quinta-feira, 21 de junho de 2012

REVISÃO DA MATÉRIA DADA

                                                                           Gigli


REVISÃO DA MATÉRIA DADA 

 1 Piétá 


Morto,

ao colo
da Palavra. 

 

2  Releitura de Paul Valéry

  “As mentes limitadas

imaginam que o extremo
                                        do gosto
                não combina com a energia”:
                responde Valéry
aos que nele apenas farejam
                cordura e delicadeza
e não aduzem na sua racionalidade
                a recaptura
        alucinada
de Pompeia
sob uma indigitalizável lava
vulcânica.

 

3 Psicologia de Massas 
 
Desejava saber
                         Kafka
em que momento e quantas vezes,
estando oito pessoas a conversar,
                 convém tomar a palava
para não passar por calado.
E estando trinta pessoas
                  a conversar?
Ou oitocentas na palheta?
E estando um tigre e um galo? 

 

4   Descartes, um desdizer 

“De cada vez que uma coisa (uma porta  fechada?)

surge clara, distinta, no meu espírito (uma porta aberta?),
é possível que me engane!”,

desoprimiu o inodoro Descartes. Mas tactear por gosto
os gonzos enferrujados da evidência
é pior que sujar as mãos num fruto lampo
para depois limpá-las às calças.
Escavar no fundo seco de um poço,            
até que uma sede nos ice à luz?
 

5         Baudelaire e o carpir de Deus 

Balofo à vista desarmada,
o meu gato por dentro veleja
sobre o molho de rijos ponteiros
de um relógio que nunca transigiu.

 Pelo exterior do gato, recende
a balbuciação de Jeanne,
a mulata que me aqua
a atmosfera e onde demolhar
as vírgulas acorda o carpir de Deus.

Na intersecção de ambos,
o grau de toxidade
em que, benévolo –enrolas-me
um charro? -, inebrio os anjos.


6  Leitura de Nicanor Parra 

 Gostaria que o leitor, como na fábula
de Eurípedes, me arrancasse da cabeça

 as penas de pavão. Mas temo que diversos
sejam a porfia e o juízo, e nada emende

à perfurada esponja o hábito da isenção:
a vida, prezado leitor a quem lanço adubo,

espapaça-nos, sanguinolenta.
É uma inadiável questão de tempo

e não de espaço, que ademais
arranca o chão à aragem.

7    Frequência de Lévinas 

            O Mesmo visto como exílio
- o que me agrada em Lévinas.

 O Rosto a quem se oferece a outra face,
de antemão perfurada,
                                     é a estufa fria
onde enlouquecemos os sentidos.


8   Perguntas de Virgílio a Eneias  

Temes as trevas
– o que entendo.
Mas também os nomes?

Quem se domicilia nessa raça
que estanca o que flúi?

Estiolada, a carne dos Deuses,
na linha de parentesco
que os ligava aos homens,
o que se segue?


9        A Explicação de Filosofia 

Wittgenstein entendia o pensamento
como a gaguez de Deus.

 Deleuze, por seu turno,
enxergava na gaguez
o que permite fugir ao delimite
– como a racha que antecede
no voo o ovo.

Em que parte de Husserl
descruzou ela as pernas?

Coincidência da unidade:
não acabo de me vazar,
centrípeto dervixe, na sarça
lúbrica que incandesce o pneuma.


10   Lição do Não 

Dizia John Cage: não
precisamos de destruir o passado –
já se foi!

 Eis a prova:
                   Cage deixou a gaiola!


11   Orientália  

 A mente é o teu macaco de estimação: o tal
que cabriola por um amendoim.

Enquanto puderes evita-o,
depois não te dá folga,
como o azul no céu
que o outono coalhou.

12   Leitura de Ibn Arabi 

 Empolga-te o anelo deste firmamento
estampado na água?
Adivinhas: é uma questão de caligrafia.

 Mas também o tanto que o mundo
te transtorna ou mortifica
tem origem na Sua letra de médico.


13   Silvia Plath

 Todo o decoro que sustém o turbilhão,
escreveu Sílvia Plath - e mais nenhuma
ramagem precisaria de assombrar
para adivinharmos a sua silhueta,
invisível, no meio dos patos
que grasnam, brancos,
contra a púrpura do poente.


14   Releitura de Yeats 

 E de rajada deu conta:
há quantos meses não via um cisne,
o seu imiscuído nó de marinheiro,
quando, langue, esfrega a cabeça
no arco de outro pescoço;
o brilho húmido das suas penas
a espanejar por dentro
as gotículas do seu olhar?


15   Palestras de Merleau-Ponti   

 O mel é um certo comportamento do mundo
para com o meu corpo e visão.
O teu mel, implantado em mim,
como o urso na sua garra.

Uma abelha. Ronda os aros azuis
(que tipo de flores lhe lembrarão os meus óculos?).
Faz rappel no copo de cerveja,
fareja a capa do livro, suspende-me
nas ogivas que desenha em torno da mão.

Longos segundos, os suficientes
para hesitar entre uma palmada
e a aprendizagem de ser estátua.


Suponho que acontece o mesmo
entre eu e Deus. Só que Ele,
mesmo distraído, se decide.


16    Píndaro

 Aí está uma coisa que nos convém:
A raça dos deuses e dos homens
                não fazem senão uma.
Por isso se urde
        a rosa,
                  não nasce.

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