sexta-feira, 19 de setembro de 2014

doze notas sobre a dignidade / 2

roberto matta



A preparar uma aula sobre retórica dou, no rodapé do livro de W.K.C. Guthrie sobre os Sofistas, com este mimo de um pensamento de Górgias: «Mas o que é a morte? Ela é aquilo de que estamos persuadidos!». Leio a coisa num baque. Estamos persuadidos? Todas as hipóteses são contra. Quer a de Santo Agostinho, que, em De Magistro (O Professor), faz Adeodato, com um milénio e meio de antecipação, antever a arbitrariedade entre o significante e o significado, ao pô-lo a exclamar, “As coisas não se aprendem pelas palavras!”, ou seja, estas não estabelecem qualquer relação orgânica com a coisa, somente de signo a signo; quer a de Freud, para quem o inconsciente não aceita a morte.
Em África, que nas sua crenças apresenta sinais evidentes de que Freud tinha razão neste aspecto, esta impossibilidade reflecte-se na crença de que a morte corresponderá antes a uma mudança de estado – o vivente passa a espírito, sem um corte entre significante e significado, apenas uma deslocação - do que a um irreversível confisco do corpo e da palavra pelo nada. Para um banto é manifestamente impossível acreditar quer no aleatório, quer na finitude. Pior, para ele não há morte sem mediador, o que explica que nenhuma morte se aceite como natural.
E creio igualmente que aqueles jovens que agora aceitam ser peões-de-brega do Estado Islâmico e se prestam, afanosamente, aos rituais da decapitação dos hereges ou às missões em que “treinam para mártires” também, no fundo, não estejam persuadidos da morte, que sagram na violência sobre os outros; praticada com a inconsciência - denunciada por Deodato - da imunidade com que as palavras roçam, para se isolarem dela, a experiência das coisas.
O que é que faz de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, um livro tão duro? A clareza com que ele fala da morte como tangibilidade e aponta a sordidez dos tantos que escolhem ser colaboradores da morte – uma categoria “humana” que o romance levanta. Com mordacidade e ironia, Céline expõe o que Ésquilo já havia percebido: a malfafada finitude do homem presentifica a angústia, torna-o susceptível. Mas este reconhecimento é raro, e rastreia mesmo o limite antropológico que Clément Rosset esmiuçou em A inobservância do real: «Se há uma faculdade humana que merece atenção e se assemelha ao prodígio é realmente essa aptidão, particular ao homem, de resistir a toda a informação exterior e quando esta não concorda com a ordem da expectativa e do desejo, de ignorá-la, se for preciso a seu bel-prazer; admitindo a possibilidade de se opor a ela, se a realidade insiste, numa recusa de percepção que interrompe toda a controvérsia e encerra o debate, naturalmente às custas do real. Esta faculdade de resistência à informação tem algo de fascinante e de mágico, nos limites do inacreditável e do sobrenatural: é impossível conceber como se utiliza o aparelho perceptivo para não ver, o ouvido para não ouvir. No entanto, essa faculdade, ou melhor, essa antifaculdade existe; ela é mesmo das mais banais e qualquer um pode fazer a sua observação quotidiana».
De facto, estendendo este eterno desvio ao contacto com a morte, não estamos persuadidos. Se o estivéssemos não nos seria tão fácil matar e não viveríamos de forma tão frívola a patologia das comunidades culturais, que assanha as identidades umas contra as outras, reactualizando os recalcamentos. A flagrante falta de empatia prova-o.
Há uma história admirável com Maria Casarès, a actriz francesa que foi amante de Albert Camus, e que nos ajudará a focar o ponto. Maria Casarès, já velha, é entrevistada na televisão e o jornalista pergunta-lhe, “Se hoje mesmo fosse inventado o elixir da juventude, a senhora tomá-lo-ia?” E ela respondeu, “Já vi partir demasiados dos que amei para agora os trair com desejos infantis. Tenciono juntar-me aos meus…”. 
 Orbita por aqui uma grandeza que pode não ser para todos mas que enfatiza a dignidade da vida exactamente por resgatar a morte como experiência igualmente digna de ser vivida - uma outra face da plenitude -, ao invés de a menorizar como signo . Maria Casares, que não precisava de ser persuadida (a impessoalidade da velhice é um desembriagamento que não se ilude facilmente), estava persuadida: todas as suas possibilidades eram de saída.
Quem está persuadido abandona o fascínio das "imagens" e reencaminha-se para os lugares de valor, abandonando o zapping subjectivo.  As imagens mentem. 
É preciso restituir a morte à morte, à dignidade de ser intransmissível o estar por sua conta e risco. Só de novo na aflição desse sentimento trágico pode aflorar a proprensão de amarmos a outro como a nós mesmos.

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