segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

DESCRISTALIZAR



O TEXTO QUE FOI LIDO POR DIOGO VAZ PINTO E VALÉRIO ROMÃO, NA APRESENTAÇÃO DE RESPIRO:

Dizia o Paul Valéry que a literatura é a vingança que irriga o espírito ao fundo da escada,  quando perdemos a ocasião. E já antes dele, o dadaísta Ribemont-Dessaignes havia sentenciado para os escultores e músicos algo parecido, que também se aplica a alguns dos poetas que prefiro - dizia ele: “os escultores, como os seus inimigos, os músicos, chegam sempre à estação quando o comboio acabou de partir”.
Ou seja, estamos confinados, nenhum flash-back nos livra de vivermos a literatura como um transe, uma vitória ou uma derrota em diferido.
Contudo, e a distância física a que estou ajudou-me a vencer isto, hoje, na literatura, já não me angustia o peso da colher de pau na panela do káiros e se esta condimenta a oportunidade, crendo até que uma certa distância lhe é necessária para que a energia do vivido não a embargue, ou a encadeie.
Quem se entrega ao acto amoroso não escreve, fá-lo-á depois, para celebrar o encontro ou manifestar uma ausência, mas depois. O homem que a meio da cópula faz parar o comboio no apeadeiro de um soneto, que tem que escrever, parece-me um cretino.
Esta decálàge compensa-nos, é o que nos traz os imprevistos – não se produzir uma total coincidência entre escrita e mundo ou a escrita e a percepção furta-nos às ilusões da transparência.
Hoje, já não me choca, para aproveitar um poema de Rene Guy Cadeau, être en retard sur la vie.
Estar em atraso permite divisar as tendências que se formam nas linhas da frente e adivinhar mais facilmente o que se vai passar, enquanto quem galga na frente, mergulhado na ilusão de estar em sintonia, não vê como o seu ritmo já está levemente desadequado, ou que atalha por um beco. Não tem perspectiva.
Estar em atraso permite-nos esquecer como ao jogador de xadrez as regras do jogo: elas são o ar que se respira. Quem está preocupado em estar à frente só se preocupa com os seus pulmões em brasa.

Quando eu saí de Portugal para vir para Moçambique aconteceu-me uma coisa maravilhosa, fiquei no mais absoluto anonimato. Não contava com isso mas foi o melhor que me podia ter acontecido. De repente era o par de luvas esquecido num banco da gare de comboio. Eu aqui não tinha nove livros publicados, nenhum artigo.
Foram cinco anos em que ninguém me reconhecia, eu próprio me esqueci, sem uma imagem social que levasse alguém a antecipar uma ideia sobre o que havia a esperar de mim. Era de novo um poeta nu: sem antecedências.
Este retorno, por anos e anos, ao anonimato devolveu à minha expressão o jogo, o impulso e a espontaneidade que o facto de ter um nome sempre desacelera, mitiga e periga. Pede o dramaturgo Richard Foreman: «Desejaria que o meu imaginado fosse uma ocasião para o não-imaginado-por-mim poder estar presente». Isto é mais fácil quando ninguém à nossa volta alega algo em defesa do que fomos ou do que se pensa sermos e deixa de haver um juro a pagar para quem tenhamos sido.
Estarmos absolutamente sós é tremendo, mas viver sem facturas é decisivo. Pude voltar a ser absolutamente irresponsável, à minha condição inicial. Este anonimato renovou tudo o que eu pensava sobre a zoologia dos fluxos. Eis-me sentado no hélice, sem pressa de partir.
Uma vez a Livraria Minerva de Maputo convidou-me para fazer uma palestra sobre poesia e ler alguns poemas. Preparei a comunicação e uma dúzia de poemas tendo aclarado a voz com gargarejos de bicarbonato. À antiga.
Entreguei-me à leitura da palestra. Que provocou tal celeuma entre os presentes que passei mais hora e meia numa discussão sobre poesia e poéticas sem ter tido oportunidade de ler um único poema. Nunca mais tentei.
Aguentar-me no anonimato tem sido a jangada mais apetecida, e tem-me lançado em portos e geografias nunca cicatrizados. E fez-me descobrir um lastro, um cerne, que não depende de qualquer reconhecimento social. A minha solidão convive magnificamente com o inominável candelabro do silêncio. 
É uma experiência que recomendo a todos os poetas: ficar a sós com o igloo, num horizonte branco, tendo lá fora um urso branco a solicitar companhia, ajuda a definir se alguma coisa em nós perdura para além do imago, do jogo das reflexividades, da coragem que se finge ter diante do urso.
Nesse não-lugar, para lá do conforto e do atrito - se alguma coisa não ficar carbonizada nessa solidão absoluta -, deixamos de imitar.

No âmago desta outra condição acontece-me jogar à canasta com o capitão Mac Whirr, do Tufão, de Conrad - aquele que se insinuou no vórtice tumultuado.
É para mim um livro tão essencial como Bartleby, sendo outra forma de dizer não. Só se aceita a barbaridade de atravessar candidamente um tufão pelo meio - aderindo com macia displicência à sua impossibilidade de domínio - se formos impelidos por uma desidentificação que diz não a todos os nossos medos.
Mac Whirr quis conhecer o outro lado do medo e não se apresentava outro caminho: havia que cruzar a descristalização de todas as suas categorias.
Recordo o momento hilariante em que Jukes encosta os lábios à orelha do capitão e avisa, aflito:
- Os nossos escaleres estão a ser levados, sir.
- Está bem…- respondeu lacónico Mac Whirr.
« Juke pensou que não tinha conseguido fazer-se entender.
- Os nossos escaleres… eu disse os escaleres, sir! Dois já se foram!
A mesma voz, a centímetros dele e contudo tão remota, gritou muito judiciosamente:
- Não se pode evitar.
O capitão Mac Whirr nunca tinha voltado a cabeça, mas Jukes apanhou mais algumas palavras no vento.
- Que se pode… esperar… quando se atravessa… semelhante… temos de deixar… alguma coisa para trás… é evidente.»
Não se pode evitar. Por isso, lido o livro, não pude evitar redigir na sua última página:
«Amarrar a carne ao poema como o navio ao olho do tufão até que na sua armação esplendam os ossos e os seus olhos se diluam nos do albatroz.»
Os seus olhos referem-se aos do poema, aos meus, ao do tufão? Parece-me irrelevante saber. Não se pode evitar.

Cada um de nós é um fura-vidas em potência, que, com retoques sucessivos, vai tentando actualizar a sua espontaneidade. E isso é bom. Mas não basta. É preciso abrir as janelas e deixar que as correntes façam entrar em casa algo que a trivialidade dos tempos descuidou, esquecida de que o que mete uma obra ao abrigo das larvas e da ferrugem não é a sua importância social mas simplesmente a sua arte (Nabokov, merci). Falo da profundidade. E esta estriba-se num itinerário pessoal enquanto a espontaneidade, o natural de cada geração, nutre-se mais dos protocolos estabelecidos pelo colectivo. Daí que não acredite em ideias gerais, só acredito em pessoas, no furor e na vulnerabilidade adquirida de algumas pessoas.
A profundidade, a passarelle de bambu que tudo re-liga, pode ser uma verticalidade na pele - há toques que intensificam mais o contacto que outros - ou a ressonância de uma descida ao detalhe, mas resulta iniludivelmente da rasgadura que uma experiência pessoal, inesperada e indelével, provocou. Não se atravessam tufões em vão embora não tenha a certeza de seja transmissível o que se gera no contacto com o inumano - disso que nos separa, que em nós dissente, inexoravelmente, e nos desapropria, recriando, pelo simples acto de respirar, o gosto de diferir.
É neste pesponto de uma ferida, que germina de dentro e nos obriga a lidar com os seus lutos e a recriar a alegria, que alguma coisa recomeça. E não trair neste trânsito a fidelidade ao humano é o trabalho de uma vida. 
O Nietzsche disse-o melhor que eu e por isso com ele acabo: “Mudei-me da casa dos eruditos e bati a porta ao sair. Por muito tempo sentou-se a minha alma faminta à sua mesa. Não sou como eles, treinados a buscar o conhecimento como especialistas em rachar os fios de cabelo ao meio. Amo a liberdade. Amo o ar sobre a terra fresca. É preferível dormir no meio das vacas que no meio das suas etiquetas e respeitabilidades.”
Há um preço a pagar por preferir as vacas aos eruditos, embora tenhamos aqui de encetar uma via mestiça e confessar que preferimos as vacas eruditas. Mas o que importa reter é que este processo nos dá uma liberdade muito grande e desencadeia uma descristalização permanente que abre os estábulos ao campo dos possíveis.
Afinal, pergunto eu em Respiro, que raio afinal é que nos impede de ser em arquipélago?
Deixo-vos por isso com dois poemas que escrevi a semana passada, com dois dias de diferença, dois poemas que se apresentam como Mr. Hyde e Dr. Jekyll. O primeiro chama-se Oito Variações de Um Melro Sufi (VER POST ABAIXO) e o segundo Os Avatares.  

OS AVATARES

O Henri Michaux? Esse drogadito imitou,
em ressequido, tudo o que f(l)ui.
É escusado negar que o Hokusai me copiou
em mais de metade dos espectros e das enguias
que lhe foram atribuídos. As perspectivas
do Monte Fuji, por exemplo,
tomou-mas, o inculto - cem retroactivos.
O Durer foi outro infiltrado que com in-
declinável gana me sangrou os arquivos,
e a sua mais leve menção enternece-me
tanto como encostar uma palhinha a um corvo
para lhe sorver a mais insepulta noite.
Outra gente malsã, ambiciosa, que em tudo
me plagiou? O Czeslaw Milosz,
o poeta de um catolicismo alvacento
que os meus olhos escoltaram
como um arado de mistérios latentes,
e o Hugo Claus, o poeta herético
que em caganitas de pombo ‘inda me betuma
as bétulas da reminiscência. Este último inclusive
teve o desplante de se entregar com a Silvia Kristel
a amplexos indecentes, a musa anal
que me fora prometida desde
que como Kant  me lastimei ao S. Pedro
sobre o falho erotismo dos relógios.
Apesar de muita resistência, de tanta safadagem,
tenho de chamar a essa canalha os avatares.
Consola-me, enfim, que o O‘Neill, no desvairo
de me imitar, tenha contraído as minhas cáries
e algum hálito arrancado à força do que tem que ser,
ou que as minhas crisálidas lactescentes, as
suculentas estalagtites, estuprem as veias
de Carlos de Oliveira. Já as estalagmites
cedi-as a um poema do Ted Hughes,
corvo deslavado, que, em vã mazombice,
prometeu, prometeu, sem nunca o concluir.
O que esta gente não faz por um pingo de fama?
Que querem que vos diga de Vasko Popa?
Esse não sabia patavina de nada, nada,
e iniciei com ele uma bibliotecas de estrelas
que iam engordar à mão. Mas rapidamente me deixou
só com as anãs  brancas e no fim
enviou-me cínico postal de Paris para me agradecer
as premissas? As premissas!? Que Deus
o enlouqueça nas badanas de Santa Teresa de ‘Avila,
a bibliotecária da área dos leprosos, no paraíso. 
Poema do António Barahona? É meu.
E ele sabe, nem sequer dissente, entre nós
não há minaretes escondidos, estabelecido
que a fauna, a flora e a geografia descristalizam
em mim (não nele) o alfabeto com que Deus
naufraga em todas as línguas.
E pronto. Mas queixo-me de mais,
de muitos mais, até porque os relatos
estão todos truncados. Eles sabem mas fingem,
pondo os olhos em alvo nas nuvens crivadas
das minhas cabeças de leão, de ressacas e marés,
enquanto, alados no trovão que racha
o seu casco, os zurzo.  E lamentável
é que agora como jornalista ganhe a vida
a encher laudas nas efemérides dos tantos
que descurei  ser antes dos plagiadores me calçarem
os sapatos. Escrevo isto à janela,
debruçado sobre o pomar
onde medram as laranjas azuis
que o Éluard me surripiou.
Morcegos chegados dos Cárpatos
sugam-me, página a página,
o pouco sangue que me sobrou.

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