domingo, 26 de fevereiro de 2012

A DUPLA FACE DO ESCRITOR

janus, o meu carro de sonho, entrava por uma porta e saía por outra automaticamente, o que no meu entender até dispensa o trajecto


É flagrante o contraste entre a forma como me veem os outros e me veem em casa, onde sou duplamente catarrento e raramente desmancho a catadura. As minhas filhas sabem que “quando quero” sou animado e bem-disposto e isso traduz-se em ansiedade e torna mais inexplicável o meu resmoneio, a minha “distância”. E sou acusado de egoísmo – eu que por amor abandonei posições bem mais vantajosas – e de indiferença. No fundo, todos temos razão. Que sentido faria ter abandonado tudo, se a isso não se seguisse uma devoção obsessiva à escrita (o perímetro da minha estulta vocação) e, por outro lado, como manter os fluidos domésticos amenos sem um mínimo de dedicação? Equilíbrio instável.
O que me liga à Teresa, sem muito custo (não sendo embora isento de discussões), para além do óbvio das filhas e das afinidades, foi ela ter aceitado implicitamente que vivemos em adultério e que a minha “legítima” é o isolamento que penhoro na escrita. Houve uma altura em que a isso se somava o alcoolismo, fantasma dominado.
Mas a escrita exige esta dimensão da exclusividade, nada saudável, e não admite rival, ou só a espaços quando, por cansaço, nos alheamos mutuamente. Não tem nada de humano o desapego a que nos confina – é o contrário das tretas que ensino em Comunicação Interpessoal, ó meu querido Bateson perdoa-me lá – e lamento reconhecer que troco um contacto humano de terceiro grau pela escrita de um conto que me satisfaça ( - embora se dissesse o contrário também seria verdadeiro).
Se a disciplina da escrita me trouxe um aparente apaziguamento dos instintos – sou fiel ao “amor único” – é porque na verdade apenas sublimo (e constato como o D.H. Lawrence que está por estudar a força da sublimação), não há em mim o menor acatamento dos meus “penchements” selváticos, aprendi apenas a dizer não e a regatear o tempo, sendo certo que se fosse católico estaria frito por pecados de pensamento e omissão.
Na verdade estou, pelo meu lado, absolutamente encurralado pelo egoísmo da escrita que me acua e trepana e devora a pouca inteligência às colheradas, como faz Hannibal aos seus incautos. Se houver um escritor que diga que se quisesse dispensava esta crueldade é porque ainda não é um adicto, e vive em pura bazófia como um artesão de best-sellers que está carimbado da medula às sinapses pelas fórmulas.
Há um bocadinho de forçado (de balela romântica) na afirmação de Aragon de que nunca terá escrito uma história de que conhecesse o desenvolvimento e que terá sido sempre, ao escrever, como um leitor que faz o conhecimento de uma paisagem ou dos personagens (o seu carácter, biografia, e destino) à medida que os lê. Mas digamos que a coisa se fica pela metade e que o mais importante está de facto no que desconhecíamos antes de ter acontecido a escrita.  
Esta ignorância é como uma lapa que simbioticamente se confunde com a pele, que faz desejar a insegurança de um pensamento em estado nascente.
Quem conviveu comigo nos jornais durante vinte anos sabe que eu nunca estive “integrado”, sempre um bocado à margem, o que me tornava suspeito, pois quem é que este gajo se julga, pensavam. Nunca me julguei assado ou cozido, sentia-me apenas em liberdade condicional e um tipo entre comas porta-se de outra maneira e não dá muita importância ao que está a fazer. Por isso seria incapaz de fazer como tantos jornalistas que reúnem os artiguelhos e as suas suspicazes opiniões em livro. E bons artigos fiz. Mas as opiniões para mim pouco contam. Há antes algo de que padeço, está para além da minha inteligência ou do aparato, e o que faço agora é unicamente um meio, uma travessia.
O melhor está para vir, nas costas fica o rasto dos meus fracassos. A todos os poemas que publiquei até hoje carece o ímpeto do arpão do capitão Ahab.
Porque o escritor almeja, como lembrava o Proust, embora isso esteja esquecido, inventar dentro da língua uma língua nova, e para que tal enxurrada suceda não são permitidas folgas. Enfim, mais ao menos. Na verdade, só se entra no “paraíso” pela porta dos fundos, tirem o cavalinho da chuva os que ambicionam lá penetrar pelo portão da frente – só a quem se distrai do seu propósito lhe acontece penetrar. Permitir esta distração é o que visam as correntes alternas da vigília. Afinal (como no amor) só lá penetra quem já é transparente.
A muitos títulos preferia viver em Paris do que em Maputo (uma absoluto erro de cálculo quando decidimos partir), mas a vantagem de estar em Maputo é que somos irrecuperavelmente o outro e ficamos extensivamente sujeitos à pressão do olhar “nativo” – como irredimíveis estrangeiros. Esta condição mantém no ponto uma tensão que nos situa e não autoriza que alguma vez sejam amorfos os lugares. Ficamos então adequadamente desconfortáveis, gerando-se um clima propício à criação.
É claríssimo para mim que o meu isolamento em Maputo me fez crescer como escritor, que o meu anonimato me desencadeou uma energia nova, que a distância me recuperou o humor e o pleno sentido das proporções (ainda que a distância na comunicação gere tantos equívocos e provoque silêncios e mal-entendidos, por exemplo: quem não me conhece como pessoa e não vê os meus gestos, o meu sorriso, toma às vezes por literal o que é irónico, pura paródia, e confunde o que diz o meu personagem momentâneo comigo) e que mesmo em termos humanos – apesar do que digo atrás – ganhei um lastro que não tinha. No fundo, saí da esfera da literatice para a do vivido.
O que visto de fora me parece acrescentar uma pele áspera e insensível, como a do Rinoceronte de Ionesco. Sócios iméritos da vida.
Bom, há duas horas que me mantenho na esplanada, garatujando e lendo, enquanto a Teresa se ocupa das crianças na piscina. Há que ir substitui-la durante um pedaço, dar umas braçadas com as miúdas, ver como a Jade simula o mecanismo das ondas com o chouriço ou sonhar que um dia ouvirei a Luna tocar violino debaixo de água, rirmos com algumas partidas durante cinco minutos, até que o chapão de uma bóer na água me lembre uma freira a mergulhar num charco de rãs e isso me arranque ao recinto para ir anotar num caderno encardido e já de língua de fora mais um cabotino canteiro de flores.     
  


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