a Europa com o ar de quem já está a pensar noutro
a)
Sobrava-me tanto de corpo que perdi
em trocos e arrabaldes o esplendor
da solidão. Hoje sustenta-me este magro
pecúlio do silêncio a expulsar os dentes,
a moeda única do riso alheio, es-
quecido de que uma só cicatriz
é dado seguir às criaturas, de que
a própria libra tem reveses. Es-
braseiam agora os ossos sob o aluvião,
vêm como ouriços acenar à boca
E estou mais maduro mais rombo.
b)
O Euro? Óbulo ainda verde
no ramo que desaperra os melros.
O Euro, unidade de transis-
torização do pólen, onerou
a confiança no escudo e situou
a terraplanagem: «Coelho
bravo do mato? Coalho no prato!»
Igual ao Euro nem Eros, a erva
em celibato na boca das urnas.
Stress, stress, o Euro enluva
a treva e mastiga holdings
nações trombas de água.
c)
Hoje reconheço no Euro
o grande agrimensor. Decadência
da literatura francesa, fraqueza
da divisa americana? Matéria reservada
aos espíritas. Por mim, tenho
um armário cheio de ossos a dividir -
-me o quarto: de um lado brame
o mar enquanto o outro escuta.
Mas do andar de cima vem e de-
calca-se na insónia a Valquiria
travestizada - a com Tomáz sintonia
da Marcelo & Gutierrez, Limitada:
riso alvar de um país que toma a hérnia
por subsídio. O Euro
não é bem
O Mal: sim a térmite, o eucalipto.
d)
Não interessa ao Euro. Que um manto
de penas amortalhe a garoupa-de-pedra,
não interessa à finança. A inutilidade
das metáforas corrói as estatísticas, o zelo
com que homens extremamente fiáveis
renunciam aos domingos a férias
aos altos índices de trufas no sangue.
Apesar do lucro com que a morte mantém
estáveis as características do subsolo.
e)
Não reconhecer num cortejo de moscas
os adornos da luxúria e cair sobre
o mundo a cor do sono, o arraiar
dos escudos: eis a morte, um pé
extraviado no sapato de outro.
Deito-me na relva, os pulmões,
coados pelo nevoeiro, cambam.
Há coisas sei cosas choses
things que transcendem o câmbio
nominal: um abraço impossível
de perdoar, a bebedeira que ilha
as despedidas, a amêndoa amarga.
Mas deitado sobre o mais lacunar
dos nevoeiros, com o Marco a especular
Março acima, no “isque”, nas salsichas
na ira de Gunter Grass e com a devoluta
cabeça a noventa por cento de humidade
vou lá eu adivinhar o produto interno bruto
f)
Não é coisa que se recomende. Algo
no meu rasto alimenta-se do débito
dos amigos e do abafo das insónias.
Vai esconder-se no lintel das portas
e acorda quando eu passo. Piora
em noites de uma emoção citrina
quando a solidão se deita gafosa
com o fôlego de uma concertina
que mãos alheias desacreditaram,
trocando nervos por miúdos. E
será possível ensinar a um bávaro
que a idade se sacia no derrame
embora o Euro reprove o sexo
com turcos centauros e talheres?
E não é bonito pendurar um homem
dessangrado no gancho dos versos.
g)
Oito anos suspenso pela indolor
constância do atrito, rendido
à mágoa anónima de uma direita
baixa. Oito anos e muito abono
às trompas uterinas e mais janelas
friáveis de permeio. Os versos vinham
rebentar aos pés e voltavam ao mar,
indivisos. Oito anos com um armário
de ossos a dividir-me o quarto. Nada
pode ser mais simples do que esta arte
mecânica de morrer sem o repouso
de um chamamento, com o crédito
(ainda o Euro não roía até à alma)
muito abaixo das lamejinhas.
h)
E tudo ainda me revolve: este céu
fiel ao afã do tira-olhos, os valores
da Bolsa qu' estampam na pele
a insidiosa paz dos herbários,
o amor de costas para a teleobjectiva,
o esforço do anão a medir caixões.
Ainda tudo me revolve: a mesma
privação o cerco tarde ou nunca
do que cala, os bolsos fundos onde
as mãos desabafam refractadas.
Ao dólar - esse cão
de três patas
que abocanhou as moscas russas
e que fermenta a massa dos síndicos
e dos ministros que nunca se sentam
de costas para uma porta - sorve-lo
agora um caixão Made in Japan.
Só o amor lembrado (distante como
os bicos de uma tesoura aberta),
as afasias, o ciúme - câmbios
que têm no dever incumprido
resíduo inevitável - desafogam o lucro.
i)
A alba traz consigo deuses novos
e aposentações. Se a ressaca da noite
fez sobrar a cabeça e o corpo juntou
outro nome à livre ventilação dos nervos
deixa-te a solidão o atraso e novas
prestações. Aí o melhor é destrançar
os pulsos, privá-los. Que sémen
esquírolas e flashes comem
à mesa da usura. Cresça o futuro entre
ienes e euros: comem-te as carnes
e deixam-te as sobras. Sentemo-nos pois
na perigosa berma do saké, no sulco
fundo onde uma cabeça descalcifica.
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