Afogados”, deve ser saudado como acontecimento sem precedentes.
Não há qualquer condescendência em dizer que esse escritor negro, de 40 anos, mora em Cubatão, na baixada santista, onde vive de um ‘sebo itinerante’. Pois se o livro reúne bom número de poemas sobre chacinas e presídios, o teor testemunhal se conecta a outros martírios e nos restitui ao coração de um fracasso maior, que funda a experiência poética moderna.
Na série “Vila Socó: Libertada”, os poemas partem de uma tragédia real – o incêndio provocado na favela de Cubatão por um oleoduto, em 1984 –, mas se transformam em urna funerária na qual os corpos em combustão se juntam às cinzas deixadas na história e na literatura.
Assim, em “Caranguejos Aplaudem Nagasaki”, uma Beatriz saída dos círculos infernais de Dante vaga por essas ruínas em chamas, essa Pompéia tropical que é também símile do genocídio nuclear e outros holocaustos.
A narrativa de Ariel é ora cinematográfica, ora espasmódica – e sempre saturada de uma erudição selvagem, citando lado a lado Kafka, Cy Twombly, Paul Celan, Cronenberg e Nuno Ramos.»
É este poema que reproduzimos em baixo, mais a outros dois que também pertencem ao livro Tratado dos Anjos Afogados.
E tive a felicidade de ser convidado pelo autor para escrever o prefácio do próximo livro dele, a sair este ano. Obrigado Marcelo.
CARANGUEJOS APLAUDEM NAGASAKI
para Gilberto Mendes & Mano Brown
(Vila Socó)
Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro
Beatriz mãe solteira antes de morrer deu um inútil pontapé na porta
No ar
gritos mudos
a noite branca da fumaça envolve tudo
alguém no bar da esquina
pensa em Hiroxima
nas vozes
horror e curiosidade acordaram a cidade
se misturando
dentro do inferno olhos clamam
por telefone
o ministro é informado
– O fogo os consome...
A sirene das fábricas não
silencia
Dois serafins passando pelo local
sussurram no ouvido
do Criador
“Vila Socó: meu amor”
Uma velha permaneceu deitada
em volta da cabeça na auréola
o último pensamento passa
o coro das sirenes
no meio do breu iluminado
uma garça voa assustada
com os humanos e seu inferno criado
no mangue o vento move as folhas
Um bombeiro grita:
– KSL! O fogo está contra o vento! Câmbio...
Foi Deus quem quis
diz o mendigo
que sobreviveu porque estava dormindo no bueiro da avenida.
Um orgasmo é cortado ao meio
quando o casal percebe o fogo
queimando o espelho.
Voltando no tempo
lamentamos
o movimento do gás
levíssimo iceberg
que converteu fogo em fogo, horror em horror
Vila Socó
estacionou na História
ao lado de Pompéia, Joelma e Andrea Doria
Pensando nisso
ergo neste poema um memorial
para nós mesmos
vítimas vivas
do tempo
onde se movimenta a morte se espalhando na paisagem
como o gás
que também incendeia o sol
(bomba de extensão infinita)
Beatriz sentou perto da porta e ficou olhando o fogo.
Até que invade a cena a luz suave de um outro sol frio
Fim de jogo.
(O que não queima)
Beatriz agora é outra coisa e contempla:
raios negros num céu negro
depois brancos num céu branco
suavemente penetrei num jardim
onde uma única árvore existe.
(O incêndio acaba e a garça pousa no mangue, onde os anjos sonham)
Naquela noite um acordou
andou no meio das chamas
e as chamas
o queimaram.
Cubatão |
POETA EM CUBATÃO
num céu que não nos protege
contemplando a procissão dos falsos replicantes
sendo sugada pela interzona industrial
cercada de favelas
pétalas dessa flor do mal
ouvindo o sino de fogo de Rimbaud
(que aqui seria só mais um desempregado carregando o
pólen da morte
flor enorme e cósmica
desse jardim das trevas
onde os nomes das cidades ou dos Poetas
serão nada)
Um sol negro irradia esse silêncio atômico
Voltando ao poema
ponto final do ser,
a besta pára
na Praça Euclides Figueiredo, desço
entro na Rua Camões e sigo pela
Machado de Assis.
Amém.
O AMOR
No ultra-sonho
estar sendo é ter sido
onde um polvo
epiléptico feito de dois corpos
procura em vão
a luz entre carcaças
depois se transforma
num transparente e maravilhoso
pássaro cego.
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