quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

CONVERSAS EM FAMÍLA 1/CABRITA & FREITAS LDA

            Diane Arbus: o olhar equidistante do tempo sobre nós, moi e monsieur Freitas

Há cinco anos escrevi três curtos ensaios dedicados à poesia e aos seus meandros. Como estava “fora de circuito” deixei-os na gaveta. O ano passado o Diogo Vaz Pinto da Língua Morta escreveu-me a perguntar se eu teria alguma coisa esboçada sobre esses temas e eu desencantei o Respiro, que ele publicou numa edição de 80 exemplares, em Novembro de 2011.
Aí dou azo ao que, entre amigos, eu chamo a “minha metafísica da cebola” (estão a ver o respeitinho que exalo na direcção de alguns olfactos refractários ao vegetarianismo!). Já lá chegaremos.
 
Telefone. Atendo. Ouço do outro lado: «Hoje soube que há pinguins em Maputo!» Corte abrupto da chamada, Grande Plano do meu rosto abismado.
Adiante. Voltemos atrás.

A revisão do texto, paciente, generosa, dedicada, devo-a ao Diogo e à Inês Dias.
Quase um ano depois, há um mês, saiu uma crítica do Manuel de Freitas ao meu curto ensaio no 2º número da revista Cão Celeste. Desconhecia-a de todo. A dez mil quilómetros o mapa astral é muito diferente e, juro pelo cão, como diria o Sócrates, que de nada soube.
Ninguém me avisou, nem amigos, nem o editor, o que achei triste, porque isso me pareceu um conspícuo luto antecipado diante de uma vera emanação teleológica. Há orlas para tudo, mas não para os meus amigos, pesarosos, que nem me estenderam o óbolo. 

De repente alguém me pergunta se eu podia facultar-lhe o Respiro, pois ficara com curiosidade devido, dizia, à crítica “precipitada e chico-esperta” do Manuel de Freitas, onde ele me “atacaria” parvamente – era a expressão usada no mail.
Fico então com a lebre atrás da orelha. Uma lebre é muito maior que qualquer pulga, mesmo de cão celeste, é até estranho como pode uma lebre esconder-se trás de uma pala tão pequena mas é verdade, a roedora não deixa o seu crédito por mãos alheias, e fica ali a cuscar, a surrar.

Peço que me enviem o PDF do texto mas como, estou a acabar algo com alguma urgência, deixo o texto do MF a marinar durante uma semana. Entretanto, a minha mulher, que é esperta como um alho e não alinha com os delírios e paranoias dos poetas, leu-o. Perguntei: - Choveu chamboco?* Ela retorque: - Ele discute ideias, não te “ataca”. - Melhor, digo-lhe eu, assim poderemos conversar.
Li ontem o texto, que se chama Quem tem Medo da Realidade?
Acho que a verdade se situa no meio, entre o que foi manifestado pela minha mulher e esse meu conhecido, pois há um ligeiro travo a má-fé (vê-se que o Manuel de Freitas abordou o texto previamente irritado), há argumentos na crítica que não passam de falácias e outros que são montados de um modo engenhoso e “batoteiro” (servindo-se inclusive de citações que desloca do seu contexto), e sobretudo, o que me desiludiu, de forma a que o argumento-chave do ensaio seja “ocultado” para se discutir aquilo que nele é acessório.
Nenhum leitor fica com a menor ideia do que falo em Respiro a partir da crítica do Manuel de Freitas.
Isto deixou-me aquém das espectativas, esperava dele outro nível. Não se pedia uma paráfrase, mas sim, visto que me criticava, que pelo menos o leitor pudesse perceber, através das informações dadas, aquilo que se critica e o fundamento da discórdia.

Isso não acontece, o leitor tem de confiar cegamente no juízo do Manuel que, altaneiro, régio, trunca e sentencia. Manuel fala do seu palanque para o seu público, àqueles que previamente já estão convencidos e já se prestam a confundir uma caixa de fósforos com um incêndio. Ou seja, é um texto auto-deslumbrado (defeito de que me acusa) e absolutamente confiado na perspectiva de que bastará o não-dito (daí a debilidade dos argumentos), um pequeno ademane seu, recriminatório, para tudo entrar nos eixos.
A crítica arranca mal com o Manuel a conceder-me a benesse de poder escrever na primeira pessoa. Admite que é um direito, apesar de tudo. Para, depois da devida citação, me acusar de «um certo auto-deslumbramento (estilístico, inclusive)». Ora, como não se precisa o que seja um auto-deslumbramento estilístico suponho que seja algo do tipo que encontramos aqui, neste poema dele:
«BUHSMILLS

Afinal, vou ter de recordar
outra crítica alheia ao lixo
dos jornais. Já quase saíra
do bar quando voltou atrás
e disse: “Você escreve mal,
mas é lindo”. Percebi
que não se referia ao meu corpo;
bebera certamente o bastante
para expulsar do coração
o desejo sequer de qualquer rosto.
(...)»

É extraordinário que seja o MF a começar uma crítica a acusar-me de auto- deslumbramento, como se ele fosse o lídimo representante de um princípio de impessoalidade. Será um prestigitador de mesa, convencido de que por artes hipnóticas já nos teremos esquecido totalmente do que ele escreveu e como o fez durante quinze anos, num “auto-centramento” “total”? Neste poema denota-se inclusive uma visão estática, ptolomaica, narcísica do sujeito, ainda que “mascarada” de ironia. Porquê ptolomaica? Repare-se como nele o trânsito do sujeito lírico para o empírico lhe confere sempre vantagem: a miúda mesmo quando não gosta dos poemas ou do ele escreve acha-o lindo. Apesar de turvada pela bebida, o que lhe impede a nitidez retiniana para o assombro físico, isso não lhe retira a capacidade para perceber como ele, irradiante, bate a inteligência em castelo, sendo merecedor de ser um eterno foco de atracção. Smart.
Não estou a ser sacana. Não tenho nada contra narcisos e auto-deslumbrados e dou-me já como o sócio número dois desse clube. Afinal, o Vitor Hugo não era um louco que pensava ser Victor Hugo, como gracejava Cocteau? Também eu, como o Freitas, não creio que possa escrever e reflectir a partir de outro cais para além do meu, da pele em que habito, da época que me coube viver. O problema está somente no que fazemos com isso e teremos de ser mais sérios se usamos os outros como imagens-ecrã.
Ora, faltou ao Manuel de Freitas acrescentar que eu começo por falar na primeira pessoa para depois me descentrar pela transindividualidade, um dos conceitos-chaves do ensaio. O que altera tudo.
Eu tomo como lema esta frase de Deleuze que já me serviu de epígrafe para um livro: «Escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, sonhos e fantasmas. Ninguém escreve com as suas neuroses. (...) A literatura só se afirma se descobre sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal». Ainda que esta descolagem se engendre a partir do concreto, do quotidiano, do real.
E seria desonesto se dissesse que o Manuel de Freitas não tem um cento de belos poemas em que realiza esta mesma operação, o que o torna um excelente poeta. E por isso atrás meti em comas “auto-centramento” “total”.
Porém, foi menos correcto o Manuel ao dar de mim só um dos lados da moeda, quando no outro (imensamente maior, esta é uma moeda que se assemelha àqueles insectos cuja fêmea é três vezes maior que o macho) se processava a circulação para um desligamento dos meus (auto-) deslumbres.
É um argumento que, principalmente vindo dele, não cola, não lhe é natural. A não ser que tenha sido o primeiro recurso, à chico-esperto como acusava o meu conhecido.
Quanto ao primeiro argumento estamos conversados.

 Telefone. Atendo. Ouço do outro lado: «Tenho um rabo de elefante para vender…». Escuso-me: «Desculpe, para este natal já fechei o orçamento…».
Não entendo a seguir, esta passagem no texto: «(…) um quase asfixiante recurso a vários e heterodoxos apoios teóricos, que vão de Octavio Paz a Horia Badescu ou Valère Novarina». Porquê heterodoxos? Em relação a quem? E fossem heterodoxos – que tem? Não seria mais pertinente dilucidar se, afinal, se coadunam ou não com o que eu pretenderia arguir? E que terá hoje, em 2012, Paz de heterodoxo? Ken Wilber, um dos filósofos de que mais me socorro, nem é referido. Deve ser já um heterodoxo dos heterodoxos. MF a acusar-me de tiques heréticos? É estranho. Não será precisamente todo o realismo uma heterodoxia? Acaso o texto se sustentava em autores com que nunca se confrontou, tendo-o enervado isso?

Atalhemos pelo segundo argumento, um dos dois principais da sua crítica, que me deixou boquiaberto: o do meu «dualismo redutor».
A ideia tal como está montada na crítica até parece provar a minha suposta dualidade. Se não tivesse omitido certas coisas essenciais que diluem absolutamente o reparo. O que acho preocupante é que Freitas as tenha omitido. Com que intenção?
Eu creio que o MF simplesmente não compreendeu. É até um direito, não querer compreender. Não creio que ele tenha truncado argumentos maldosamente, montado qualquer artimanha no intuito de levar a água ao seu moinho. Não, o Manuel é boa gente! Simplesmente, se ao nascituro se quer explicar que existe um mundo lá fora do útero ele tende a não acreditar e escouceia como um danado. E ele tem todo o direito a não acreditar, que importância é que isso tem? Nenhuma, nem para ele, nem para nós.
Continuando. Umas páginas antes do exemplo que Freitas estampa para me chamar «dualista redutor», já lá iremos, eu contraponho à lógica bipolar do «terceiro excluído», a lógica quântica do «terceiro secretamente incluído». E explico:
«Nesta nova consciência diluem-se os pólos, desaparecem as dualidades.
Para quê insistir na exclusividade do Ártico ou do Antártico se do espaço se verificam regiões mais aprazíveis, de pura mestiçagem intelectual?
Metáfora ou metonímia? Preocupações de quem visa a divisão para reinar, pois afinal, como o manifesto e o latente nos sonhos, metáfora e metonímia não passam de taipais e janelas ansiosas por encaixar-se, de hemisférios que buscam a complementaridade do seu siamês. Como se verifica na poesia de Joseph Brodsky, por exemplo, onde tudo conflui.
O essencial, sublinha Camus, e nós concordamos, é não absolutizar nenhum nível de realidade.
Daí que, no essencial, seja irrelevante o debate (?) que teve lugar no seio da poesia portuguesa na última década.
O retorno a um predomínio da referencialidade resolveu impasses mas, acertadas as miras, não podemos abandonar a complexidade, não podemos confinar-nos a margens mais estreitas que as de Brecht que, como se sabe, eram permeáveis ao transbordo. A polarização é um engodo para incautos, pois em fases alternadas oscilamos entre um e outro campo, num transbordo mútuo.»
Repare-se primeiro no que sublinhei.
Do que falo aqui? Da coacção que durante dez anos, sob a batuta de Joaquim Manuel Magalhães e epígonos, inibiu o uso da metáfora e quis conduzir a poesia ao beco de “uma nova austeridade” para usar uma definição de António Guerreiro. Quanto à licitude do que aqui digo, discutiremos nos próximos postais.

Vamos primeiro tentar definir um dos argumentos basilares que Respiro tenta edificar (que pompa!):
«No livro do paraense João de Jesus Paes Loureiro sobre o imaginário da Amazónia, relata-se: “Há um mito Kaiapó que tipifica muito bem a ideia relacional entre dois mundos – o visível e o imaginal – que, na cultura amazónica em geral, estão imbricados numa convivência quotidiana e explicativa do mundo. Trata-se de um mito que revela uma concepção do universo.
Nele, o mundo é apresentado como se fosse composto de várias camadas que se superpõem, sendo que aquele no qual habitam os kaiapós teria sido descoberto por um caçador habitante  de  uma  camada  superior,  ao  cavar um  buraco  seguindo  um  tatu.  Os antepassados desceram então para esse puka (camada) descoberto através do buraco, utilizando um cordão de algodão. Nem todos tiveram coragem para descer; as fogueiras dos que ficaram na primeira camada superior são hoje visíveis como as estrelas no céu”. (   )
Na esfera ontológica também creio existir um mundo às camadas – os holóns [ diz Koestler que todo o organismo, toda a colectividade, a própria armadura psíquica estruturam-se  em  hólons.  Estes  são  entidades  com  cabeça  de Janus: pode ser vista como um todo em si mesma e simultaneamente, como uma parte de um todo maior] –  o que se repercute em relações diferentes com a  linguagem e o simbólico. Quando ocorre uma passagem de uma para outra camada ocorre uma conversão semiótica.
Este mecanismo de reversão detecta-se também no interior da linguagem e contamina os seus  procedimentos  processuais,  deixando  a  sua  lógica  de operar segundo um esquema linear, gramatical, que se duplica na representação  de um espaço - tempo  sucessivo,  para actuar segundo  intersecções, vizinhanças, constelações, fractalidades.
Julgamos localizar-se aqui a origem das disparidades que retalham o tecido da poesia   contemporânea: Herberto Helder, Ramos Rosa, Vicente Franz Cecim, Fiama  Hasse  Paes  Brandão,  Robert  Duncan,  Juan  Eduardo Cirlot, Pere Gimferrer, Ted Hughes, Antonio Gamoneda, Valerio Magrelli, Edmond  Jabés,  ou  Luís  Carlos  Patraquim,  não  navegam  na  mesma  balsa de António Pires Cabral, Vasco Graça Moura, Paolo Ruffilli, Felipe Benítez Reyes, Philip Larkin Juan Luis Panero, Manuel de Freitas ou Nelson Saúte (poetas de quem gosto e que admiro, não é disso de que se trata). Separa-os muito mais que uma mera diferença de estilos ou de estratégias de escrita – trata-se de uma topografia alterada por diferenças nos teodolitos.
Refira-se, de antemão, que não buscamos hierarquias de mérito, cavaleiros do graal, proxenetas do sublime. Não é nossa intenção dar suspensórios novos ao mito do génio romântico. Afinal, cada hólon é uma parte de uma entidade acima, um degrau para a humildade. Evocamos apenas o direito de declarar que somos condicionados por distintas gramáticas da percepção e pela sua concomitante, intrínseca, tradução.
Por outro lado, o cego nunca enfiará a agulha na linha e não se me afigura suportável durante muito tempo a suficiência com que atemos ao conforto de não ver, como se ao zero apenas se pudesse suceder o coágulo. 
A um nível (horizontal) habita-se no “género” e usamos a linguagem, estamos ainda no domínio da representação; noutro (vertical mas para dentro) habita-se (não em poeta) o susto da linguagem que nos torna partícipes na “realidade”, numa dinâmica processual que impele para lá da representação. É uma coisa que se “sofre”, e que não se pede ou de que se faça pose.
E cada um de nós passa por uma sucessão de diferentes níveis de consciência e de realidade concomitantes, itinerário que por vezes nos faz desembocar  em  portos  e  horizontes  muito  diferentes  do  que  almejávamos quando pegámos no leme.
Mas também isso justificará que hajam expressões que pertençam ao imaginal e outras ao imaginário, questão fulcral a desenvolver noutro ensaio. O que Gabriela Llansol ilumina, categórica, em Um Falcão no Punho: “Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra e se há técnica adequada para abrir caminho a outros”

Temo que, sem a leitura das outras 30 páginas, este naco de «auto-deslumbramento» não seja muito inteligível. Tentemos um resumo:
a) existem factores extra-literários (ah, outra heresia), mecanismos de propensão que nos modelizam, induzem, a percepção, a que com humor, chamo os teodolitos (- um instrumento óptico de medida utilizado na topografia, na geodésia e na agrimensura para realizar medidas de ângulos verticais e horizontais, usado em redes de triangulação);
b) esses teodolitos configuram a bacia hermenêutica em cujo perímetro nos movemos, e (na esteira de Ken Wilber) a este horizonte eu chamo holón;
c) na “travessia” de cada holón posicionamo-nos face ao “filme da realidade”, que nos aparece ora como uma metáfora a decifrar ora, de uma forma mais transparente e confiável, como emanação onde se instaura um discurso descritivo e referencial.
d) estes dois modos de ler e de interpretar a realidade não têm uma  coexistência pacífica e do seu conflito pode, paradoxalmente, resultar uma síntese;  
e) Esta síntese emerge do ponto da salamandra.
e) Chamo ponto da salamandra (é inestimável o contributo de MF à minha metafísica da cebola pois a sua tergiversação estratégica obriga-me a criar conceitos) ao momento em que as contradições se fundem e engendram um terceiro estado, de síntese.
Este esclarece-se se nos recordarmos de Heraclito. Para Heraclito, explica-nos Aristóteles, o oposto ou inimigo é útil, e das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia; tudo se produz segundo a discórdia. O que torna operativa a imagem da salamandra: revivifica-se o que parecia pasto destinado a ser pasto das chamas, e o lagarto que se auto-engendra pelo fogo é singularmente novo porque as categorias com que sonda o real já são distintas.
No ponto da salamandra, por via dessa reconfiguração das nossas categorias, mudamos de holón, e alçamo-nos a um novo mapa conceptual que integra as anteriores oposições, que são agora complementaridades.
E assoma aí o sentimento de abrangência, de vinculação, que se tem quando se vê pela primeira vez o vale do alto da montanha. Aí há que voltar ao vale. Neste, irão despontar novas oposições…
O que equivale à resposta daquele monge budista a quem foi perguntado o que era a budeidade: «primeiro vemos o rio como rio, a montanha como montanha, a árvores como árvores, depois passamos a ver essas entidades como metáforas, como ilusões; enfim, voltamos a ver a árvore nas árvores, a montanha como montanha, o rio como rio». Porém, quando o monge volta ver a árvore como árvore não a vê exactamente como antes mas com um carácter de presença muitíssimo mais acentuado.
No meu pobre entendimento, nós flutuamos aflitivamente sobre a enxurrada deste devir permanente que é o nosso contacto com o real, o que se entroniza no modo literário e lhe dá as condições de possibilidade.
Tudo isto me parece, convenhamos, velho como as tradições, apenas retiro a literatura do campo exclusivo dos estudos literários para a ancorar no mesmo patamar em que a coloca Llansol.
Duas coisas decorrem daqui: 
A superação das polarizações sela uma reconfiguração ética que nos faz aceitar a complementaridade das derivas e os quesitos identitários, discursivos, estilísticos, que estes supõem.
O que me leva a encarar as gerações como meros granéis líquidos e secos – e esta é uma das coisas que me separa de MF, o que será explicitado no próximo postal – e a visar uma postura transgeracional.
Claro que isto só pode chatear a quem tanto pugnou pela identidade da sua geração. É legítimo o incómodo de Manuel, talvez menos a sua batota.
Podia ainda o Freitas, diante de tais hólons e salamandras e delírios anexos, evocar Heraclito e lembrar-me “os burros prefeririam a palha ao ouro…”, seria uma opinião que não me ofenderia, eu não tenho a ânsia de proselitismo que às vezes o parece moldar e não me passa pela cabeça exigir a ninguém que queira acreditar em cebolas.
Daí a chamar-me dualista é um mau passo, que já me parece abusivo, sobretudo pela forma como faz.

Vejamos contudo a frase de que Freitas se socorre:
«(…) há, no que toca ao modo como se relacionam com a linguagem, duas linhagens de poetas. Para uma família de poetas a linguagem é um instrumento auxiliar para criar objectos verbais  que se manifestam em declarações espirituais,   psicológicas ou políticas. Este tipo de poetas serve-se das palavras para expressar ou digladiar os seus conflitos e visões.
Existe por outro lado uma outra  prática  da  poesia  onde  a  linguagem  é em si mesma, um problema, um conflito já existente, uma dobra:»
e continuo adiante:
«Neste tipo de poesia o poder  da  palavra  germina  a  partir  do  seu  próprio fulcro, não traduz outra coisa; o poeta não se serve das palavras para traduzir uma “realidade” pré-existente, antes intui, como diz  Octávio  Paz,  o  autor  da hipótese em presença, que elas são o referente e são tão reais como as árvores, as  casas,  os  aviões  e  as  paixões. As palavras aqui não são signos que representam mas o concreto das coisas tal e qual de uma “outra” realidade.
Um poeta desta linhagem, Valère Novarina, chega ao extremo de afiançar que a palavra nos  é  mais  interior  que  todos  os  órgãos  internos.  E relata: o Bucha e o Estica estão sentados num banco de um jardim, de costas para um arbusto. Um carteirista introduz a mão por  entre  a  ramagem  e  tenta  tirar  a carteira  do  bolso  interior  do  casaco  do  Estica. Só que este, entretido  com  as suas  mãos  num  devaneio  patético,  toma  a  mão  do  ladrão  por  uma  das  suas, com todas as implicações que se enredam numa multiplicação das mãos. A genialidade do gag advém do dilema de que é tomado o Estica na escolha obrigatória de uma das mãos – visto que aparentemente tem três e só se lembra de ter tido duas. Qual das duas são as suas e qual é a que terá de dispensar, é a sua primeira interrogação, mas depois vem-lhe outra dúvida mais fecunda: e porque não ter três mãos?
E começa a olhar para a terceira mão com delícia, como algo que sempre lhe pertenceu naturalmente, ao ponto de ter tirado uma lima do bolso do casaco para lhe arranjar as unhas, para essa mão ficar como as outras.
E está a limar a unha quando o Bucha lhe bate na mão que se entrega a essa tarefa e o faz entender – porque o Gordo também não acha estranho que o Estica de repente tenha três mãos    que  o  mais  rico  dessa  mão  nova é  ser  diferente  das  outras.  E o Estica fica todo contente por poder ter uma terceira mão tão diferente.»

Portanto, eu armo o argumento a partir da hipótese de Paz para o levar àquilo que me interessa focar: «a terceira mão». E enfaticamente refiro que aceitar «a terceira mão» em nós corresponde a aceitar o estranho, condição a que chamo uma Graça (um termo dúbio e talvez infeliz, sobretudo para quem como eu se dá como não-cristão mas aqui fui influenciado por Simone Weil, uma senhora que me merece todo o respeito).     
Aliás todo o ensaio se organiza em torno do três, e o MF até me poderia alcunhar como o Trindade Cabrita - como não sei se ele tem humor, eu ajudo-o.

Contudo, importa frisar:
a)      A dualidade inicial do argumento converge para a «terceira mão», um rompimento com a lógica dual, um exterior ao dito;
b)      Quem lê o ensaio na totalidade e não fatiado, consoante nos convém, percebe que quando aqui se fala das duas linhagens de poetas falo do conflito interior a cada poeta, o que é explícito na seguinte passagem a que já aludi: «A polarização é um engodo para incautos, pois em fases alternadas oscilamos entre um e outro campo, num transbordo mútuo.

Por isso, quando MF contrapõe:
«Poderíamos começar por dizer que dois dos mais importantes livros de poesia recentemente publicados em Portugal (A Faca não Corta do Fogo, de Herberto Helder, e Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar uma Gávea, de António Barahona) são a prova perfeita de que um poeta consegue fundir na sua escrita – e num mesmo livro - essas duas linhagens supostamente antagónicas», apenas corrobora esta minha passagem: «Metáfora ou metonímia? Preocupações de quem visa a divisão para reinar, pois afinal, como o manifesto e o latente nos sonhos, metáfora e metonímia não passam de taipais e janelas ansiosas por encaixar-se, de hemisférios que buscam a complementaridade do seu siamês. Como se verifica na poesia de Joseph Brodsky, por exemplo, onde tudo conflui.»
O que, aliás, será melhor articulado no texto sobre Crítica e Gerações que é anterior a Respiro e que será o próximo postal desta série de Conversas em Família.
Portanto, nesta altura, a pergunta que se impõe é: se o Manuel de Freitas concorda comigo por que quererá demonstrar que de mim discorda?
Qual é o fito?
Bom, entreter-me-ei a fazer uma espécie de postais inspirados na crítica de MF, nos quais discutirei o que seja realismo, o problema das gerações, se existem ou não vozes poéticas que emergiram em blogues, preconceitos e categorias literárias, tudo coisas que nos façam não ter medo da realidade.

Telefone. Atendo. Dizem-me do outro lado: «o sr. está-me a dever duzentos meticais, desde que cá veio ao bar…». Terei de ir resolver isto. Até logo, Manuel.

* «chambocar» é o acto de bater com o cassetete nas nádegas, muito em voga nas esquadras moçambicanas   

 

 

 

 

 

 

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