pierre soulages
«O
físico Szilard anuncia um dia ao seu amigo Hans Bethe que havia decidido ter um
diário.
-
Eu não tenho a intenção de o publicar; vou simplesmente catalogar os factos para
que Deus seja informado sobre eles.
-
Tu não crês que Deus conhece os factos? – pergunta-lhe Bethe.
-
Sim – diz Szilard. Ele conhece os factos, mas ele não conhece esta versão dos factos.»
É Pierre Jacob quem conta, no seu
livro L’Empirisme Logique. E é
notável este diálogo porque nos dá uma dimensão de Deus a quem se concede respeito
e fidelidade mas a quem o homem enriquece acrescentando-lhe
algo, uma pequena tecla para que ele possa pensar, ouvir e ver mais; sendo essa a tarefa do homem: ser um
dispositivo complementar.
Esta anedota nem nega Deus nem o
coloca numa esfera transcendente, intangível, e absconsa.
O olhar de Deus enriquece-se no encontro com o homem.
E isto lembra-me uma das
exigências apontadas pelo pedagogo López Quintás para que se efectue um
encontro.
Um encontro, diz aquele, não é
uma mera proximidade, um encontro exige a compartilha de valores elevados:
«Vejam só, quando você e eu nos dirigimos rumo a algo valioso, unimo-nos
entre nós. Para unir-se, o mais importante é fazer o bem em comum, compartilhar
algo. Dizia Saint-Exupéry, o autor d’O
Pequeno Príncipe, numa outra obra, Terra
dos Homens: amar-se não é olhar um para o outro; é olhar juntos na mesma
direcção. E eu comento, amar não é tanto um olhar para o outro – pelo prazer de
olhar a pessoa amada – mas sim consagrar-se a algo valioso. Quando uma pessoa e
outra realizam em comum algo valioso, isto é o que cimenta a união».
O que vale para o amor, julgo
similar ao encontro com Deus: nesse encaixe, Deus e o homem olham juntos em que
direcção, compartilham o quê? Qual é o terceiro
da relação?
Ψ
Quatro poemas de Jose Agustin Goytisolo, que traduzi em tempos:
A NOITE É-LHE PROPÍCIA
Foi tudo muito simples:
aconteceu que as mãos
que ela
amava
tomaram de surpresa
a sua pele e os seus cabelos;
que a língua
descobriu o seu deleite.
Ah, deter o tempo!
Ainda que a história
vá no seu início
e ela saiba que a noite
lhe é
propícia
teme que com a alba
venha uma sede
igual à de sempre.
Agora, o amor invade-a
uma vez mais. Ó tu,
que bebes!
Apieda-te dela
vê como tem seca a garganta
nem falar
pode.
E escuta a sua condoída
respiração; a agonia
de um êxtase
e o rogo: não te vás
não te vás. Façamos pois
uma saúde!
Quando a água debaixo do chuveiro
a resgatou ao aturdimento
de olhos fechados crio ver
milhares de gotas apressadas
a salpicar-lhe o manto da
infância
como se fosse uma tempestade
de algum longínquo veraneio.
Na estância que os conduz
pelos caminhos da noite
pede “seca-me os cabelos”
como lhe faziam em menina.
Depois vai à janela e encara
de frente o céu assombrado:
estas horas passarão num ápice
chegará o dia e o adeus
e só ficará a ausência.
O frio roça a sua pele húmida.
O SONO VENCEU-A POR UNS
MINUTOS
Quem seria por Deus quem era
aquele homem meio abstraído
que olhava a lua cúmplice
o copo sempre atestado
um cigarro caído entre os lábios
e nu como o demónio?
O sono venceu-a por uns minutos
mas ele não se moveu. Observa
o amante, o conhecido de poucas horas,
se bem que ele sim parecia
sabê-la de cor
apesar de se terem acabado de
encontrar.
Olha o relógio. Pensa na sua
casa:
na quietude que a mantém
enquanto ela... patetices!
Com assombro constata agora
que não sente pena ou
sobressalto.
Levanta-se para beber:
ele vai ouvi-la e virá ao seu
lado
para voltar a estremecê-la.
NÃO HÁ RETORNO
Já terminou o domínio
da noite
e um ar macilento
surde
detrás dos cristais.
Vestiu-se:
recolhidas as suas coisas
enrola agora
o último cigarro.
Depois, em pontas
dirige-se para a porta:
não se vira
ela dormita e contemplá-la
dói.
O seu corpo de luz é
desfechado na
luz,
e ele esgueira-se tenso:
não há retorno,
adivinha que a morte
lhe é propícia,
que há de fundir-se na sombra
mais profunda
e vária. E que nada lhe aliviará
a derrota.
Ψ
À PORTA DOS CORREIOS
À porta dos correios recebi o telegrama
de Cupido.
O que senti assim que a vi com uma ninhada de filhos
a arrematar os
bordos da saia e que a consciência
me bolçou: pertence sempre a outro, a mulher
da nossa vida.
Limitámo-nos a trocar aqueles beijos molhados
que o Kafka enviava por
carta a Milena,
carícias inexistentes para quem desconhece
ser o desejo uma
locomotiva
adejando em piloto automático.
|
Sem comentários:
Enviar um comentário