terça-feira, 11 de dezembro de 2012

DO CORPO COMO MOEDA ÚNICA

 
a Europa com o ar de quem já está a pensar noutro
 
Em 1997 publiquei no livro Carta de Ventos e Naufrágios este ciclo de poemas que posto em baixo e que agora me parecem sinistramente actuais:


a)

 

Sobrava-me tanto de corpo que perdi

em trocos e arrabaldes o esplendor

 

da solidão. Hoje sustenta-me este magro

pecúlio do silêncio a expulsar os dentes,

 

a moeda única do riso alheio, es-

quecido de que uma só cicatriz

 

é dado seguir às criaturas, de que

a própria libra tem reveses. Es-

 

braseiam agora os ossos sob o aluvião,

vêm como ouriços acenar à boca

 

E estou mais maduro mais rombo.

 

 

 

b)

 

O Euro? Óbulo ainda verde

no ramo que desaperra os melros.

 

O Euro, unidade de transis-

torização do pólen, onerou

 

a confiança no escudo e situou

a terraplanagem: «Coelho

 

bravo do mato? Coalho no prato!»

Igual ao Euro nem Eros, a erva

 

em celibato na boca das urnas.

Stress, stress, o Euro enluva

 

a treva e mastiga holdings

nações trombas de água.

 

 

c)

 

Hoje reconheço no Euro

o grande agrimensor. Decadência

 

da literatura francesa, fraqueza

da divisa americana? Matéria reservada

 

aos espíritas. Por mim, tenho

um armário cheio de ossos a dividir -

 

-me o quarto: de um lado brame

o mar enquanto o outro escuta.

 

Mas do andar de cima vem e de-

calca-se na insónia a Valquiria

 

travestizada - a com Tomáz sintonia

da Marcelo & Gutierrez, Limitada:

 

riso alvar de um país que toma a hérnia

por subsídio. O  Euro não é bem

 

O Mal: sim a térmite, o eucalipto.

 

 

d)

 

Não interessa ao Euro. Que um manto

de penas amortalhe a garoupa-de-pedra,

 

não interessa à finança. A inutilidade

das metáforas corrói as estatísticas, o zelo

 

com que homens extremamente fiáveis

renunciam aos domingos a férias

 

aos altos índices de trufas no sangue.

Apesar do lucro com que a morte mantém

 

estáveis as características do subsolo.

 

 

e)

 

Não reconhecer num cortejo de moscas

os adornos da luxúria e cair sobre

 

o mundo a cor do sono, o arraiar

dos escudos: eis a morte, um pé

 

extraviado no sapato de outro.

Deito-me na relva, os pulmões,

 

coados pelo nevoeiro, cambam.

Há coisas sei cosas choses

 

things que transcendem o câmbio

nominal: um abraço impossível

 

de perdoar, a bebedeira que ilha

as despedidas, a amêndoa amarga.

 

Mas deitado sobre o mais lacunar

dos nevoeiros, com o Marco a especular

 

Março acima, no “isque”, nas salsichas

na ira de Gunter Grass e com a devoluta

 

cabeça a noventa por cento de humidade

vou lá eu adivinhar o produto interno bruto

 

 

f)

 

Não é coisa que se recomende. Algo

no meu rasto alimenta-se do débito

 

dos amigos e do abafo das insónias.

Vai esconder-se no lintel das portas

 

e acorda quando eu passo. Piora

em noites de uma emoção citrina

 

quando a solidão se deita gafosa

com o fôlego de uma concertina

 

que mãos alheias desacreditaram,

trocando nervos por miúdos. E

 

será possível ensinar a um bávaro

que a idade se sacia no derrame

 

embora o Euro reprove o sexo

com turcos centauros e talheres?

 

E não é bonito pendurar um homem

dessangrado no gancho dos versos.

 

 

g)

 

Oito anos suspenso pela indolor

constância do atrito, rendido

 

à mágoa anónima de uma direita

baixa. Oito anos e muito abono

 

às trompas uterinas e mais janelas

friáveis de permeio. Os versos vinham

 

rebentar aos pés e voltavam ao mar,

indivisos. Oito anos com um armário

 

de ossos a dividir-me o quarto. Nada

pode ser mais simples do que esta arte

 

mecânica de morrer sem o repouso

de um chamamento, com o crédito

 

(ainda o Euro não roía até à alma)

muito abaixo das lamejinhas.

 

 

h)

 

E tudo ainda me revolve: este céu

fiel ao afã do tira-olhos, os valores

 

da Bolsa qu' estampam na pele

a insidiosa paz dos herbários,

 

o amor de costas para a teleobjectiva,

o esforço do anão a medir caixões.

 

Ainda tudo me revolve: a mesma

privação o cerco tarde ou nunca

 

do que cala, os bolsos fundos onde

as mãos desabafam refractadas.

 

Ao dólar -  esse cão de três patas

que abocanhou as moscas russas

 

e que fermenta a massa dos síndicos

e dos ministros que nunca se sentam

 

de costas para uma porta - sorve-lo

agora um caixão Made in Japan.

 

Só o amor lembrado (distante como

os bicos de uma tesoura aberta),

 

as afasias, o ciúme - câmbios

que têm no dever incumprido

 

resíduo inevitável - desafogam o lucro.

 

 

i)

 

A alba traz consigo deuses novos

e aposentações. Se a ressaca da noite

 

fez sobrar a cabeça e o corpo juntou

outro nome à livre ventilação dos nervos

 

deixa-te a solidão o atraso e novas

prestações. Aí o melhor é destrançar

 

os pulsos, privá-los. Que sémen

esquírolas e flashes comem

 

à mesa da usura. Cresça o futuro entre

ienes e euros: comem-te as carnes

 

e deixam-te as sobras. Sentemo-nos pois

na perigosa berma do saké, no sulco

 

fundo onde uma cabeça descalcifica.

 

 


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