sábado, 25 de fevereiro de 2012

4x1: O ABYSMO DAS CARREIRAS DO AMOR


Dedico estas traduções, minhas, ao João Paulo Cotrim que foi agraciado (é assim que se diz, não é?) com um Prémio Revelação para a Abysmo. Como ele no fundo é um santo devassado pelas hóstias feitas com farinha alucinógenica que invadiram o Brasil, aqui lhe administro o veneno:

FAZER, DESPERTAR

Aí, quem
te respira
às cinco da manhã, na luz mortiça?
Verão.
Farejo-te,     quentes
os lugares onde os nossos corpos se tocam, soa
uma suave  melodia nos teus pulmões,
não há palavras, a minha cabeça
                 e ombros movem-se na madrugada absorvem
                               os diferentes ângulos de uma carne e de um
rosto adormecidos
onde o ar se enovela,
junto a mim.
Inspiro, cola-se
a mim
o teu cheiro
na bruxuleante amarelecida luz, obtenho 
diversos ângulos do teu rosto, dos teus seios, as
tuas ancas encaixam-se sob o liso doce ventre, um
rosto diferente de cada vez
que me mexo, perspectiva das ancas, um seio

arredonda-se. Em Guadalajara, a 55
quilómetros de Madrid
                         gritam-no todos os placardes,
soerguo-me sobre um cotovelo, repouso
enfim a minha cabeça entre as tuas pernas,
tomo o teu gosto, a
única coisa
que resta.                                                                              

Paul Blackburn

COSMOGONIA

Desdobrava ligeiramente a coxa
encaixando-a entre as pernas,
e por cima colocava
a sua perna esquerda, pelo exterior
da minha coxa direita.

Joan Brossa

NO AR QUENTE DE ABRIL


Nus no ar quente de Abril,
estendidos sob os pinheiros
na ensolarada reentrância de uma falésia.
Tu ajoelhas-te sobre mim e noto
pequenas incisões vermelhas nas tuas espáduas,
como mordeduras, no sítio
onde as pinhas calcavam a carne.
Encontramos as mesmas marcas,
turvando as linhas dos estratos, na falésia,
por cima das nossas cabeças. Sequoia
Langdorfii antes do período glacial,
e sempervirens nos nossos dias,
entre elas a diferença é mínima
comparada com o desfilar dos anos.

Aqui, no doce e moribundo odor
das flores primaveris, rejeitados,
dois destroços em comunhão -
os nossos corpos frescos e nus
que a sombra desta árvore uniu.
Pelo espaço de um instante,
escapámos à rudeza do amor,
do amor perdido, do amor
traído. E o que poderia ter sido
e o que era, afeiçoaram as suas linhas
àquilo que é – para unicamente
deixar estes ideogramas
impressos sobre os imortais
hidrocarbonatos de carne e de pedra.

Kenneth Rexroth

O SONO VENCEU-A POR UNS MINUTOS


Quem seria por Deus quem era
aquele homem meio abstraído
que olhava a lua cúmplice
o copo sempre atestado
um cigarro caído entre os lábios
e nu como o demónio?
O sono venceu-a por uns minutos
mas ele não se moveu. Observa
o amante, o conhecido de poucas horas,
se bem que ele sim parecia sabê-la de cor
apesar de se terem acabado de encontrar.
Olha o relógio. Pensa na sua casa:
na quietude que a mantém
enquanto ela... patetices!
Com assombro constata agora
que não sente pena ou sobressalto.
Levanta-se para beber:
ele vai ouvi-la e virá ao seu lado
para voltar a estremecê-la.

Juan Agustin Goytisolo



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