segunda-feira, 11 de junho de 2012

UMA MINORIA INCOMENSURÁVEL/ cadernos de Maio

                                                                      Walter Zandamela



Escreve Godard: «hoje em dia toda a gente tem dois ofícios: o seu e o de crítico social» - e adivinha-se aqui o quanto corremos de língua de fora contra a vertigem, no sentimento de estarmos cientes da amplidão do desastre no momento em que já é tarde.

Todos os dias, ao acordar, olhava para as unhas dos pés, todas recurvas e enodoadas, e censurava-as uma a uma como se fossem os seus cinco filhos estroinas e contumazes, antes de gritar para dentro, para a criadagem: Nilza, chá, torradas e a tesoura de poda…

 Onde estão os cipestres?
Aí está o exemplo duma pergunta inútil
Nos lábios de um morto:
E é preciso ser cego para não perceber
Que os cipestres migram
No implausível dorso das andorinhas
Para onde os vivos libam.
Mas vai uma aposta?

Escreveu no teste, «a performance segue os trâmites da ‘obra aperta’». Escreveu três vezes para que eu percebesse que não era gralha, que ele tinha de facto descuidado a leitura de Eco e de Cohen. Agora o exame aperta-lhe as tripas e veio bater-me à porta regatear um ponto numa pergunta onde o santo nome de Shakespeare se transformava em Shakespee. Portei-me como uma verdadeira cascavél: xsheee… pee!

Sem nos darmos conta, o tique de carinho canalha que permeia as amizades e o convívio em que muitos portugueses são vezeiros, nunca dando carinho sem uma pontinha de rudeza, ou sendo líricos mas envergonhados disso (como o O’Neill, por exemplo), é uma forma de distanciamento brechtiano automatizado, e tem como fito “manter-nos alerta quando uma parte de nós deseja entregar-se totalmente aos apelos do sentimentalismo” (Brooks). É a nossa forma de comentarmos: aqui vai disto, mas estamos a pau…

Despenhou-se sobre uma zona residencial, o poema.
Tudo o que restava dum grande grito no silêncio
Arde agora como o fantasma a quem o nevoeiro defenestrou.
Está por apurar o número das vítimas mortais.

Só nos países foleiros, em que nunca nada de estrutural se empreendeu, é que aquilo que o «público» quer tem tanto peso na economia dos bens culturais. Mais do que nivelar por baixo, é amputar por baixo.
Portugal foi sempre um país de galos capões, desde que os marinheiros e navegadores deixavam aos escravos as tarefas primordiais de espalhar a semente na terra, e no corpo e espírito das legítimas. Ainda vivemos dessas ondas de choque de levarmos séculos a foder a mulher por delegação e por isso não admira que abramos mão do «gosto» para nos confortarmos com os ditames do mercado. Claro que neste cenário a cultura será sempre excedentária, em vez de ser catalisadora de ganhos simbólicos e de lucros concretos; se o escroto que define as suas políticas não é o nosso…

Pois é, ninguém é superior a ninguém mas que há coisas mais importantes do que outras, lá isso há.

A anedota é atribuída a Bashô. Confessava este um dia: expliquei o zen ao longo da minha vida e de repente deixei de o compreender. Oh, perguntou o interlocutor, como pode então explicar alguma coisa que não compreende? Bom, replicou desanimado Bashô, devo também explicar-vos isso?
De facto não é possível ensinar nada a ninguém, apenas insinuar… o resto depende de como cada um arma ou investe no que não compreendeu.  

Tão laminada que não se dá à confidência - a libélula.
Por isso o haiku me parece curto,
Ainda que seja mais vivo que a esfinge.

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