sábado, 25 de fevereiro de 2012

ALGUNS POEMAS COM FIGURAS

david hockney: banhada
Em 2010, depois de ter visto duas provas de um livro, Bar La Fontaine, que seria editado pela Cosmorama, desloquei-me em Julho a Lisboa, entre outras coisas para o lançamento do livro e acabei por saber, por insistência minha, já em Lisboa, que o livro afinal não seria editado por insolvência da editora.

Foi triste, sobretudo, por ter sido tudo feito pela calada, pela omissão, sem a hombridade de uma conversa entre adultos, e eu ter feito uma viagem de 10 000 km absolutamente iludido.

Era um livro com 150 páginas e ficou irremediavelmente encalhado. Partes do livro seriam distribuídas pelo livro seguinte, Não se Emenda, a Chuva, e por um inédito, que em princípio sairá este ano. Mas uma série de poemas ficarão à deriva, sem chão. Como estes poemas com figuras:     



O CÉREBRO DE LENINE: O MAPA DAS ILUSÕES 


Somos ainda o resto de um mundo antigo, um dedo de criança

                     deixado para trás na fresta da porta.

No ano de 1927, namoriscava o meu avô

       – futuro falangista da Legião Estrangeira – uma flausina

empertigada que se furtava ao adestramento manual

nas matinés do Lethes em Faro,

               inaugurou-se em Berlim uma exposição sobre Lenine.

E aí se mostrava, em lâminas sabiamente documentadas,

o cérebro do político. Imensas ampliações

             fotográficas reproduziam as diferentes camadas do cérebro

e pela 8ªou 9ª camada, a marca do génio era anotada a vermelho.

Vivia-se claramente um momento em que o entusiasmo,

            mesmo estando a perder por sete a zero, comia a relva.

No século em que nasci, ainda um dedo de criança

latejava na abóbada estrelada, algures para Órion.




DA AMAZÓNIA 

1

«Eis os pássaros arremessados ao peito de Deus,   
                      cravados na sua aorta»: o último verso
não escrito por Mário Faustino, poeta de Belém do Pará,
sinistrado por desastre de avião, no único voo
que lhe foi impossível evitar
                desde que sonhara, anos antes,
que faleceria em desastre aéreo.

Há intuições tramadas, piores
                 que poemas concebidos sem pecado.
Há-de Deus ter olhos para quê?  


2 

Eis um rio que se intervala, a árvore.
                                  Julgava eu.

Na Amazónia é tudo um,
               ou a batida é em microtons:
verde e esmeralda.
Tudo o que aquele índio emudecido
na banqueta desejaria explicar ao cassetete
                da força de intervenção que lhe invadiu
o peito, a aldeia, a mando dos garimpeiros.

Eis um céu que se intervala:
            não são nuvens mas a ignomínia.
O deserto carece de sentido, basta-lhe não ser.



 O QUEIJO DE THOMAS MERTON 


Thomas Merton, trapista, foi dispensado

na inspecção militar por não ter os dentes suficientes,

o que o safou de dar com as fuças no Mar do Norte,

                   como o seu irmão Jean-Paul.

Mas Merton, a quem não faltavam os incisivos,

e era o tremendo de um «sensacionista místico»

                  (diria Paulo Leminsky),

levou um dia aos seus amigos um queijo do mosteiro.

Estes, sornas, maldizentes, chamaram o maitre-d’hotel

e mostraram-lhe o «queijo do monge».

O maitre, homem de improviso,

julgando-se picado por uma piada

de que não estava a ver o alcance,

                   carregou o sobrolho

e examinou detidamente o lacticínio.

O lance seguinte foi de sorriso rasgado,

pisando as sílabas: «Ah, eis-me

finalmente ciente de que um monge

                   é como uma cabra!».

O maitre-d´hotel tinha razão:

um trapista é intransigente como uma cabra

porque quando mastiga a erva não fala,

e se rumina não fala, e se dorme não fala,

e quando urina flúi, e quando contempla

                    fica lento como a lesma,

e se reza não faz sala, e quando côa

o soro do coalho no leite fermentado,

                     não raciocina, e,

havendo um grilo a tocar violino

                  no claustro, escuta e frui.

Os seus amigos riram de si próprios

rindo do cozinheiro – sem compreenderem

que o monge é tão verde como a cabra

e como ela não quebra os fluxos da erva,

da água, o mosteiro de silêncio

com que o vento

                   perdoa os lapsos do pastor. 






NÃO SE EMENDA A CHUVA 



«Reaprender tudo com a dor

que chameja nas costas,

acordar para a claridade

e encaixar: só em mim

não houve restauro…»,

calcetei, eu sílaba a sílaba,

numa derradeira página

de uma antologia de Gabriel

Ferrater, catalão nascido

ainda em liberdade, num «ro-

dado enredo de entrepierna»,



mas que depois do franquismo

escolheu não ficar entre línguas,

e lavrou com acinte na língua

de Salvador Espriu poemas

que conversam como os musgosos

molhes e dispensam o estilo

«porque não se emenda a chuva»

(- embora nas bebedeiras,

amiúde, se escudasse na farsa,

isto antes de quebrar as gafas).



Gabriel, que tinha uma erudição

aracnídea e aprendeu polaco

para ler Gombrowicz, não chegou

a conhecer a democracia

porque («lo diré del revés»)

arrancou a sua pedra angular ao Fado

(«Olha a torre: como se inclina»),

asfixiando-se com um saco

de plástico. Isto, uns mesitos

antes de fazer cinquenta,

oxidação que não aceitava para si.



Releio-o enviesadamente (as-

simetrias do álcool) na noite

em que perfaço meio século,

e sublinho de urgência:

«Consternado, um caracol a meio

de um muro seco». E de repente

paro… julgo ouvir a sua voz rouca

de ressaca.  Pigarreio. Já não temo,

o tipo que ouve vozes não está

doido: trabalha com outro tipo

de hipóteses. Beberico e retomo

a leitura de um poema

sobre a caducidade, intitulado

As Moscas de Outubro.




TEATRO E ZOOLOGIA 



Graciosos unicórnios, nos semáforos de Nova Iorque?

Desde que aquela fera da Broadway quis encenar O Rinoceronte.

Uma alvorada de cotovias cadenciou a chamada intercontinental.

Ionesco, o dos Cárpatos, tartamudeou a tudo que sim:

«oh yes… oui…oui…je comprend… yes…j’accepte!»



Mês e meio depois, voltou o romeno a erguer o auscultador.

O americano estava interdito. ‘Desembuche, homem!’,

encorajou o dramaturgo, a pulsos com o terceiro vin rouge. 

A eminência parda detectara uma metástase sombria

entre o segundo e o terceiro acto. Mas um ‘negro’,

sossegava, desatara o nó. Que foi que acrescentaram,

trovejou o autor de A Cantora Careca.



Lembra-se, Béranger vai a casa do amigo averiguar

o seu silêncio… (pausa) pusemo-lo ao telefone,

a tentar avisá-lo da visita. Ionesco,

(a vida é quando não é sentida na pessoa de outro,

explicou mais tarde) teve uma quebra de tensão.



À fera da Broadway não metia espécie a insânia.

Mudava a sua mãe em rinoceronte? Ça va!

As coxas da amada sabiam a corato?

É a ordem das coisas. O luminotécnico,

ao terceiro dia de ensaios, exibia um corno

a meio da fronte? Não era esse o tema da peça:

‘faça-você-mesmo, mostre o rinoceronte que há em si!’?

Minudências que armavam a congruência da fábula

ou, quando muito (se, afinal, até o Messian

se converteu à passarinhagem), elucidavam

a aparatosa tropelia com que o tempo maneja os cordéis.



Inadmissível, isso sim, um homem bater à porta

dum amigo sem avisar. Não há modo de escamotear,

pensou o romeno com os seus botões (e ao refugiar-se

em casa de seus botões, Ionesco entronizava a solidão

das personagens), a inteligência vive no buraco de golfe

onde o coelho parte o ilíaco e o homem é o único costume

alheio a si mesmo. Olhou-se ao espelho, sobre

a mesinha do telefone: estava um caco,

seria patético insistir na porta lúbrica

duma ou outra palavra ainda virgem.



Não é mau, este rouge da Sardenha,

sublinhou, estalando na língua um certo travo

a derrota. Serviu-se de um penalty

e esperou que uma plateia de tartarugas ovacionasse.




DA POESIA  



1 

Fora acusado de plágio

      pelas sombras chinesas.

                  Nunca mais foi o mesmo.

Uma vez contou: ‘Num sonho, sobrevoo Veneza

de helicóptero com Mastroianni a meu lado,

         que comenta, É uma bela cidade sem pés,

de varandas pelos joelhos!’,

para rematar: ‘achas que devo contar

               este sonho como meu?’

Repliquei: ‘Como neva!

Olha, não me levaram os deuses cedo

e já só o branco me embriaga.

Partilho contigo a decepção,

                 ou aceito como só meu

o pólen derramado no chão?’





2 (morte do jovem poeta) 



Observa: estão tapadas as linhas de passe.

No futebol e na poesia a mais pequena estaca

está pela hora da morte. Isto



não enredaria em varejeiras o jovem

literato se a letra tumefacta do seu corpo

não esbarrasse na seca exasperação do dela.



O melindre é este: o alcance do poema

é curto e resvala nos olhos do leitor que, 

embora de comum magnifique as estátuas,



nem sempre lhe cede as pupilas. Pior,

se inabordável parece ao intérprete,

ou duma polpa amassada que há sete gerações



ninguém empolga.‘Compreende as pessoas,

mas não os sonhos!’, lastimou o suicida,

que ao almoço papava Frank O´Hara



e se imaginava um desvelado lavador de janelas

em Nova Iorque. No velório, resignada,

comentava a mãe: ‘Ia ser um adulto



tão indeciso!’. Venha o diabo

ao horto e espalhe o adubo - ele

que escolha as linhas de passe!




Sem comentários:

Enviar um comentário