Quatro da tarde. Posiciono a ventoinha nas costas e sento-me à secretária, recostada à janela que se espreguiça no Índico. Nenhum flamingo. A tisana reconforta-me de uma ressaca mal curada enquanto o olhar vagueia por páginas avulsas de um livro de Christian Bobin. Uma frase prende-me.
Abro o computador, no fito de a transcrever. Os dedos cavalgam o teclado e cometo um erro ortográfico: «Pessoalmente, não estou longe de acreditar que a melancoloia…», mas percebo de imediato que o eruptivo «o» acorda um timbre novo. Quando acabo: «é o pecado maior», sei-me em sintonia com o que Christian Bobin manifesta – acrescentei à melancolia a moinha, o enjoo.
Nada me move contra a melancolía, simplesmente não é a minha praia. Se por lá veraneio, em certos fins de tarde, no fito de dar um mergulho e de catar amêijoas, esse devaneio, em mim, só engendra o desejo de romper. E acabo sempre a recordar que, na Idade Média, a acedia, outro nome para a melancolia, era um pecado espiritual por excelência. Nada que, perdoem-me os muito assanhados filhos de Saturno, seja motivo de muitas felicitações.
Convém, a espaços, sacudir o torpor. E sou da massa de Plutarco a quem intrigava que as pessoas acreditassem de forma tão ingénua que só morriam uma vez. Eu também me espanto, pois com pânica regularidade me descubro projectado contra muros e surpreendo árvores a tombar dos frutos.
Mas hoje é dia de radiações. Ressuscitado, os meus binóculos varrem as águas na direcção de Madagáscar.
Enclavinhada na linha do meu olhar desponta a ilha. Enorme, o recorte da sua costa reflecte invertida a costa de Mozambique - é mar que nasceu de cesariana!
Não se vê, a ilha, mas já lá pus os pés e é um bom lugar para morrer, mais belo e intenso que o lado de cá. Escolhi voltar, mas a semente do que daqui não vejo frutificou: eis-me prenhe do que em mim doravante se chama Madagáscar, um cenário onde ainda respiram piratas e lemingues, ideal para uma topografia do sonho.
E é tudo o que é preciso saber para não bloquear de medo face ao círculo de giz que, no dizer de Musil, paralisa a galinha de Kircher. É a desgraça que vemos repetir-se na nossa vida: há sempre um habilidoso que com um pau de giz convence os demais de que são galinhas, e de que só ele tem direito a ditar «o que devem fazer», porque o seu círculo é mágico – e o que ele exclui carboniza.
A invisível Madagáscar lembra-nos: há sempre algo exterior aos círculos.
Em gazeta tenho andado, há uns anos. Mas, afinal, que vim eu fazer a África?
Aspiro ao desapego que transpirava Max Martins, poeta septuagenário de Belém de Pará, que me recebeu no seu anexo, em calções e tronco nu, deitado na rede, montada no carreiro que sobrava às umbrosas colunas de livros e papelada. Expelia o fumo da sua cigarrilha, baloiçando a sua palidez de exímio lagarto à sombra, e ofereceu-me, tragados dois cálices de aguardente, um livro seu, que eu não tinha. Manifestando-lhe a minha perplexidade por o livro ser anterior ao volume em que se recolhia toda a sua obra e nele não constar, respondeu-me, após uma pausa de espanto compartilhado, como se em si mesmo só ali, naquele momento, retinisse a omissão:
- «esqueceu-me!».
Vim para África recuperar o primeiro olhar, desapropriar o nome. Terei alguma vez a coragem de o mudar? Identifico-me totalmente com essa figura mítica de São Sebastião de Maranhão que se perdeu nas selva amazónica, com o seu cortejo de elefantes, serpentes de prata, carroças cheias de tesouros, flores e palmas por toda a parte, pajens, alabardeiros e formosíssimas escravas – só não me identifico mais porque, azar de rosto humano, o processo histórico me negou as escravas.
Em 70 chegaram as primeiras revoadas de trabalhadores negros à Lisnave. A paisagem humana alterou-se profundamente na minha cidade e as rixas entre bairros passaram a ter como alvo os rapazes negros. Era um ódio mesquinho e cego, alimentado por muitas mães que tinham os mais velhos em África, na guerra.
Eu tinha onze anos e era franzino e muito irresoluto – vacilava entre ser um corsário ou um santo. Num sábado alinhei com a ala mais bélica e hirsuta da rua, queria ver como actuavam. Percorremos a pé os mais de seis quilómetros que me separavam de Porto Brandão. O sol, com mão ociosa, encharcava-nos as pinhas, peneirava a determinação. Porque não desistimos? Talvez o mal tenha, como os pombais, muitas facetas. Já próximos, à curva da azinhaga vimos, fosforizadas ao fundo da descida, as cabeças negras, apinhadas à entrada do cinema-esplanada.
A poucos metros rebrilhava uma bica de água. Dessedentámo-nos durante minutos, recuperando fôlego, olhando-os ao fundo, os olhos enegrecidos. Depois, os meus companheiros estabeleceram o plano, isto é, cada um pegou na sua pedra bicuda. E descemos, em marcha de combate. Eu seguia-os, roído de culpa, disposto a falhar propositadamente todos os alvos, mas como trair os amigos sem eles notarem? A maior parte deles eram filhos de varinas de mercado e nem dinheiro gozavam para ir ao nimas – enquanto os filhos dos “escarumbas da Lisnave” se abotoavam com os prazeres do mundo. Era a emoção que talhava em xisto aqueles rostos que avançavam a meu lado, em cruel demanda. A minha cabeça ardia ao ralenti, numa dimensão paralela, torturada. E, num silvo, a primeira pedrada rasou a minha testa. Eles tinham adivinhado e defendiam-se.
O resto é uma esgrima que a memória não reteve – mira resvaladiça e ténue. O meu ralenti só despertou, fundindo-se repentinamente no presente, quando um jorro vermelho brotou do olho de um puto preto e um grito selou o olho vazado. Corri desalmadamente, até os bofes ficarem em brasa, e encostei-me a uma azinheira centenária, com uma enorme copa. Aí fiquei mais de uma hora, um risco de pavor no olhar.
Nunca soube quem tinha apontado a pedrada e afastei-me dos meus companheiros de tantas horas de futebol. O eco daquele grito nublava-me o drible, desacertava-me o passe vertical. Erguia um novo campo de possibilidades e comecei a interrogar-me: que merda é essa, o humano? E a achar o casco de vidro ao fundo do copo.
Em 95 aterrei em Maputo pela primeira vez. Chegava com a incumbência de escrever um guião cinematográfico para o cineasta Camilo de Sousa. Alguns acontecimentos funestos arrefeceram as expectativas e vi-me demasiadas vezes sózinho numa cidade que me lembrava Cartago depois da passagem dos romanos.
E uma noite resolvi ir com amigos mais novos a uma discoteca, na periferia. A uns quilómetros da cidade fazia-se um desvio por uma estrada de terra ladeada por dois muros altos em cimento cru. Cenário lunar, que se prolongava por quilómetros, e na travessia do qual eu, sempre que se cruzava um carro connosco, era aconselhado a baixar a cabeça, de modo a que as suas luzes não denunciassem a presença de branco – o que, naquele lugar, naquela altura de penúria e de turbulento pós-guerra, podia dar azo a um assalto.
Desembocámos num terreiro pejado de carros e por detrás do muro ouvia-se o ritmo da marrabenta.
A discoteca preenchia os clichés africanos, com as mesas ornadas de chapéus de colmo e algumas máscaras nas paredes. Eu estava um pouco alegrete e disposto à farra, e fui para a pista dançar. No intervalo de uma dança para outra a pista esvaziou-se e estava sozinho quando Bob Marley arranhou as primeiras notas de um reggae. Um dúzia de miúdas assaltou a pista, rodeando-me. Foi uma abordagem tão às claras que me senti prestes a ser repasto das Bacantes e estremeci, literalmente, de medo. E resolvi sair da pista, com metade delas atrás de mim a invectivar-me. De cabeça voltada, dizia ainda «não» a uma mais insistente, quando me virei na direcção do bar. E foi aí que me beijaram. Um beijo exacto, húmido, único como um anzol bifurcado. Era a mais bonita. Perguntou-me se lhe pagava uma cerveja e salivei de imediato a pensar nos restantes pedidos que se seguiriam.
Uma hora depois saímos da discoteca, rumo ao meu apartamento. Providos dos preservativos necessários. Nunca ninguém com uma pele tão negra e luzidia (passe o lugar-comum) me sulcara de humidade a cama e estava bastante excitado.
Entrámos, pus música, demos dois dedos de conversa, e ela perguntou: «Tens um bife, na geleira?». Fiz-lhe o bife com batatas. Pediu outro. Comeu os três bifes que tinha. Depois instalou-se um silêncio propiciatório. Disse-lhe: «Vai andando para o quarto, vou tomar um duche rápido.»
Quando cheguei ao quarto dormia, nua e ferrada. Os seios tinham grumos de farinha. Sentei-me na cadeira do quarto e mirei aquela fuselagem preta – quase azul. Veio-me à cabeça o grito do miúdo, o esguicho de sangue, e a pergunta incómoda: «quantas miúdas ele não pode olhar assim, com a alegria de dois olhos por cada poro?». E num frémito percebi que chegara a minha oportunidade para perceber que ser humano também passa pela renúncia – e fui para a sala, dormir.
Na manhã seguinte, dissipado o sortilégio nocturno, a luz acentuava tudo o que nos separava.
Foi uma das poucas vezes em que fui “um santo” e talvez a única em que me orgulho de não ter sido um espoliador, de ter «não-agido». Há uma coisa talvez informe (uma «grande razão», diria o Cesarinny) que se apelida «a moral» e que não serve só para ser fodida!
Não houve qualquer inocência na minha escolha, nenhuma bacoca saudade de um paraíso perdido. África, em muitos aspectos está a saque, e noutros é um fascinante recomeço, exactamente na mesma proporção em que é o território ideal para o homem reencontrar uma espécie de “ética para náufragos”.
Em África, “condenado da terra”, condenado ao arado da palavra, recomeço do zero, despojado, nu - retomando o enigma da minha existência própria e singular. Desempregado por dentro e por fora, sou de novo o anónimo que vive sem antes nem depois, entregue ao abismo da reinvenção a que nos condena a lucidez de Calderon, quando recorda: «uma noche es la edad de las estrellas».
Que maravilha, bem-vindo.
ResponderEliminarImpossível parar de ler. Viciante.
ResponderEliminarAliete
muito vivo, tudo isto. A inteligência ao serviço do coração nas palavras. As ligações possíveis entre tudo, o entrecruzar dos tempos e dos espaços e a clarificação. o despojamento com que falas de ti. O olhar. A escrita enquanto olhar mágico. e por fim esse gume inexplicável do abraço de África, onde tudo pode recomeçar. A ideia parece quase inocente mas... Também já senti isso, numa África atlântica, a SeneGâmbia, donde imaginei que nunca partiria. Subscrevo o comentário anterior. Impossível parar de ler. Tal como aquele conto que começa com algo como «naquele tempo as árvores eram só pescoço.»
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