david hockney: banhada |
Foi triste, sobretudo, por ter sido tudo feito pela calada, pela omissão, sem a hombridade de uma conversa entre adultos, e eu ter feito uma viagem de 10 000 km absolutamente iludido.
Era um livro com 150 páginas e ficou irremediavelmente encalhado. Partes do livro seriam distribuídas pelo livro seguinte, Não se Emenda, a Chuva, e por um inédito, que em princípio sairá este ano. Mas uma série de poemas ficarão à deriva, sem chão. Como estes poemas com figuras:
deixado para trás na fresta da porta.
No ano de 1927, namoriscava o meu avô
– futuro falangista da Legião Estrangeira – uma flausina
empertigada que se furtava ao adestramento manual
nas matinés do Lethes em Faro,
inaugurou-se em Berlim uma exposição sobre Lenine.
E aí se mostrava, em lâminas sabiamente documentadas,
o cérebro do político. Imensas ampliações
fotográficas reproduziam as diferentes camadas do cérebro
e pela 8ªou 9ª camada, a marca do génio era anotada a vermelho.
Vivia-se claramente um momento em que o entusiasmo,
mesmo estando a perder por sete a zero, comia a relva.
No século em que nasci, ainda um dedo de criança
latejava na abóbada estrelada, algures para Órion.
DA AMAZÓNIA
1
«Eis os pássaros arremessados ao peito de Deus,
cravados na sua aorta»: o último verso
não escrito por Mário Faustino, poeta de Belém do Pará, sinistrado por desastre de avião, no único voo
que lhe foi impossível evitar
desde que sonhara, anos antes,
que faleceria em desastre aéreo.
Há intuições tramadas, piores
que poemas concebidos sem pecado.
Há-de Deus ter olhos para quê? Eis um rio que se intervala, a árvore.
Julgava eu.
Na Amazónia é tudo um,
ou a batida é em microtons: verde e esmeralda.
Tudo o que aquele índio emudecido
na banqueta desejaria explicar ao cassetete
da força de intervenção que lhe invadiu
o peito, a aldeia, a mando dos garimpeiros.
Eis um céu que se intervala:
não são nuvens mas a ignomínia. O deserto carece de sentido, basta-lhe não ser.
Thomas Merton, trapista, foi dispensado
na inspecção militar por não ter os dentes suficientes,
o que o safou de dar com as fuças no Mar do Norte,
como o seu irmão Jean-Paul.
Mas Merton, a quem não faltavam os incisivos,
e era o tremendo de um «sensacionista místico»
(diria Paulo Leminsky),
levou um dia aos seus amigos um queijo do mosteiro.
Estes, sornas, maldizentes, chamaram o maitre-d’hotel
e mostraram-lhe o «queijo do monge».
O maitre, homem de improviso,
julgando-se picado por uma piada
de que não estava a ver o alcance,
carregou o sobrolho
e examinou detidamente o lacticínio.
O lance seguinte foi de sorriso rasgado,
pisando as sílabas: «Ah, eis-me
finalmente ciente de que um monge
é como uma cabra!».
O maitre-d´hotel tinha razão:
um trapista é intransigente como uma cabra
porque quando mastiga a erva não fala,
e se rumina não fala, e se dorme não fala,
e quando urina flúi, e quando contempla
fica lento como a lesma,
e se reza não faz sala, e quando côa
o soro do coalho no leite fermentado,
não raciocina, e,
havendo um grilo a tocar violino
no claustro, escuta e frui.
Os seus amigos riram de si próprios
rindo do cozinheiro – sem compreenderem
que o monge é tão verde como a cabra
e como ela não quebra os fluxos da erva,
da água, o mosteiro de silêncio
com que o vento
perdoa os lapsos do pastor.
«Reaprender tudo com a dor
que chameja nas costas,
acordar para a claridade
e encaixar: só em mim
não houve restauro…»,
calcetei, eu sílaba a sílaba,
numa derradeira página
de uma antologia de Gabriel
Ferrater, catalão nascido
ainda em liberdade, num «ro-
dado enredo de entrepierna»,
mas que depois do franquismo
escolheu não ficar entre línguas,
e lavrou com acinte na língua
de Salvador Espriu poemas
que conversam como os musgosos
molhes e dispensam o estilo
«porque não se emenda a chuva»
(- embora nas bebedeiras,
amiúde, se escudasse na farsa,
isto antes de quebrar as gafas).
Gabriel, que tinha uma erudição
aracnídea e aprendeu polaco
para ler Gombrowicz, não chegou
a conhecer a democracia
porque («lo diré del revés»)
arrancou a sua pedra angular ao Fado
(«Olha a torre: como se inclina»),
asfixiando-se com um saco
de plástico. Isto, uns mesitos
antes de fazer cinquenta,
oxidação que não aceitava para si.
Releio-o enviesadamente (as-
simetrias do álcool) na noite
em que perfaço meio século,
e sublinho de urgência:
«Consternado, um caracol a meio
de um muro seco». E de repente
paro… julgo ouvir a sua voz rouca
de ressaca. Pigarreio. Já não temo,
o tipo que ouve vozes não está
doido: trabalha com outro tipo
de hipóteses. Beberico e retomo
a leitura de um poema
sobre a caducidade, intitulado
As Moscas de Outubro.
Graciosos unicórnios, nos semáforos de Nova Iorque?
Desde que aquela fera da Broadway quis encenar O Rinoceronte.
Uma alvorada de cotovias cadenciou a chamada intercontinental.
Ionesco, o dos Cárpatos, tartamudeou a tudo que sim:
«oh yes… oui…oui…je comprend… yes…j’accepte!»
Mês e meio depois, voltou o romeno a erguer o auscultador.
O americano estava interdito. ‘Desembuche, homem!’,
encorajou o dramaturgo, a pulsos com o terceiro vin rouge.
A eminência parda detectara uma metástase sombria
entre o segundo e o terceiro acto. Mas um ‘negro’,
sossegava, desatara o nó. Que foi que acrescentaram,
trovejou o autor de A Cantora Careca.
Lembra-se, Béranger vai a casa do amigo averiguar
o seu silêncio… (pausa) pusemo-lo ao telefone,
a tentar avisá-lo da visita. Ionesco,
(a vida é quando não é sentida na pessoa de outro,
explicou mais tarde) teve uma quebra de tensão.
À fera da Broadway não metia espécie a insânia.
Mudava a sua mãe em rinoceronte? Ça va!
As coxas da amada sabiam a corato?
É a ordem das coisas. O luminotécnico,
ao terceiro dia de ensaios, exibia um corno
a meio da fronte? Não era esse o tema da peça:
‘faça-você-mesmo, mostre o rinoceronte que há em si!’?
Minudências que armavam a congruência da fábula
ou, quando muito (se, afinal, até o Messian
se converteu à passarinhagem), elucidavam
a aparatosa tropelia com que o tempo maneja os cordéis.
Inadmissível, isso sim, um homem bater à porta
dum amigo sem avisar. Não há modo de escamotear,
pensou o romeno com os seus botões (e ao refugiar-se
em casa de seus botões, Ionesco entronizava a solidão
das personagens), a inteligência vive no buraco de golfe
onde o coelho parte o ilíaco e o homem é o único costume
alheio a si mesmo. Olhou-se ao espelho, sobre
a mesinha do telefone: estava um caco,
seria patético insistir na porta lúbrica
duma ou outra palavra ainda virgem.
Não é mau, este rouge da Sardenha,
sublinhou, estalando na língua um certo travo
a derrota. Serviu-se de um penalty
e esperou que uma plateia de tartarugas ovacionasse.
1
Fora acusado de plágio
pelas sombras chinesas.
Nunca mais foi o mesmo.
Uma vez contou: ‘Num sonho, sobrevoo Veneza
de helicóptero com Mastroianni a meu lado,
que comenta, É uma bela cidade sem pés,
de varandas pelos joelhos!’,
para rematar: ‘achas que devo contar
este sonho como meu?’
Repliquei: ‘Como neva!
Olha, não me levaram os deuses cedo
e já só o branco me embriaga.
Partilho contigo a decepção,
ou aceito como só meu
o pólen derramado no chão?’
2 (morte do jovem poeta)
Observa: estão tapadas as linhas de passe.
No futebol e na poesia a mais pequena estaca
está pela hora da morte. Isto
não enredaria em varejeiras o jovem
literato se a letra tumefacta do seu corpo
não esbarrasse na seca exasperação do dela.
O melindre é este: o alcance do poema
é curto e resvala nos olhos do leitor que,
embora de comum magnifique as estátuas,
nem sempre lhe cede as pupilas. Pior,
se inabordável parece ao intérprete,
ou duma polpa amassada que há sete gerações
ninguém empolga.‘Compreende as pessoas,
mas não os sonhos!’, lastimou o suicida,
que ao almoço papava Frank O´Hara
e se imaginava um desvelado lavador de janelas
em Nova Iorque. No velório, resignada,
comentava a mãe: ‘Ia ser um adulto
tão indeciso!’. Venha o diabo
ao horto e espalhe o adubo - ele
que escolha as linhas de passe!
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