domingo, 10 de novembro de 2013

MÉTODO E ECLIPSE: QUATRO PRIMEIRAS PROPOSIÇÕES

                      depois de ter lido o unicórnio, de juan emar, na minha sala de leituras


 

1

Se quero rejeitar a presença da metáfora num poema

faço um compasso de espera.

Após o que pego no transferidor

e meço os ângulos ao intervalo. Em tendo dúvidas uso a fita métrica

avaliando a justeza do colarinho ao pescoço

que me ergue a cabeça.

Tem de estar cingido para eu estar apto a reflectir com equilíbrio.

Não é raro um desajuste, posto eu comprar as camisas

nas calamidades. Um número abaixo ou acima

abre-me um furo na precisão do raciocínio,

e pode brotar por esse mínimo lapso o corno de unicórnio.

É assim desde criança, quando fazia birra antes de dormir

e repetia histérico "não caibo no sono, não caibo no sono…",

debatendo-me para entrar dentro do saco

antes que me nascesse na testa a armação.

                                   : neste espaço respiro,

enquanto espero que as metáforas se aquietem

ou que o vinho mas amorteça, nesse limiar

onde toda a chuva se distrai do dilúvio apesar

da linguagem atrair desde o fundo do mar insondáveis hexâmetros.

Eu sou budista, não me fixo em nenhuma imagem, nuvens que vêm e vão,

senão faço                                           um compasso de espera

e no sofá da sala deito-me em migração para o consolo dos clássicos.

Metáfora comigo não entra desde que Andrómaca trocou

o amor-próprio pela contemplação da espuma dos oceanos

e inaugurou com a traição a Heitor uma figura de estilo.

Comigo nenhum esqueleto

é bailarino ou se imagina o grumo que burla o nada,

de papel a neve. Mesmo no meio do nevoeiro procuro os factos.

E a esse cárcere vulgar que é a metáfora num verso, abomino.

Logo que me chega necessidade de abrir o compasso apago a luz

e se insistente me invade a questão, excruciante:

está de luto o carvão que não acha a sua chama?

pego no balde de cal e caio, caio, caio, caio o escuro

até à exaustão da mente. E não me falem de deus, que

a sua tosse convulsa mata em mim o melómano.

 

2

O tema único é afinal o amor

ainda que assombrado pela morte

que assiste da varanda ao erro

da sua desatendida designação perpétua.

Tema que por um breve lampejo

tem o valor da ostra

ou de uma ou outra gargalhada

num país de tristes.

Quando falo de ostras falo de pulmão,

dessa breve ignição que leva o reformado

a lançar as cartas no jardim

e a derrotar o labirinto.



3

Agradeço a este verso não me deixar ao léu.

E, confesso, cabem-lhe também ter feito os desenhos

utilizados nesta página. Queria então, ao menos,

ter dado um timbre ao poema, a feição polifónica

e ambulatória de um sampler.

Mas assim que ela chegou – palhaço

enfarinhado ou homem diagonal ao seu ridículo –

vi-me privado do jogo de questionamento das identidades,

absorvido simplesmente pela sua presença,

como se estivesse em lótus no topo rochoso

de um fiorde norueguês e a minha respiração,

pontiaguda, fosse perfurada pela paisagem,

à beira da exaltação que, estranha à vontade,

antecipa a penetração. Sob o tecto deste verso

que não me deixou ao léu

e me eximiu da matéria da cólera,

devolvido ao sinal gráfico

de ser um só, felino empoleirado num talo

que foca mas não chega ao céu.




4                             (Denise Levertov)


Enquanto o meu amigo lê, mija o urso branco,

placidamente, tinge a neve

de açafrão.


No preciso momento da leitura, espreguiça-se um ror

de deuses entre as lianas: com olhos de obsidiana

vigiam gerações de folhas.


À medida que vai lendo

volta o mar às suas páginas mais negras,

folheando-as

com sombrio humor.




 

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