terça-feira, 26 de novembro de 2013

BAGAGEM/LADRILHOS 1/ A HEMATOLOGIA

Cartier-bresson
 
 
Revejo-me absolutamente no excerto que escolhi de um artigo de Maria João Cantinho sobre um livro meu e por isso o escolhi para pôr na contracapa deste Bagagem Não Reclamada. Diz assim:
 
«António Cabrita construiu um percurso singular e avesso aos vários "ismos" que percorrem o panorama literário português. A sucessão imagética é surpreendente, vertiginosa, e entrecortada pela introdução do banal, o que acentua essa estranheza do território poético do autor, convocando frequentemente o leitor pela sua ironia e jogo lúdico constante com o real. Cito-o, onde ele afirma: ´O poeta quer levar em consideração todas as coisas, não mora num mundo particular mas dentro da totalidade do mundo humano’, o que leva em conta que a consciência do poeta é ‘a antena da raça’ de que falava Pound, comungando desse pano de fundo que é a sua época ou a história. Daí que a poesia, enquanto modo de exercício pleno da liberdade, seja também o medium da apresentação da dor cósmica ou da catástrofe.
Ao mesmo tempo, esta poesia revela os pólos de uma extraordinária força metamórfica da linguagem e convoca uma "melancolia expansiva", em busca de uma possível redenção, por vezes vislumbrada, sendo o poema nele o lugar onde o mundo (re)nasce, pelo sangue inaugural da linguagem.»
Obrigado Castor, dificilmente alguma vez alguém voltará a escrever alguma coisa mais apropriada para o pouco que faça e por isso aí vã três vénias e um saco de meio quilo de caju.
Entretanto,
Bagagem é um livro onde convergem vários afluentes, de superfícies e freáticos, e tem várias portas de entrada. Em breves pinceladas, exponhamos alguns tópicos.
Signos de vida, o sangue e os canais que o irrigam: as veias.
Num sobrevoo por alguns sonetos de Bagagem é fácil notar que, como se guinadas fossem, em vários poemas as veias e o sangue se figuram como o contrapeso da morte:

(…)
Perder o Paraíso é como o outro,
perder uma veia num dedal
de chumbo e cinzas pia
mais fino. (…)
Ψ
 
 
Voz de um osso antigo
mas de um sangue síncrono
todo ele empenho e susto:
há que dar os primeiros passos
no vazio, o pleno vem atrás.
E é inútil dizer que não: Deus
soprou-me o sangue pela casa.
Ψ
 
 
(…) porque certo é:
veia que se deite logo arrefece
se outro coração não lhe deita a mão.
Ψ
 
 
Secreto condomínio: o de cada veia
no seu galho. E grave: com um nome
morto que assobia dentro em ti.
Ψ
 
 
Saberá que no labirinto da pele
Uma veia dá a volta ao mundo?
Ψ
 
 
Somos plantas que perderam a raiz –
o vislumbre de achá-las
é o que faz correr o sangue.
Ψ
 
 
Crendo embora que a vida
seja a morte por dom, exilei-me
e pelo resgate do sangue na bainha
de alguns versos respiro.

 
Embora às vezes seja necessário olhar a dor e a morte de frente, como nos dois sonetos do ciclo SEDA & FRUTOS, escrito quando a minha mãe morria de cancro, e que como pede o contacto com essas tangências mais informuláveis são poemas mais elípticos e antidiscursivos:
V
Atroz, a trepadeira
da dor. Escava
na fronte,
desinforma as precauções.

Atroz, como o bico
da narceja que imprime
na carne da ameixa
certificado de qualidade.
 
Tudo se emula
quando a Seda
assenta o seu rosto
 
no látego, tique-
-taque em deslaçado
voo, centrípeto.

 
VII
É assim que vejo a chamada
da morte: uma Seda
alumia num átimo
as claraboias interiores.

Ventilada por baixo
em plena prol, a ameixeira-
-brava descobre-se propensa,
e não amêijoa.
 
Menos um percalço
que um perdão:
olhar projectado
 
numa extensão que
laqueia a dor. Selo
lambido por um cego.
 
 

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