quinta-feira, 7 de novembro de 2013

TREZE TALHADAS DE EPICURO COM AÇÚCAR

ALICE W R, almost disappeared
 
Talvez porque tenha conhecido bons filhos da mãe entre os poetas mais líricos, tenho algumas dificuldades em aceitar em mim tais margens de açúcar, mas enfim, os tempos que me rodeiam  estão de guerra e talvez seja tempo de esvaziar gavetas, tão bissextas. Aqui fica num primeiro postal, um ciclo que terá uns sete anos pelo menos e que nunca inclui em qualquer livro, sendo este o seu lugar certo.
 
EPICURO NO TEU JARDIM
1
O sopro, transpiração
de dentro, catálogo
do que a palavra
não oxidou; o sopro,

em andas de carne,
pintado com branco
de cereja - a sua felicidade
esplendia. O invisível

é sempre o mesmo
mas o visível não
e solta-me os lábios
no declive do teu nome.


2
Psiu, psiu, não há impasse
quando passas e a velha
rua de paralelepípedos
levanta as saias

pra mostrar a terra
ao rubro, não há impasse
quando nos velhos casarões,
de supetão, despontam varandas

de ciúme, não há impasse.
Refém fica o mundo,
e no deserto
adestram-se besteiros.



3

Vejo p’lo menos um
falcão no teu punho:

a minha memória
que desiste de ser alga
no céu. Vejo p’lo

menos um jardim
suspenso no mapa
da retina:

a tua mão, mais
larga que o meu medo,

a acariciar a paisagem
que te procura.


4
Por corsário, almirante,
por mexeriqueiro alcião
me tomava, quando
a canícula me pôs
a boca no teu arroio.
 
O mundo engrandece
o homem se pelo in-
verso da foz três carpas
resvaladiças fazem furos
no oxigénio e lhe crivam
na gema da memória
pupilas castanho-oliva.



5
Vaticínios que a tua vontade
incinera, látego
de um bezouro
que a estela espalmou.

Descampados ficam os braços
se te ausentas,
que desperdício os olhos
se a tua mão

não os tapa, no umbral
do teu silêncio respira
a minha palavra,
ilhada.


6
Um só poro,
que uma ruga
em ti revolva,
faz-me falta.

Os antúrios não
florescem sem
a sombra da tua
tesoura. Eis

o fulcro do que
me põe absorto:
perder de vista
o mar.



7
Alçado na tua voz
como o rouxinol
na alba da morte,

ou a malha cativa
na tua meia. Não
estou só, a luz
 
é um fiel vassalo
do relâmpago.


8
A sede é tanta, tanta,
que a morte é serena
e craveja de irrealidade
as cercanias e o exterior.
 
Engordar, rir, enrubescer,
incidências tão vagas
como domingos implumes.
Mas quando passas

inflamam-se as antenas,
sou mariposa fixada p’los
estames de dentes-de-leão
e o múltiplo ventila o um.
 


9
Deixa que me embriague,
ou falho de visão
cairei no tráfego
da poeira, em vez
de convocar astros,
os imensos girassóis
que a procela acossa.

Deixa que me embriague
na floração do teu sangue
e nada obstruirá
na glande a sua
panorâmica sideral.


10
Ruivo é o sol.
Tu és a umbria manhã
onde o azouge
executa as sombras,
lembrando que todo
o limo é pedra,
e o vento ideograma
à cata de leitor.

Verde é o sol
e só na umbrosa
aspa do teu corpo
chameja o frescor.



11
Olhar sonâmbulo,
carícia sonâmbula,
obsessão sonâmbula,
a que faz nascer
a minha língua na tua
boca, e vaporiza
a tua nicotina nos meus
pulmões, e umbilica
o teu sexo à minha
figueira maldita.
Recomenda-se
aos vindouros: não
ponham terra, não
ponham flores em cima,
ponham ar, ar fresco – pois
sonâmbula era a música.


12
Tão vulgarizada a metáfora
do espelho, julgava impossível
a novidade. Mas num filme
sobre um país libertado
vi um jovem que pedia
a um estrangeiro: tira-me
uma fotografia, nunca
me vi ao espelho.

E percebi: só
magnificado pelo qu’
esplendes, raiado
em ti, me vejo.


13
Epicuro, deus
dos jardins, é teu
cativo. És o mundo
real que lhe apura
as aparências, o vergel
onde a neblina acosta.

Ouço-o:"olha-se
com pouca atenção a vida
se não se viu o coração
que mata de forma
cuidadosa. Mas é
de lei: é necessário
um resíduo de trevas".

E aí tu passas
e fico cego
às crepitações do ar.
 
 

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