terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

CRAVEIRINHA: O POLÍGAMO DA NOSTALGIA

José Craveirinha faria 85 anos este ano e o Movimento Literário Kuphaluxa resolveu homenageá-lo, no Centro Cultural Brasileiro, onde, sob a batuta de Calane da Silva, tem a sede. A sessão foi no passado dia 6, tendo eu sido convidado para moderar uma mesa com vários escritores num debate de evocação do poeta. Embora seja um poeta que admiro mas não amo, reconheço que de cada vez que o tenho de reler com mais atenção descubro sempre coisas novas, o que é a marca de um grande poeta.
Por isso deixo estas notas, sacadas ao documento que preparei para essa sessão:

1
Dou um exemplo de como grande parte da literatura é desencadeada por empréstimo, por uma troca, extraindo-o do livro mais improvável, precisamente o Poemas da Prisão. Na página 117 lê-se «Estou só/ mas viajo no pensamento./E à minha cabeceira/ a voz que escuto/ é Fernando Pessoa que responde», e este poema esclarece uma estrofe do primeiro poema do mesmo livro, onde se lê: «A vida/ órfã de sempre/ dá-me em cada verso/ uma veia esticada em mim/ a retinir poesia.//Deus deu-me/ esta arte mínima/ de confessar as coisas/ dizendo tudo a fingir.// E desta dádiva me sirvo/ polígamo de nostalgia.»
A estrofe a que me refiro é a segunda: «Deus deu-me/ esta arte mínima/ de confessar as coisas/ dizendo tudo a fingir», e que corresponde à famosa quadra de Pessoa ortónimo que abre o poema Autopsicografia: «O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ A dor que deveres sente
Portanto não existe o génio espontâneo, mas sim as janelas que alguns abrem para além da clausura do condicionamento e que são mais ricas se o poeta estiver tão encharcado de cultura como de vivido.

2
José Craveirinha, muitas vezes, é embaciado como poeta, ou antes, engravatado como um estrito poeta social, quando as dimensões da sua obra não suportam grelhas de leitura tão redutoras.
E, de novo, para começar, a confusão entre tema e poesia é-lhe claramente prejudicial – e servirá mais aos interesses políticos que à memória plectórica da sua obra, que transcende os ferrolhos da sociologia.
Vamos aos exemplos. Um poema como Aldeia Queimada: “Mais/ nas noites/ desparasitadas de estrelas/ é que as hienas/ actuam. // É/ de cinzas/ o vestígio das palhotas”. O que faz deste feixe de versos um poema não é a denúncia do acto (embora console saber que como homem, Craveirinha não perdoava as canalhices) mas a translação que sofre o insólito adjectivo «desparasitadas», que primeiro alude às estrelas para depois - “deslocado” pela ausência das mesmas - adquirir um novo sentido que desqualifica (o que é realçado pelo ineditismo do adjectivo) os que estão presentes: os parasitas das hienas (leia-se: os guerrilheiros da Renamo, que fomentaram uma guerra civil durante uma década, em Moçambique). É quando a noite se desnaturaliza que atacam as hienas.
Cá está: a poesia  não é apenas uma representação das coisas do mundo, mas sim, essencialmente, um processo da linguagem e neste caso estamos diante de um engenhoso mecanismo de economia verbal.
Fosse o poema escrito, exactamente com o mesmo conteúdo, mas com sinónimos e sem recorrer àquele insólito adjectivo, exemplifiquemos: «Pela calada/ da noite/ é que as hienas/ actuam/ etc.», não passaria de uma informação, pertinente face à contingência mas que só sobreviveria como imitação de poema. É o que nos ensina Manoel de Barros, um poeta brasileiro contemporâneo: «um passarinho desapareceu de cantar», é um verso de Guimarães Rosa, enquanto «um passarinho deixou de cantar» não passa de uma informação, digna de figurar nos fait-divers de um jornal.
Num outro poema de testemunho ao seu comprometimento político, Vila Algarve, o poema não seria o mesmo sem o modo verbal com que fecha este terceto: «No entanto um típico tremor/ quando olho os clássicos azulejos/ são os meus joelhos a recordar». A abrupta a passagem do verbo para o presente do conjuntivo dá conta da inscrição do medo no corpo e dilata (porque a actualiza) a brutalidade do vivido, pois na foi na Vila Algarve que o poeta foi torturado pela polícia política portuguesa; e apesar da sua consciência e da sua rejeição moral e política quanto à sua provação no passado (o poema acontece dez anos depois do poeta ter estado preso pela Pide) o corpo treme-lhe involuntariamente, quando o poeta se aproxima da casa onde foi torturado. A denúncia não seria tão forte sem esta subtil intensificação emocional pela alteração do verbo.
Mas temo que Craveirinha esteja a ser lido apenas pelos conteúdos (leia-se: políticos). Temo que um poema antologiável como O Trilo:
«Da
ave o trilo.

Pássaro
canoro trilando
possesso.

Trilando num galho
exéquias.

Recolho
e transcrevo o timbre
que é um canto de luto notável – o poema insinua: se a Maria estivesse viva o poeta estaria distraído a não ouvir o pássaro, a ponto do seu canto não lhe parecer uma exéquia, pois a sua presença ofuscaria o sentido do canto – este poema nunca o vi valorizado porque não é explícito, declarativo, aqui não se grita contra o colono, sendo apenas um poema de luto subtilíssimo que eleva a qualidade expressiva à perfeição, inclusive num recorte quase concretista (repare-se, como o desenho que forma na página o terceto central do poema: «Pássaro/ canoro trilando/ possesso.» lembra o bico de um pássaro).

3
Os poetas não são santos, nem comissários políticos («Sabotagem é despromover um verdadeiro poeta em funcionário», escreveu o poeta em Saborosas Tanjarinas d’Inhambane, talvez prevendo a sua sorte póstuma), e a sua obra é para ser dessolenizada. Só assim o poeta desce do pedestal das efemérides para conviver com os homens. E para isso é preciso não o dar por perfeito, como figura ideal, como único. Ele próprio não se dá como único, e para mim, o que dá densidade humana à obra de Craveirinha, mais do que a retórica nacionalista em que ele tão necessariamente investiu a seu devido tempo, ou a aura de herói que isso depois lhe deu, e que ele nunca quis vestir, o que para mim lhe dá um carácter que como poeta coloco acima das evidentes virtudes, é antes a sua declarada fragilidade, os inúmeros, porque são inúmeros versos em que o poeta fala do seu desamparo, da sua solidão, da sua vulnerabilidade e mágoa diante do passado e do presente, da falta, das rasteiras do tempo, o seu face a face com a distopia e as suas dúvidas de homem que sem nunca ter faltado ao seu compromisso com a história e com o seu povo nunca deixou de ser o Zé particular, o Zé ninguém, aquém do estatuto, imerso no seu quotidiano anónimo e ao rés dos seus, tantas vezes traídos nas suas expectativas. É este Zé Craveirinha, pouco espectaculoso, que me faz lembrar um grande poeta checo Vladimir Holan, é este homem disposto ao amor do ínfimo e às contradições que para mim trazem a grande complexidade do poeta, como no conhecido poema Interrogatório: «Era não!/ mas o tabaco/ é um vício.// E o vício/ fumado nas omoplatas/ põe-nos sobre a língua a nicotina// descerra os lábios para o sim». Repare-se na complexidade que aqui se joga: este não ou este sim são a inocente afirmativa ou negação de aceitar um cigarro oferecido pelo inimigo, ou trata-se, o que é mais grave, de vender uma informação por um cigarro? E o Craveirinha pode bem não ser o sujeito do enunciado e este ser antes o nós impessoal que é a soma dos presos políticos, portanto desiludam-se os que lêem aqui uma confissão, o Craveirinha está a encenar, a colocar o actor deste poema diante da miríade das pequenas armadilhas pessoais que podem minar naquela situação extrema a vontade e a coragem do preso; e então assistimos ao modo como um problema pessoal se eleva a categoria, tornando-se universal - é o que faz a força do poema.

4
«O choque entre o vocábulo comum e a reinvenção dele para uma rítmica esquematização; um estruturamento quase alucinado e alucinante das imagens e um sentido hedonístico da semântica como um espasmo heliocrómico, dá-nos, comunica-nos, faz-nos amiúde sentir as mais inconfessadas tensões…» E adiante: «fazer poesia não é oprimir calculisticamente conhecimentos e juntá-los ao bel-prazer de quem quer; porém sim, a partir da desopressão de cada vocábulo em si erguer a torre significativa em que o momento se intemporaliza (…) O homem atento às coisas do mundo está no poeta para exercer a ironia, o sarcasmo, um onanismo enfático também. Mas sempre nas formas de um poeta sensualmente ia além de se condoer, de co-doer-se.» 
Chamei estes excertos, duma crónica de Craveirinha sobre Grabato Dias, à liça posto que me parecem funcionar como um espelho diante de um espelho, isto é, podia ser o que alguém poderia escrever sobre muitos recursos estilísticos do próprio José Craveirinha, que realizou, - sobretudo com Xigubo e Karangana wa Karangana - uma verdadeira operação de translação na língua portuguesa.
Visto que não se trata unicamente de ter embutido termos rongas nos poemas, ou da introdução de neologismos onde o português convive com o ronga, o inglês e até o afrikans; não é isso, a meu ver, que “nativiza” os poemas, e vê-se como a inserção de termos autóctones noutros poetas é meramente decorativo. Aliás, Calane da Silva mostra na sua tese como Craveirinha pega em verbos ronga e os declina segundo a gramática portuguesa e neste caso estaria a “aportuguesar” o ronga. A sua intervenção é mais profunda, o que difere em Craveirinha é que ele empurra o português para fora das suas fronteiras forçando a língua nos seus mecanismos sintácticos e morfológicos. A coisa é simples: o poeta expõe os limites da língua portuguesa em relação às suas aspirações universais e então expande-a (, ainda que seja preciso dizer que, na época, em Moçambique, Grabato Dias também fez “contorções” linguísticas notáveis) com enxertos de uma sonoridade local que lhe abre as lentes. O sistema arterial da língua passa a correr num duplo sentido.
Escreve Craveirinha no poema A Fraternidade das Palavras:
  ()
  E eis que num espasmo
  de harmonia como todas as coisas
   palavras rongas e algarvias ganguissam
   neste satanhoco papel
   e recombinam o poema.”
               ( Karingana wa Karingana : 151)
Este namoro, propósito a que o sujeito empírico do poeta nunca se furtou, é visado em muitos poemas que realizam uma verdadeira cópula entre as línguas, numa plasticidade crioula. Há um mês atrás, numa entrevista que dei para o Brasil por causa do meu romance que lá saiu escrevi eu sobre a lusofonia:
«O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes, e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. O Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem.»
Trouxe isto à baila por causa do que acima sublinhei, pois quando o Craveirinha coloca o português e o ronga ao mesmo nível e destrói qualquer sentido da hierarquia entre elas, naquele tempo em que o moçambicano não tinha cidadania, já está a realizar esta troca de posições na cama. Mas é mais extensivo, ou antes, mais subversivo. A linguagem é uma espécie de mobiliário que nos reveste por dentro. Quando o Craveirinha muda a sintaxe está a alterar absolutamente a posição dos móveis na casa e com isso descalcifica alguns ossos e altera a arrumação dos órgãos internos. Corolariamente, não concordo com a ideia de que o Craveirinha tenha nativizado o português, eu acho que é mais fundo e que ele encetou uma crioulagem que “ já não tem remédio” e que é de uma enorme riqueza plástica.
Como ele mesmo insinuava numa crónica de Contacto: «Trata-se muito simplesmente de não abdicar de uma cultura indígena, nem renegar uma corrente europeia, quando de tal enxerto pode surgir uma beneficiação integral na riqueza do ritmo expressional duma forma literária.
Deste princípio surgiu o grito do poeta Senghor, do Senegal: «Porque não unir as nossas duas claridades a fim de suprimir todas as sombras…».
Daí que, a meu ver, quando, a pretexto de Bertina Lopes, Craveirinha afirma que “precisamos de cultuar a reminiscência ancestral como forma de reabilitação integral”, o integral aqui seja total, ambitransitivo, e preveja a abertura a todas as experiências da memória e não o fechamento, a restrição, a identidade autárquica; sendo que as claridades evocadas em cima devem ser lidas não cromaticamente mas como sinónimo de «clareira do bosque», lugares onde o discernimento e a sensibilidade afins de cada senda se encontram, dialogam e conectam numa síntese sem peias nem complexos.

5
No primeiro poema de Poemas da Prisão, o poeta define-se como um polígamo da nostalgia, o que lhe assenta magnificamente porque o amor que re-liga era nele maior que o dissentimento da fractura. Como em Mandela, em quem o perdão foi maior que o ressentimento.
E com a mesma lucidez com que declarou: o homem é uma raça, nunca embarcou em quaisquer jogos de poder, mantendo sempre a sua reserva crítica sempre à mão. Inclusive declinou uma oferta choruda de Samora Machel, dizendo-lhe que preferia não a aceitar para resguardar a sua independência. Esta dimensão cívica é ainda hoje um exemplo, num país tão causticado pela obediência e o deletério comércio do favorecimento.

6
Li esta semana que o ministro da cultura, o Armando Artur, teria dito sobre o Acordo Ortográfico que este era ainda muito confuso e que não se entendia bem em que é que Moçambique lucraria em gastar tanto. Depende. De facto Moçambiqu1e ainda não se meteu na discussão do Acordo, que agora promete ter voltes-faces devido à acção e influência de Graça Moura, mas acho que Moçambique devia ter uma palavra a dizer neste aspecto. Uma das razões principais é que um é um país de não-passivos utentes da língua. O espectro do legado de Craveirinha devia estar no centro das propostas que Moçambique teria a dar para o Acordo. E por esta sugestão me fico.

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