os malefícios da idolatria |
Retomei a minha colaboração com o semanário Savana. Aqui deixo a primeira crónica, publicada ontem:
Se bem me lembro, foi em 2007 que a STV fez uma reportagem sobre a mulher que supostamente teria dado `a luz um bule e três chávenas de chá. Durante essa semana, nas aulas da universidade, tive que debater as dúvidas dos alunos sobre se tal seria possível, porque na verdade a metade deles queria crer nessa possibilidade.
A mim o que me espantava era a falta de ambição da parturiente. Se se pode ser mãe de um serviço inteiro da Vista Alegre, por quê ficar por um bule e três chávenas? E parecia-me até um óptimo princípio para uma economia no casamento, as nubentes primeiro pariam o recheio da casa, mobílias, candelabros, carpetes, panelas e tachos, depois a própria casa, e só depois casariam.
Há coisas que não são do domínio das antinomias, de ser-se racionalista ou crédulo, mas simplesmente da ordem da sensatez e do conhecimento das coisas naturais: o adn humano e o “adn” da cerâmica não comportam qualquer tipo de coincidência ou de transitividade.
Não obstante, suponhamos que sim – também para os gregos do tempo do Aristóteles as mulheres podiam parir qualquer coisa, ostras ou ouriços, pois nunca se sabia que partidas podiam os deuses pregar – que uma mulher podia parir um bule. Onde foi registado? Como se chama a criatura? E como é que a STV abandonou um caso destes, não acompanhando a educação e infância do bule, vendendo para as televisões de fora um exclusivo desta monta? Que falta de inteligência comercial.
Agora há semanas que não ouço falar senão do régulo encarnado no hipopótamo. E que ouço quadros técnicos deste país porem as mãos no fogo em como é verdade… pois se o hipopótamo mudou de regime alimentar e agora come o picapau que fazia as delícias do régulo e encharca-se com o bom vinhito, pelo qual até o Santo Agostinho se pelava.
E eis-me na mesma encruzilhada: se comento, sou um racionalista desatado, se não comento sinto-me a observar os efeitos perniciosos uma alucinação colectiva.
Acontece, por outro lado, que literalmente acredito em tudo. Que a alminha do régulo transborde para o quadrúpede é-me pacifico. Mas o facto de acreditar em tudo, e esta é a diferença, não quer dizer que dê o mesmo valor a tudo. Uma coisa ser plausível não quer dizer que seja necessária. This is the question.
Eu acredito piamente que o facto do régulo ter encarnado no hipopótamo constitui uma demonstração de vanidade total dos poderes sobrenaturais do régulo. Na cadeia evolutiva dos seres, para citar Pascal, estando o homem encravado entre a besta e o anjo (para dar o nome de uma figura ao espírito), qual a vantagem de voltar em hipopótamo?
É um retrocesso. Pode até ser verdade mas é absolutamente improdutivo. Vejam lá o extremo poder que alguém exibe voltando em hipopótamo! Não seria preferível possuir uma criança e voltar como mestre-escola, o maior da região e arredores? Voltar em hipopótamo parece-me o mais disparatado dispêndio de energias. Ainda por cima pervertendo a natureza sã do hipopótamo, tornando-o alcoólico.
E o pior é que vejo a mesma absoluta inépcia comercial por parte da TVM. Como é que se tem um assunto desta natureza entre mãos e não se consegue fazer uma série de 18 episódios com ele, vendendo-o em todos os canais internacionais? Será que, na verdade, eles próprios não acreditam nas suas tradições? Há, em tanta improdutividade, Felizardo, qualquer coisa que me escapa.
Repito, eu acredito que o régulo tenha voltado em hipopótamo. Porém não vejo a utilidade do fenómeno. Nem para a comunidade, nem para o hipopótamo. Ou antes, para este até discirno um sinal positivo: magnificado em vinho, na próxima encarnação ressuscitará em régulo.
O que eu consegui enxergar, na reportagem, foi o aproveitamento político. O responsável provincial que lá foi prestar homenagem ao hipopótamo-régulo, confirmou a comunidade na identidade das suas tradições e deixou-a contentinha e refém do seu secular obscurantismo. E, aliviem-se as almas beatas, o dinheirinho gasto em vinho não foi desviado em sandálias para as crianças.
podre
ResponderEliminar