sábado, 14 de julho de 2018

ESPALHAI A PALAVRA!

foto de ana cristina rodero 


As minhas crónicas desta semana, a do Savana e a do Hoje Macau, que é claramente neste momento um dos melhores jornais em língua portuguesa. Se ainda não deu conta, veja aqui: https://hojemacau.com.mo/. No Savana, seguindo o exemplo de Maradona, fundei uma igreja. Claro que esta semana já se acumularam os dissidentes.

ANATOMIA DAS RELIGIÕES
Ao Maradona ia-lhe dando um treco por ver que o seu bispo Messi não deu xeque-mate no relvado. E eu, pesaroso porque lhe batia a asa resolvi ler sobre a Igreja Maradoniana, que tem meio milhão de adeptos repartidos por vários países, inclusive no Japão. E numa reportagem flagro esta passagem:  
«“Que a minha mulher não me ouça, mas eu gosto mais do Diego do que dela. É mais forte o que sinto por ele. Eu morro por ele. Calculei que a minha filha nasceria perto do Natal e decidi batizá-la primeiro na Igreja Maradoniana”.
Outro crente, Lionel Díaz, sabe tanto de Maradona que ganhou um concurso num programa de TV da ESPN no qual foi submetido a todo o tipo de perguntas sobre Maradona. A final do concurso era uma disputa contra o próprio Maradona, para ver quem sabia mais sobre a vida do ex-jogador. Lionel respondeu mais rápido que o seu próprio “Deus” - e ganhou.
O casal de namorados Fabián da Silva e Elizabeth Galvani observa todo o folclore em torno do futebol com um brilho nos olhos. No meio de tantas canções de louvor a Maradona, pouco mais podem fazer - ambos são surdos.»
Eis porque resolvi fundar a minha igreja. A Igreja do Lobo Que É Filho do Homem, de Inspiração Cabritiana.
Fui campeão nacional de pingue-pongue em todas as categorias até que tive um treinador japonês que me fez descobrir o saké e o primeiro postulado da minha religião: «se fazes algo muito bem é porque ainda não descobriste algo que farás ainda melhor!».
É o meu caso, neste momento em que me invisto como Deus.
Todos os que são humildes e mais querem sê-lo e maior felicidade não concebem do que serem finalmente um selo numa carta para Tampico, no México, têm agora o seu cenáculo de Inspiração Cabritiana, na Igreja do Lobo Que É Filho do Homem. Justifica-o a bondade dos fiéis e eu ter decidido que irei ao México buscar uma profetiza. A primeira. Nos meus templos só perorarão as mulheres. O homem entra calado, dado estudar para navio e ser apenas transporte da fé. A mulher é quem oficia e ama, o seu Deus. Vou ter cinco profetizas – uma por cada continente, doze Apóstolas e Quarenta e Nove Bispas, o número dos degraus a que são sujeitos os neófitos na sua iniciação.
Estes cargos só se ocupam por nomeação. Para Pastoras é que abro já as inscrições. Paga-se 5000 meticais de joia. E cobram-se uma geleira e uma máquina de lavar roupa pelo primeiro Aprendizado: Ajuste às Naturais Emanações de Deus, com Drink e Ar Condicionado, em vinte sessões. Só se aceitam moças com certificado do Physical, que estejam no pino da forma. Na nossa igreja não aceitamos uma fé com osteoporose – é tudo a doer.
Na nossa Igreja não mentimos e devolvemos todo o Amor aos Fiéis. É o Fiel que tem de ser Portador do Amor, o Portador da Credulidade, o Portador da Paciência. Nós, como Deus só cobramos! Se sente uma grande necessidade de servir, a maior necessidade em ser servil; se sente que precisa que tomem as decisões por si; se necessita desesperadamente de delegar as suas responsabilidades em entidades abstractas; se não vive sem ritos e se pensar lhe causa os pruridos do feijão-macaco, nós EXIGIMOS O SEU MAIOR ESMERO! Se costuma ter pesadelos quando tem a sua bexiga cheia, nós PROVIDENCIAMOS O DESPERTAR! Se desconhece o nome das árvores e das plantas que lhe atravessam quotidianamente o caminho, nós SOMOS A SUA MORADA. Se já lhes conhece o nome nós SOMOS A FELIZ MORADA DO ESQUECIMENTO.   
Na nossa igreja não existe a noção de Pecado. Gastar as palavras em vão? Somos a primeira Igreja a compreender que SE NÃO PROIBIRMOS AS COISAS ELAS DESAPARECEM POR SI.
Pelo mesmo motivo não certificamos Milagres nem apoiaremos qualquer candidato à Câmara de Maputo, e como damos a César o que era de César não lhe chamamos Dízimo: não, nós Cobramos a Fé Sem Recato Porque o Amor Custa.
Os nossos Dez Mandamentos:1. Para quê ser só pobres se também podemos ser tolos!? 2. Se vir que alguém já roubou o suficiente dê-lhe também a sua filha. 3. Ter sempre gémeos, para não descurar as estatísticas da mortalidade infantil. 4. Se vir que o seu filho quer ser um Cristiano Ronaldo compre o Real Madrid. 5. Se a sua filha estuda por gosto entregue-a à Igreja Cabritiana, nós agenciamos o seu futuro. 6. Na Igreja do Lobo Que É Filho do Homem não se aceitam ursos. 7. Toda a violência será revogada pela obrigatória redacção de Epitáfios. 8. Se encontrar um gato parecido com um guarda-chuva troque-o por uma cautela. 9. Nesta Ordem Celeste aceitam-se Adeptos mas não Discípulos.10. Em dando conta que o programa para a roupa de lã chegou ao fim desligue a máquina de lavar.
Esta igreja só reconhece outra igreja: a da Missa Paga. Perdão, Pagã.
Donativos e contributos podem ser enviados para o NIB 212121 05344 14560001, do BIM. Advirta-se que, depois do donativo, se se sentir “maltratado de miolo” este é um primeiro efeito benéfico. Dúvidas: tirem-se junto da primeira secretária, Teresa Noronha (que gosta mais de mim que do Maradona). Reunidos os primeiros 200 milhões de meticais informaremos sobre o paradeiro do Templo.    
  
cristina rodero
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OS CONTOS DO TRÂNSFUGA


Ruben Dario (1867-1916), praticamente, nasceu trânsfuga, numa Nicarágua natal que só lhe conheceu a infância, o começo da juventude e o ocaso.
Pelo meio, foi educado pelos tios, por extravio do núcleo familiar, e novo saiu da aldeia natal para visitar El Salvador; no trespasse da adolescência passa a residir no Chile – um pé em Valparaíso e outro em Santiago -, após o que assentou arraiais na Costa Rica e no Guatemala, aportou várias vezes ao Panamá, viajou até Espanha – dando então o primeiro salto a Paris; a errância fá-lo instalar-se ainda na Argentina, em Buenos Aires, (como cônsul da Colômbia), sem dispensar uma transumância permanente entre a América e a Europa, aonde igualmente visitará a Itália e Maiorca. Em 1910 desloca-se ao México, que está no umbral da grande revolução; seguir-se-á Nova Iorque, antes de regressar à Nicarágua, à sua aldeia natal, Chocoyos (hoje Ciudad Darío), morrendo aí em 1916 com apenas 49 anos, embora muito calcinados pelo vinho e o uísque que vazou a rodos.
Todo este cosmopolitismo fê-lo um partidário ferrenho da unidade centro-americano, utopia política de alguns e nunca cumprida, e a enjeitar os nacionalismos, declarando com humor: porque «ao homem, como aos cogumelos, não exige Deus a escolha de uma pátria» (frase colhida no conto Arte e Gelo, incluída na antologia que é pretexto desta prosa).
É desta criatura plectórica e vital no dealbar de um século para outro e que rompeu com o provincianismo colonial para se revelar um dos aríetes da literatura em qualquer coordenada em que tenha tomado assento, que agora se edita uma genicosa coletânea de contos, o volume Curiosidades Literárias e outros contos, com selecção, versões e notas de Rui Manuel Amaral, na colecção por si dirigida, a Colecção Avesso, para a editora Exclamação!, do Porto.
Curiosamente, muitos contos estão identificados com os locais que visitou, literalmente ou através de leituras, e temos o conto parisiense, o conto hebraico, o conto russo, o conto grego, o conto passado em Londres, a lenda mexicana, etc. Embora não haja nestes contos apenas um impulso mimético em relação aos lugares e aos diferentes estilos que evocam, antes se certifica neles, muito para lá da feição simbolista que de comum se lhe associa, o profundo ecletismo do autor. E temos narrativas de cunho simbolista, de cunho fantástico, de recorte realista, fábulas e até anedotas de amplexo mitológico. É isso que o torna uma fonte de surpresas e profusamente actual – isso e um humor subterrâneo que de vez em quando aflora:
«O asno (embora nunca tenha conhecido Kant) era especialista em filosofia, como se costuma dizer» (pág., 48);
«Orfeu saiu triste do bosque do sátiro surdo, disposto a enforcar-se no primeiro loureiro do caminho.
Não se enforcou, mas casou com Eurídice.» (pág. 52)
«Que doutor Z seja ilustre, eloquente, conquistador; que a sua voz seja ao mesmo tempo profunda e vibrante, e o seu gesto avassalador e misterioso, sobretudo depois da publicação da sua obra A arte do sonho, talvez se possa discordar ou aceitar com reservas; mas que a sua calva é única, insigne, bela, sone, lírica se preferirem, oh!, isso é indiscutível, estou certo!» (pág.93)
Darío é tão fascinantemente eclético que até antecipa Lovecraft, em O pesadelo de Honório, que, coitado, num sonho revisita todos mas todos os rostos, perfis, caretas, esgares, e máscaras que tiveram lugar numa sucessão formigante desde o princípio do mundo e que se guardarão no provável armazém que configurará o inconsciente de Deus – multidão que devém a interminável soma de singulares que aterrorizaria qualquer mortal -, ou antecipa os artifícios dos experimentalistas do OuLiPo, no conto que fecha esta antologia, Curiosidades Literárias, e que transcreve uma narrativa – deliciosamente intitulada Para Fracassar Basta Amar – que dá um bigode a Georges Perec, pois constrói-se a partir da interdição do uso não de uma vogal mas de quatro, só sendo autorizado o recurso ao a.
Para se perceber a riqueza do conjunto e como em Darío até as anedotas têm duplo sentido, citemos esta:
«No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios.
– És bela.
– Sou – disse a rosa.
– Bela e feliz – prosseguiu o diabo – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas…
– Mas?
– Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detém sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco…
A rosa – tentada como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura.
Passou o bom Deus, depois do romper da aurora.
– Pai, disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil.
– Seja minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo.
E o mundo viu então a primeira couve.»
É extraordinário esta anedota. Não somente pela sugestão de que não há funcionalidade desejável para além daquela que concerne a cada forma, mas também pela ideia herética de que cada ser, criatura, entidade, planta ou nuvem pode ter sido tentada no paraíso. O que pessoalmente, perdoe-me o leitor, acho uma ideia retumbante.
Para além dos contos referidos outros realçam, como a curta fábula Febea, na qual a pantera “domesticada” não mente a Nero sobre os seus dotes artísticos, até ao auto-irónico O último Prólogo, corrosiva diatribe contra a condescendência literária com um desfecho surpreendente, ou não, se o associarmos às contradições dalguns escritores do actual friso dos escribas portugueses que se querem “malditos”.
Reconheça-se por fim que a fluidez e eficácia destes contos devem muito à imperiosa qualidade da tradução de Rui Manuel Amaral, sem a qual esta diversidade e tensão frásica manquejariam.


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