quinta-feira, 29 de novembro de 2012

MANUAL PARA INCENDIÁRIOS


Apresentei ontem o último livro de crónicas de Luis Carlos Patraquim, no Instituto Camões de Maputo. Aqui segue o texto:

Eu não sei se já vos disse que os gatos são os maiores sonhadores do planeta. A informação chega-nos dos neuro-cientistas que estudam o sonho e onde entra a ciência há que calar e estender a esteira. Os números são retumbantes: o homem sonha cerca de 90 minutos por noite e o gato 180 minutos.
O Gato de Cheshire, da Alice, aquele que se põe invisível quando quer, sonha o dobro; primeiro, nunca corre o risco de ser interrompido, segundo, sendo invisível escrutina todo o inaparente, podendo estar atento sem interrupções à irrelevância substantiva que dá cerzidura ao tecido do mundo. Daí que desperte outros vincos na memória, mais do que nosotros, comuns mortais, e destituídos de lente.
Há dois deuses da crónica: o Plínio e o Gato de Cheshire.
No Plínio podemos encontrar as plantas que nascem de uma lágrima, um centauro – trazido do Egipto – conservado no mel, os andróginos de Nasamona que alternam os sexos quando se acasalam, o poeta Pompônia que nunca arrotava, e até a refutação da crença de que um cometa surgido entre as partes pudendas de uma constelação possa anunciar uma época de relaxamento dos costumes.
Os cronistas são compiladores obsessivos que nunca se esquecem de nada, do mais minúsculo pormenor, e que fazem das variações do ínfimo modos compulsórios para ler o mundo e para o julgar até, mas com a bonomia dos sages, cientes da inutilidade do seu próprio exercício.
É o que lhes dá a vantagem sobre os ideólogos: em surdina, eles não querem denunciar nada e fazem do relato da sua exasperante inabilidade uma deriva no mundo. E então, para lermos a sua época e as suas derivações temos de ir aos cronistas, enquanto nos ideólogos acabaremos por ler unicamente o seu próprio ultraje, a sua indisposição para com a época que lhes coube.
O Patraquim, como quem não quer a coisa, diz isto melhor que ninguém ao citar o japonês Tanijazi e o seu Elogio da Sombra, onde lemos: «nós, os Orientais criamos beleza ao fazermos nascer sombras em locais por si mesmo insignificantes». Esta é uma poética para cronistas.
Cada sombra recortada é uma categoria nova através da qual podemos reler o real, uma nova incisão que abre uma janela onde só se via uma parede. Por exemplo, e este seria um típico tema para cronista, falar de como «uma ducha escocesa» se transformou num pífio e lacónico «duche», assim mesmo, um maricon, não é apenas falar de uma empobrecedora redução semântica como também mostrar a deriva dos signos na História e o ponto em que estamos nessa consciência histórica.
Isto é importantíssimo, pois ao apontar os holofotes às coisas inaparentes, invisíveis, até que nelas se apresente «a pungente melancolia das coisas» (entrevendo assim o avesso da memória, o outro lado da história), tornamos evidentes como são inumeráveis as narrativas do mundo (dizia o Barthes), escondendo-se aqui a pólvora invisível com que os cronistas desmantelam a tentação dos regimes quanto a estabelecerem uma narrativa única.
As duas antologias de crónicas até agora publicadas, Ímpia Scripta  e esta, Manual para Incendiários, demonstram que o Luís Carlos Patraquim, para além de ser – e não é matéria de opinião, mas de facto – um dos grandes poetas africanos deste período, ainda que obscuro, hermético e tralalá, é também um dos mais argutos cronistas moçambicanos deste momento. Desculpem, não falo de um cronista de ímpetos, mas irregular, falo de constância, de débito regular, dum magma com uma determinada densidade de incandescência, da capacidade para manter a mira crítica sem esquecer as salvas do afecto; do saber que aqui porfia mesmo para falar somente de maçãs ou de risos de corpos pubescendo ainda; da imensa reinvenção narrativa, posto muitas destas crónicas terem como ponto de partida a míngua de tema. E falo também do equilíbrio destas crónicas, porque as comunidades, quer as sociais ou a dos leitores, não se organizam tendo por motivo exclusivo a violência, o gesto heroico.
O tempo dirá o lugar destas crónicas, na tapeçaria da literatura moçambicana; julgo que lhes acrescentarão um brilho que a proximidade não deixa ver. E aí se dará conta da sua entronização na história deste país, não porque o Patraquim pertença a qualquer Liga dos Amigos do Bantu, gaveta onde o gostariam de o colocar, mas por insofismável direito, não só de nascença, vivência e espontânea crioulagem da linguagem, mas sobretudo por uma consequente e contínua defesa da presença dos motivos, caracteres, cultura e linguajares moçambicanos no baixo-relevo da história contemporânea, gesto em que é quase único. Poucos fazem tanto pela dignidade de uma moçambicanidade, como ele que não ostenta, nem tem, coitadito, nenhum cargo.
E fá-lo com humor, de manselinho modo, como ele o diz, inoculando o leve onde se institui o grave. Por exemplo, logo na crónica que abre o livro, que se elabora a partir da sua própria busca, pois nem tema nem título tem o confesso sacrista, revela-se um humor apurado pelo sombreado de nos reconhecermos frágeis. Estive quinze minutos encantado com uma frase deliciosa, em que só a escolha do verbo vale a crónica. Diz a frase: Gangrena-me a dúvida de não saber se ainda há epopeia. A gravidade do verbo gangrenar é aqui, pelo hiperbólico, um claro sinal de que o poeta se riu às gargalhadas quando escreveu essa frase, conquanto o assunto seja reconhecidamente sério e a dúvida possa ser excruciante.
Um cronista aprende a ser vários e a tartamudear as nuances. Se sabe rir, como o Patraquim pelas mais ínfimas razões inaparentes, apesar das inúmeras declinações da temática do fim, nunca cairá no cinismo, nunca se renderá à lamúria,
Podia dar outro exemplo de humor com a deliciosa conversa entre o cronista e a pomba Efigénia que incide nos maltratos sobre a natureza, mesmo que debaixo do guarda-chuva do cinema, ou falar-vos da subtileza com que o Patraquim se debruça sobre os males ecológicos na crónica Andam a Tramar o Sr. Hemingway; ou da graça com que o cronista porfia nos quatro elementos, ou como tende a transformar qualquer cavalgada infernal numa corrida com os Irmãos Marx, com o Harpo a tocar harpa de costas sobre o dorso de um alazão branco que se precipita para o abismo e o Groucho a pôr-se em pontas sobre a sela porque viu viúva rica no horizonte.
Já não quero falar da magnitude da língua, do swing com que esta dança, nem do ritmo das frases, que me faz lembrar as crónicas duma amiga comum e grande escritora, a Maria Velho da Costa.
Termino falando da urgência, da urgência da ética que se fala numa crónica: «A cabeça lateja. Deve avançar-se para a combinatória de caracteres, frases, ideias – se as houver – só quando as veias ameaçam rebentar e o aneurisma está iminente. Então as palavras funcionam como sanguessugas, campânulas de vídeo onde o olhar bate ao leve com a mão e um brilho viscoso tinge a minúscula paisagem.» É isso que falta a muita gente que escreve, o carácter da urgência, e o saber de que apenas quando as veias ameaçam rebentar estamos aptos para não mentir. Esta é uma dimensão que não se ensina, ou se experimenta ou não – calibrar o mais refinado sentido lúdico com a verdade da escrita é uma das lições não-declaradas deste Manual para Incendiários.
Mas isto só acontece quando a lucidez não nos desengana a consciência de que estamos lixados e ainda assim sucumbimos alegremente «ao destino de tanto amar».
Alto, o Gato de Cheshire, está-me a contar um segredo. Esperem. Como é que é? Ah, diz ele que o Patraquim neste livro se entregou irresponsavelmente ao «alfabeto dos sonhos» e que face a isso só há uma forma de reincidirmos no erro de o ler, tens a certeza de que é reincidir no erro?, hum, o Gato de Cheshire diz que ler o Patraquim é inegavelmente reincidir num erro necessário, e portanto o método que aconselha é: chegar à sala, apagar a televisão, sentarmo-nos no cadeirão, deitar a mão ao cálice de brandy na mesinha ao lado e fazer rodar o líquido antes de o emborcar de um trago, abrir então o livro e, antes de nos embrenharmos na primeira letra, deixar que as pálpebras se fechem. Claquete. Sonho REM.
Esgotem o livro se faz favor.

 

 

   

  

2 comentários:

  1. Nossa, eu enlouqueci para ler o livro! A apresentação do livro é estonteante. Com livros viro criança e entro no "ah, eu quero, quero, quero..." Apaixonante. A apresentação está um show. Posso reproduzir essa apresentação no Mínimo Ajuste, onde sou colaboradora?
    Abraços,

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    1. pode sim tania, esteja à vontade. abraços, cabrita

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