REVISÃO DA MATÉRIA DADA
1 Piétá
Morto,
ao colo da Palavra.
“As
mentes limitadas
imaginam que o extremo do gosto
não combina com a energia”:
responde Valéry
aos que nele apenas farejam
cordura e delicadeza
e não aduzem na sua racionalidade
a recaptura
alucinada
de Pompeia
sob uma indigitalizável lava
vulcânica.
Desejava saber
Kafka
em que momento e quantas vezes,
estando oito pessoas a conversar,
convém tomar a palava
para não passar por calado.
E estando trinta pessoas
a conversar?
Ou oitocentas na palheta?
E estando um tigre e um galo?
“De cada vez que uma coisa
(uma porta fechada?)
surge clara, distinta, no
meu espírito (uma porta aberta?), é possível que me engane!”,
desoprimiu o inodoro Descartes. Mas tactear por gosto
os gonzos enferrujados da evidência
é pior que sujar as mãos num fruto lampo
para depois limpá-las às calças.
Escavar no fundo seco de um poço,
até que uma
sede nos ice à luz?
5 Baudelaire e o carpir de Deus
Balofo à vista desarmada,
o meu gato por dentro veleja sobre o molho de rijos ponteiros
de um relógio que nunca transigiu.
a balbuciação de Jeanne,
a mulata que me aqua a atmosfera e onde demolhar
as vírgulas acorda o carpir de Deus.
Na intersecção de ambos,
o grau de toxidade em que, benévolo –enrolas-me
um charro? -, inebrio os anjos.
6 Leitura de Nicanor Parra
à perfurada esponja o hábito da isenção:
a vida, prezado leitor
a quem lanço adubo,
espapaça-nos, sanguinolenta.
É uma inadiável questão de tempo
e não de espaço, que ademais
arranca o chão à aragem.
7 Frequência de Lévinas
O Mesmo visto como
exílio
- o que me agrada em Lévinas.é a estufa fria
onde enlouquecemos os sentidos.
Temes as trevas
– o que entendo. Mas também os nomes?
Quem se domicilia nessa
raça
que estanca o que flúi?
Estiolada, a carne dos
Deuses,
na linha de parentesco que os ligava aos homens,
o que se segue?
Wittgenstein entendia o pensamento
como a gaguez de Deus.
o que permite fugir ao delimite
– como a racha que antecede
no voo o ovo.
Em que parte de Husserl
descruzou ela as pernas?
Coincidência da unidade:
não acabo de me vazar, centrípeto dervixe, na sarça
lúbrica que incandesce o pneuma.
Dizia John Cage: não
precisamos de destruir
o passado –já se foi!
Enquanto puderes evita-o,
depois não te dá folga, como o azul no céu
que o outono coalhou.
12 Leitura
de Ibn Arabi
Adivinhas: é uma questão de caligrafia.
tem origem na Sua letra de médico.
ramagem precisaria de assombrar
para adivinharmos a sua silhueta,
invisível, no meio dos patos
que grasnam, brancos,
contra a púrpura do poente.
o seu imiscuído nó de marinheiro,
quando, langue, esfrega a cabeça
no arco de outro pescoço;
o brilho húmido das suas penas
a espanejar por dentro
as gotículas do seu olhar?
O teu mel, implantado em mim,
como o urso na sua garra.
Uma abelha. Ronda os aros azuis
(que tipo de flores lhe lembrarão os meus óculos?). Faz rappel no copo de cerveja,
fareja a capa do livro, suspende-me
nas ogivas que desenha em torno da mão.
Longos segundos, os suficientes
para hesitar entre uma palmada
e a aprendizagem de ser estátua. mesmo distraído, se decide.
não fazem senão uma.
Por isso se urde
a rosa,
não nasce.
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