segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O BRANCO DAS SOMBRAS CHINESAS: ALGUNS MOTIVOS



No sábado passado escreveu José Mário Silva, no semanário Expresso, de Lisboa, numa coluna que dedicou ao livro O Branco das Sombras Chinesas, um folhetim policial, que escrevi a meias com o João Paulo Cotrim:
«Ora, justamente, em “O Branco das Sombras Chinesas” nada é banal. Nem o enredo, que mete orelhas perdidas, tráfico de armas, malandrins e galdérias, esquemas de corrupção, sovas épicas, crimes ambientais e uma fantástica chuva de símbolos comunistas, nem as personagens, desenhadas a traço grosso mas firme, em delicioso contra-luz; nem, sobretudo, a linguagem, toda ela um primor de invenção e risco, ora delirante, demorada, barroca, como que à deriva, ora capaz de cortar rente e de desembrulhar a trama quando é preciso.»
Pegue-se por onde pegar, é um elogio rasgado que dá conta de como o articulista se divertiu como um bruto ao ler o livro.
E NÃO É ISSO QUE IMPORTA?
A coisa começa assim:
«…comprou um jornal, sentou-se na esplanada da Mexicana a ler um fait-divers (fora achado numa cabina telefónica da Damaia um coração tresmalhado) e sacrificou, com método, uísques sobre uísques, na ara da consciência, até estar solto o lastro.
O estado em que acordou, dois dias depois no Hospital de Cascais, com um enorme remendo no lado esquerdo da cabeça, e as explicações que ouviu não foram concludentes. Na lota? Que fazia na lota, desmaiado ao lado de um peixe-espada que tresandava a fénico? Dois dias?».
Este buraco de dois dias e o mistério da perda de uma orelha, e como, é o motor da investigação, de pista em pista, como na Agatha Christie, só que mais demolhada como em Raymond Chandler:
«A dúvida procura sempre uma resposta, com a sua suave brutalidade com que a a água procura um rumo. Além do formol e do líquido, também por isso o momento era líquido.» (pág. 13).
O spot principal não impede que se prestem atenção a leves digressões sobre a matéria humana, como a traição e o ciúme. No eléctrico, a caminho da Praça do Comércio, ouve João David, o narrador e o nosso detective de serviço:
« - Ó mulher não ligues. Faz como eu, não ligues. Ele há-de perder-lhe o interesse.
- O problema não está nele mas nela. Aquilo é fruta que não cai. É fruta que espera por grua.
Gostaria de estar com o ânimo disponível para conformar às duas catatuas engelhadas que sim, que o melhor modo de tratar a traição é recuar no tempo com dois litros de uísque tão lisos como dois lençóis a secar, mas dominava-o a vontade de esmorecer dentro da primeira câmara frigorífica que o aceitasse como esquimó.»(pág.18)
Descrições não faltam, como esta na estação de Santa Apolónia:
«Num segundo esquadrinhou os 360 graus em volta: era um Bogart com olhos na nuca. E nada aconteceu, zero como nas fotografias. Desceu os degraus na lentidão dum poema. Desatou a pensar com a loquaz verborreia dum romance.» (pág.19)
Observações subjectivas sobre o mundo, também pontuam a novela:
«Há dias assim, nos quais o mais pintado se sente cor de bedum. Imagine-se um homem que perdeu uma orelha e não lucrou uma pulga com isso. Pediu um café e uma madalena e percorreu de rajada as gordas do jornal: “Mãe troca cinco filhos por comida” – mundo cão…» (pág.21).
Diálogos rápidos, enxutos, e bem-humorados, como nos filmes, não faltam:
«Negrura, o velho empregado que o seu pai trouxera de Luanda, cochilava, como sempre, em cima do balcão. Lancelote, o papagaio que herdara do tio brasileiro, é que o cumprimentou: “…o Hitler morreu! O Hitler morreu…” (uma nova passagem comunista). Calcou a campaqinha e Negrura reagiu de um salto:
- patrão”
- What’s the new and diferent!
 - O do 7 há dias que não aparece. E temos no 3 duas senhoras espanholas.
- O Artur já resolveu o problema com a torneira no 6?
- Não senhor.
- Para que te pago eu?
- Que lhe aconteceu, patrão?
 - Meteram-me a cabeça dentro da betoneira…
- Quê?
- Deixa. Telefona ao Artur e passa-mo.» (pág. 22)
Sinais cabalísticos, é a granel:
«Sentia-se uma espécie de w, amachucado com brutalidade, ferido na sua dignidade acordeónica, quase só usado nos endereços da Internet, encostado a um canto como o contrabaixo empenado. (pág.26)»
Adivinhou. É uma personagem feito dos restos das coisas que já foi. Músico, por exemplo. Mas não faltam à acção os arremedos sentimentais, elas, e o que pensam deles:
«Gostou que o João David tivesse acudido prontamente à chamada, sem ressentimentos, como a cegonha que sabe reconhecer na ventania o renque ciprestes, o seu poste telefónico. (pág.39)».
Nunca esquecemos o foco, a evolução da acção:
«A tese de suicídio sustentava-se numa carta dirigida a um tal João David que, acabadinho de chegar à cena, lhe dava um tom de suspeito entre os suspeitos, como um creme autobronzeador num mulato. (pag.44)».
 E mete polícia, interrogatórios, o despique entre o detective e os matarroanos da polícia de costumes:
«João David estava à toa, sem saber como recuperar de tanta finta de anca de um avançado prolífico chamado Destino, e limitava-se a olhar os polícias que o interrogavam há horas com a inabalável cadência e um metrónomo. Pareciam-lhe bonecos de matraquilhos que lhe chegavam do fundo, muito do fundo da retina, pois quando as surpresas chegam em catadupa é assim que ficamos: embutidos no mármore, paralisados (pág.47)»
Sem descurarmos os momentos metafísicos, em que interrogamos a vida, a morte, a irrelevância substantiva de tudo, essas cenas macacas:
«As manhãs não se fazem só porque acordamos. Como a noite não nasce só porque nos deitamos. O corpo de João David jazia iluminado pelos faróis que passavam na marginal. Tinha os dedos sujos da tinta do jornal. Ali perto, o mar murmurava. (pág. 54)»
É uma narrativa absolutamente pós-moderna, onde não deixa de comparecer o pensamento débil e a volátil mutação das sexualidades. Como a atracção trans:
«O que o atraía em Verónica? Talvez a escolha da sexualidade não seja de todo uma herança genética mas o resultado de uma soma de recusas, o que torna o seu utente permeável a uma mudança em qualquer esquina da vida. Da primeira vez que a vira, o seu abalo não fora menor que o de Negruras: a assinatura daquela lasca, de curvas e olhos insinuantes, que punham à pesca qualquer vergalho sentimental, correspondia afinal à identificação de um homem. Felizmente as suas tentativas esbarraram na porta; teria sido mais um viandante na longa avenida da androginia. pág. 59»
E como nas boas histórias, pela boca morre o peixe, ou seja, o desejo traz consigo todos os perigos:
«A noite não o deixava ver o mosqueado do vomitado nas gardénias, sombra sobre sombra. Ouviu a discussão e virou a cabeça na direcção da mesma. Nesse momento, bateu a porta de um carro e, num soslaio ao canto oposto, deu por quatro calmeirões a deixarem a viatura, encaminhando-se para a vivenda. Estava entalado. O arquitecto gordo atirou-se a ele, enquanto o outro parecia lívido, atemorizado. Defendia-se como pedia quando recebeu um pontapé nos tomates, desferido por trás, por um bicudo sapato de salto alto. Caiu redondo, enquanto os seus olhos revirados, estupefactos, cruzavam os de Verónica, a portadora do sapato.
- Então rico… - cumprimentou-o o travesti – vamos a Bizâncio? (pág. 65)»
Como se safa João David desta embrulhada? Como resolve o crime económico, o tráfico de quadros roubados e o desastre ecológico que foi destapando, à medida que procura rasto para o enigma da sua orelha perdida? Isso já o meu amigo leitor terá de ler sozinho, no seu discreto cantinho, com o seu exemplar na mão. Só lhe posso dar mais um lamiré, um momento de empatia com a natureza:
«João David olhou a sinagoga, pela janela do quarto. Odiava coincidências, raccords, simetrias – mais que nunca. No telhado, num pequeno ninho, um pequeno pássaro abria a boca para recolher algo que o bico da mãe lhe passava. Pegou nos binóculos: as goelas eram amarelas.(pág. 75)» 
E talvez até o final, e o seu desencadeamento lírico:
«Tinha sido mesmo o amarelo das coincidências a atirá-lo para a bússola doida das ideias. Queria ir a Bizâncio antes de a morte o bafejar. Queria ver mais cidades. Queria ver logo o fim dos romances policiais. Queria entender as mulheres. Queria conhecer Elvis Presley pessoalmente. Queria cheirar um miosótis.»
E mais não lhe digo, até porque não terá ficado a saber nada do que é mais importante, e que decorre do grande mistério cabalístico que percorre o livro e consubstanciado na pergunta: «Quantas letras custa um cego? (pag. 77)». Quer saber, bem como a que corresponde a célebre chuva de símbolos comunistas (num livro neo-liberal, sublinhe-se) compre o livro.
Já sabe, como garante o José Mário Silva, no Expresso, nada neste livro é banal. Portanto, comprará dois em um – O QUE COMEÇA A SER RARO.
Ainda por cima tem 18 magníficas ilustrações de João Fazenda e é um belo objecto gráfico, “desenhado” pelo Jorge Silva, um objecto de colecção portanto, e de tal monta que até Gaspar, Belchior e um terceiro rei mago de que me escapa agora a graça, já compraram para oferta de Natal. 
Mas não durma, porque NÃO PODERÁ COMPRÁ-LO NA LIVRARIA. Experimente no blogue da Abysmo (a editora), ou no facebook da mesma. Bom, sombras tem, chinesas também, e um branco sem orelha.






3 comentários:

  1. Uma excelente sugestão para uma não menos perfeita (e muito em conta) prenda de Natal.

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  2. Ao menos podias deixar o link, não? Tanto latim para a (excelente) propaganda e tamanho tiro no pé!
    Bom, ponho eu!
    http://www.facebook.com/photo.php?fbid=308104462544556&set=a.272312799457056.66595.272305396124463&type=1&theater
    É grande mas é o que se pode arranjar!
    Olha lá, estou com saudades, ó marmelo! Beijos às meninas, a Luna deve estar para lá de paganini, uma verdadeira Lunanini!

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  3. Ora então cá vai o Link própriamente dito (e não o clipboard dos meus filhos...).

    http://www.facebook.com/pages/abysmo/191314870941418

    O post anterior padece de um lapsus teclae, sorry...
    Mas o Ronaldo e o Neymar também são boas prendas.

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