terça-feira, 6 de novembro de 2012

A DIMENSÃO DO DESEJO/ VIRGÍLIO DE LEMOS


Teve ontem lugar no Instituto Camões, em Maputo, o lançamento do livro A Dimensão do Desejo, de Virgílio de Lemos. O livro foi apresentado pela professora Rita Chaves e eu li o texto que segue em baixo, sobre a ligação do poeta a Reinaldo Ferreira, a quem o livro é consagrado.
Em cima, a capa da antologia que eu organizei em 2010:


Como o atestam todas as dedicatórias com que o Virgílio polvilhou os poemas e que às vezes se multiplicam até roçarem à insânia, pois há poemas com doze dedicatórias, o Virgílio, que toda a vida foi errante, é, por lastro e compensação, um homem de fidelidades.
A maior de toda consagra-se neste livro, dedicado no essencial a Reinaldo Ferreira. Ora. O que à primeira vista é surpreendente é que não podiam existir poetas mais opostos. Um é fogo preso e o outro fogo-de-artifício, um escreve como se não tivesse havido Rimbaud e o outro foi irrigado pelo surrealismo e plana pela liberdade do jazz, um prefere uma estética do acabamento e outro professa-se num inacabamento perpétuo.
Reinaldo Ferreira é um pós-presencista muito influenciado pelo Pessoa ortónimo e que na verdade tem uma recepção minimizada em Portugal porque o século XX português na poesia está cheio como um ovo e só na sua geração conta com Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho, Edmundo de Bettencourt, António Maria Lisboa e Mário Cesariny. Depois, o caso de ter sido Régio quem mais exultou com a publicação dos poemas reunidos de Reinaldo Ferreira não ajudou – a melhor poesia dos anos 50 fez-se contra o que o Régio representava, esteticamente falando. Quer isto dizer que o Reinaldo Ferreira teve pouco espaço para a sua afirmação plena em Portugal.
Evidentemente que o mesmo não se pode dizer do seu lugar em Moçambique, onde nessa época não existia o mesmo número de tubarões-baleia por quilómetro quadrado, nem a poesia estava no mesmo ponto.
Quer isto dizer que o Reinaldo não era um grande poeta? Não. Mas que foi uma expressão algo deslocada da poesia que então se impunha, um fantasma que passava em fundo.
Para ajudar a compreender isto melhor e o enigma da atracção do Virgílio pelo Reinaldo, talvez seja bom trazer aqui uma distinção que o Octavio Paz fazia sobre as linhagens dos poetas. Para este grande poeta e ensaísta mexicano há os poetas que se servem das palavras para expressar ou desentranhar os seus conflitos e visões, para quem a linguagem é um instrumento para criar objectos verbais que são em si mesmo declarações espirituais ou psicológicas. Depois há os outros poetas, no outro extremo, para quem a linguagem em si mesmo é já um conflito ou um problema: isto é, este tipo de poetas não se serve das palabras e confía que estas são tão reais ou irreais como as árvores, as casas, os aviões e as paixões. A atitude destes poetas é mais radical e mais crítica e criadora, por vários motivos:  primeiro porque ao enfrentar-se com a linguagem enfrenta os fundamentos mesmos do mundo, e crê que para dizer o mundo há que inventar outra vez a linguagem, em segundo lugar constrói com a poesía uma relação, não faz do poema um objecto, não o instrumentaliza.
O Reinaldo Ferreira pertence à primeira linhagem de poetas. Por isso quando se lê um poema como este:
 
Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.
 
Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.
 
Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.
 
Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?
 
Quando se lê um poema como este vê-se que o seu tema é prévio ao acontecer e à experiência do poema. Reinaldo Ferreira sabe sempre do que fala, a sua luta é contra a expressão, no garimpo de encontrar as melhores palavras para designar o que quer dizer. É de comum uma poesia mais formal e com modelo.
Ora os poetas da outra vertente estão mais na esteira de René Char que dizia, pobre do poeta a quem o poema não ensinou algo. Isto é, pobre do poeta que sabe o que diz! A pulsão destes poetas é mais plástica, menos referencial, mais despersonalizada e magmática, pois não quero usar aqui a palavra livre, e dá-se nesta poesia a travessia que vai do lirismo pessoal ao lirismo da persona.
O Virgílio dos poemas que prefiro é mais desta linhagem e acredito que muitas vezes, para além do seu gosto pela música das palavras (e por uma certa crioulagem dos sons e da sintaxe), não sabia onde as palavras o conduziam.
Então o que atraía para Reinaldo?
Julgo que uma proposição de Baudelaire sobre a arte nos ajudará a pensar nisso. Dizia Baudelaire que uma obra de arte deve ter uma parte de imortalidade e outra de audácia, de intimidade com o novo. Queria ele dizer que uma obra de arte deve ser o espelho de uma herança vivificada pela novidade, ou ter o rigor formal dos melhores exemplos antigos mas ser ao mesmo tempo infiltrada pela pulsão e pela sensibilidade do presente. 
Este rigor, o mesmo rigor que na verdade Virgílio nunca almejou ou alcançou encontrou-o Virgílio em Reinaldo Ferreira. Não esqueçamos que o Virgílio é um poeta que vive menos de uma afirmação egóica que de endereços, de polaridades, permanentemente em trânsito para o outro e o convívio da pluralidade. Por isso se dedicou aos heterónimos. Ora, a minha hipótese é que o Virgílio, que teve toda a vida uma inclinação para a despersonalização, via Reinaldo como uma sombra sua, a parte escultórica da eternidade de que falava Baudelaire, enquanto a si mesmo se sentia a outra metade do novo, a heterodoxia do presente. A importância de Reinaldo para Virgílio vem do facto de que o facto daquele escrever como escrevia, com cinzel, libertava a sua escrita, deixava-lhe o campo livre para estar mais próximo de uma escrita na água, da dança. 
Brincando um pouco diria que o Virgílio, que é infinitamente mais atrevido e experimental que o Reinaldo, via neste ou o seu S. João Baptista, ou o seu Ricardo Reis.
Há um poema neste livro, dentre os que são dirigidos a Reinaldo, onde se lê: “Ninguém deseja ou pede para que/ tua poesia seja modelo. / Apenas que ela nos habite/ em trânsito/ para outros poetas (...)”, e adiante diz, o mesmo poema: “Que teus poemas/ sejam peixes/ nunca vistos/ nestas águas”. Ora precisamente, os poemas de Reinaldo foram sempre peixes vistosos mas já vistos. Quem podem ser então os peixes nunca vistos? Os da fusão entre Virgílio e Reinaldo, isto é aqueles que surgirão quando o trabalho do tempo, esse ogre desumano, trouxer o esquecimento, e, estando as duas personalidades enoveladas na bruma, os ressuscitar sobre um novo patronímico: Virgílio de Ferreira. 
O que vai dar uma confusão porque tantos e tantos vão confundir o poeta e o prosador de Para Sempre. Mas isso já são as contas de Deus, não será já motivo para a nossa inquietação. 
Duas breves notas para acabar.
Apesar de Reinaldo, nem sempre a influência deste sobre o Virgílio é positiva. Sob influência dá às vezes ao Virgílio uns arrebates de poeta metafísico que nem sempre domina porque o Virgílio é muito mais um poeta espontâneo, um lírico dos elementos, da sensualidade, que aliás se auto-define bem noutro poema deste livro, onde se lê: «Ave sempre migratória, sempre/ de passagem, / entre coisas, matérias, cores e/ transparências, sons que aparecem para logo sumir.» É este poeta da transitoriedade das coisas que em minha opinião avulta e faz de Virgílio um poeta feliz, aquele que mesmo nos seus melhores versos metafísicos nunca se esquece do corpo, como neste: «tormentos da carne na geometria da alma».
Há um verso de Reinaldo que sempre obcecou o Virgilio, ao ponto de o fazer seu: Um voo cego a nada, que aliás pertence ao poema mais “moderno”, mais solto, de Reinaldo. Mas neste poeta o verso prenunciava a angústia, era como uma vida sem rumo. Eu acho que o Virgílio sempre o leu ao contrário e que o dava como sinónimo da frase romana que Pessoa transformou num verso seu e que diz «navegar é preciso, viver não é preciso». Contra a metafísica, a angústia de Reinaldo, Virgílio contrapunha a intensidade da alegria, o prazer de voar por voar. E foi preciso o Virgílio envelhecer para vermos então escrito pelo seu punho: «Próximos é certo/ separa-nos este outro mar/ o voo cego/ a morte». É já o traço de uma luz que se despede, enrouquecido já o jazz e a marrabenta, pois como diz noutro verso «a angústia já devora mineral, o corpo».  
Por isso, numa altura de tanto melindre físico para o poeta, obstinar lançar um livro com o título de A Dimensão do Desejo* só o torna grande, e devemos agradecer-lhe. 
Virgílio, um beijo.
 
*O Virgílio, com 82 anos, fez recentemente uma operação ao coração que teve como efeito secundário um AVC que lhe paralisou metade do corpo

1 comentário:

  1. Caro António, estudei a poesia do Virgílio durante parte da minha graduação e todo o meu mestrado na UFRJ; já entrei em contato contigo, mas é possível que não se recorde... Porém isso não importa. Vim hoje expressar a importância do Virgílio durante meu amadurecimento de corpo, de poesia, pois trabalhar de peito aberto, lendo um poeta como o Virgílio, foi importante não para me encher de conceitos a respeito da vida e da poética virgilianas, mas para que o trabalho com sua poética fosse o germe que me fizesse me abrir à minha própria poesia. Agradeço a você, António, por este texto e dedicação à poesia do Virgílio, pois isso também tornou possível lermos um pouco mais desse nosso poeta moçambicano.

    Um abraço,
    Fábio Santana Pessanha

    ResponderEliminar