terça-feira, 26 de novembro de 2013

DA BAGAGEM AO LIBELO A FAVOR DO CURANDEIRISMO

 


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Está pronto o meu livro de sonetos Bagagem não Reclamada, Alcance Editores.Vou à tarde buscar os exemplares a que tenho direito. É um livro singular que nas redutoras actuais condições em que se processam as edições no mundo de língua portuguesa dificilmente teria lugar noutro lado. Só a circunstância de à partida os livros terem um mercado exíguo em Moçambique, obedecendo portanto as motivações para os fazer a outros critérios, é que autoriza que um livro como este se faça. Neste momento eu não teria coragem de propor a mais nenhuma editora – em Portugal ou no Brasil – este livro e aliás por isso me resolvi a fazê-lo. E foi um gesto de grande coragem da editora levar a coisa até ao fim. Noutro espaço seria incerto. Aí está como os exemplos de liberdade surgem por vezes donde seria implausível esperá-los.


O género, o soneto, apesar do seu cunho histórico – ou precisamente por isso – levanta imediatas suspeitas. Tornou-se tabu e consente-se a poucos, excepcionalmente, praticá-lo. Até porque é de facto difícil, e poucos não deslizam no desafio. O livro foi-me sendo pingado ao longo de trinta anos. Nunca projectei na cabeça fazer um soneto quando lanço o primeiro verso – é-me simplesmente um ritmo que às vezes me é favorável. Bastou-me aceitar a coisa.

São 180 sonetos – o mais das vezes rudes, fanhosos, densos, barrocos. E é literatura sobre literatura, em torno das palavras e no torno da memória da escrita. Um livro que cairá em Moçambique como um objecto estranhíssimo, gongórico, e que só teria filiação nos sonetos de João Pedro Grabato Dias, que já ninguém lê há mais de vinte anos. Serei com certeza acusado de hermético. Mas o hermetismo sempre atrai os jovens e se por essa via influenciar alguns jovens a sair da linha saturada da poesia social terei feito algum serviço.

Nada tenho contra a poesia social, apenas contra a muita má poesia social que o mais das vezes se pratica em nome das inércias políticas e da preguiça, bem como contra "o dirigismo" das vias dominantes. Aprender que um verso pode surgir apenas por se amar as palavras e a conversa subtil que as palavras organizam entre si pode ser o mais salutar dos antídotos. Mesmo que seja no rasto de uma irradiação que não nos deixa ver claro e levanta mais perguntas que respostas. A poesia tem tudo a ganhar com as perguntas.

Contudo, tenho consciência que há neste momento poucos leitores para o meu livro em Moçambique e que ele me trará mais inimigos e recriminações veladas, uma por outra chacota. A tudo encolho os ombros. A vantagem dos sonetos é que dá umas enormes margens brancas na página onde tais criaturas poderão fazer jorrar as suas imprecações e reptos e contra mim escrever as suas obras-primas.

Não faço ideia de como será recebido em Portugal, embora o unânime sucesso crítico de A Maldição de Ondina me tenha posto na mira. E aí o nível médio dos leitores, sobretudo de poesia, é mais alto, pelo que o livro, para lá, não traz, como não pretende, novidades.

Pessoalmente, para o bem e o mal, acho que o livro é um marco na minha obra.

Ficam agora por editar três inéditos de poesia, bastante diferentes deste após o que posso finalmente pôr-me em acordo comigo e abandonar esta arte. Aliás por boas razões: lendo os poemas luminosos que o Paulo José Miranda anda a publicar no facebook, e apenas no facebook – renunciou a publicar poesia em livro -, compreendo que o mundo não precisa de mais ruído, e para já, não tenho mais nada a dizer em verso.

O que, ao contrário do que pensaria, há uma década atrás, não me desgosta nada, só me encanta. Estou de novo numa fase em que necessito de me libertar da poesia para um dia, se acontecer, voltar a ela, mais livre e irmanado com os elementos.



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Estou um pouco desapontado com o livro que a Paulina Chiziane co-escreveu com o curandeiro Rasta Pita, Por Quem Vibram os Tambores do Além? (Índico Editores)

Todos os livros que quebrem com a tirania do positivismo e os preconceitos do racionalismo são bem-vindos. O problema é que este tipo de "abertura" exige mais rigor e, até para se sustentar uma autoridade identitária, um maior afã comparativo. O livro limita-se a seguir a trajectória de vida do curandeiro até este se tornar um xamã. Infância, sonhos premonitórios, provações, e iniciação na medicina tradicional; ao que se segue a apresentação de alguns tópicos da "morfologia conceptual" do pensamento mágico: as árvores, os espíritos, os fantasmas, os animais e os espíritos, os espíritos das águas, etc.

Nada que qualquer bom tratado sobre as religiões tradicionais do mundo não traga.

A necessidade de por causa da febre do Afrocentismo se apresentar as práticas e crenças tradicionais africanas como originais, e únicas, quando muitos dos seus fundamentos e elementos são verificáveis em muitas culturas e lugares enfraquece a pretensão do livro pois o seu pendor descritivo e crédulo acaba por não firmar a legitimidade que se pretendia.

Por exemplo, o que na página 31 se lê como referente à relação do africano com a natureza é afinal análogo à ideia de Ressonância que acomoda a Natureza no Taoísmo. Ou quando se lê que o curandeiro se presta para leitura dos três olhos do coco: «Lançam-se as pedras ou conchas e pergunta-se: o que diz o teu olho sobre a tua vida? O que diz o olho do mundo? Ou o que diz o olho de Deus» detecta-se imediatamente que a lógica que ele segue é semelhante à do isomorfismo que está por trás dos jogos de adivinhação do I Ching.

Ou seja, uma leitura comparada deste saber africano com os saberes de outras tradições acabaria por reforçar a sua pertinência e ser mais útil à afirmação da sua validade que a máscara de uma pretensão identitária que só parte do desconhecimento e por isso exige a crença (um instrumento menos fidedigno do que a evidência) para que se aceite cruzar o umbral entre a realidade e a ilusão.

Outro flagrante caso de falta de rigor é o que apresenta a suposta cura de Dismas, o irmão de Rasta, na infância destes. Um dia Dismas acordou e não conseguia mexer as pernas. E explica ele: «Quando estive a dormir, vi em sonhos uma mulher que veio só para me pegar as pernas e depois desapareceu» (pág.44).

O que é facto é se passaram anos sem que Dismas se conseguisse locomover – e nem as idas à igreja cristã ou ao médico trouxeram qualquer restabelecimento ao irmão do curandeiro. Este entretanto ia tendo sonhos que lhe anunciavam que a cura daquele se daria através da medicina tradicional e com um determinado curandeiro, mas a mãe não lhe ligava. Só ao fim de anos de impotência e de combate frustrado contra a doença é que a mãe resolveu seguir os conselhos dos sonhos de Rasta. Lá localizaram o curandeiro, num lugar distante de casa, e então os dois rapazes ficaram com o terapeuta vários meses até à melhoria de Dismas. Voltam então casa e podem então voltar à escola.

E na página 54 lê-se: «Ele (Dismas) era bom de briga, apesar da deficiência. Ele atacava e se defendia como ninguém. Gatinhando, surpreendia o adversário, agarrava-o pelas pernas. Bastava conseguir derrubá-lo esmurrava-o até não poder mais».

Apesar da particular incidência dos sonhos premonitórios de Rasta, que lhe definiram a vocação futura, apesar dos especiais atributos do curandeiro Sindano, a melhoria de Dismas não se mostra brilhante. Tudo isto ilustra cabalmente uma manifestação de crença sem provar um efectivo resultado terapêutico, e creio que os "poderes" de Rasta Pita lhe terão de ter chegado por via de outros sonhos mais poderosos e de ensinamentos mais eficazes.

Tal como estão na narrativa a coisa não é crível, ou só para quem à partida já seja crente.

Igualmente, não sabemos que dizer quando, ignorando o papel do inconsciente que um século de psicanálise mapeou, se toma por um espírito o alter-ego que se figura no sonho, dando por mágico o que seja o simples trabalho da "mecânica dos sonhos" (pág. 199, o exemplo do mecânico de automóveis), sem que um olhar crítico separe naquilo que Rasta conta o trigo do joio.

Estes involuntários "actos de idiolatria" não servem os propósitos do livro e com eles Paulina não protege o seu amigo aproximando-o sem querer, e em alguns momentos, da charlatanice, o que é pena e o livro não merecia pois, apesar deste ser um livro ingénuo (no sentido em que nunca se auto-interroga e não num sentido depreciativo) é claramente honesto, como honestos são os seus protagonistas.

Enfim, um livro cheio de boas intenções, que nos elucida sobre uma certa "poética" de relacionamento com o mundo e cumpre ao nível duma primeira divulgação imediata mas que, a níveis mais analíticos, é uma oportunidade algo malograda para falar seriamente de saberes transpessoais.

O que era vital.

(Parabéns ao bom trabalho gráfico do Lénio Ussivane)


1 comentário:

  1. Eu sou professor no Brasil, e preciso muito deste livro, de Paulina, para minha pesquisa da pós-graduação. Como posso ter acesso a ele? Tentei de tudo. Pode me ajudar?

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