terça-feira, 26 de maio de 2015

UTOPIAS E ENCADERNAÇÕES: O THRILLER DE PETER CUNHA


O ano passado estive vários dias na Beira, sem conseguir trabalhar por causa dos cortes ininterruptos de electricidade. Passei quatro dias em camisola de alças, agarrado ao casco de uma cerveja, sob um calor viscoso e uma humidade que apodreceria as esponjas mais renitentes... e sem electricidade. Para afastar as moscas acabei por ir esboçando uma história policial, a primeira de Peter Cunha, o detective inventado por César, de A Maldição de Ondina, um detective mulato e pós-colonial. Porquê pós-colonial? Porque já não tolera viver à custa da culpa estar sempre a cargo do colonialismo. 
Aqui fica esse primeiro rascunho de um projecto abandonado:

UTOPIAS E ENCADERNAÇÕES


I

Saio da guest house, no Estoril, e o calor desce imediatamente sobre mim com as suas manápulas de crude. Espesso e inescapável. É um manto sem um só poro, debaixo do qual os meus transpirarem para dentro. É natural, reparo uma hora depois, que o empregado do restaurante venha limpar a mesa de dez em dez minutos - até o plástico que a cobre exsuda sem perdão.
Beira City.
Nem em Nacala ou em Pemba nos sentimos pregos moles enterrados em mercúrio. Aqui, das 9h da manhã às 17h30 da tarde devia ser proibido trabalhar, fazer um gesto, olhar de viés a prateleira de um rabo, preencher um requerimento, cortar uma lula. Qualquer esforço é brutal e impele ao desejo de uma barrica nas costas. De cerveja estupidamente gelada. Algo que nos desembarace da tépida humidade que nos extenua. Bebemos como brutos e não dá efeito, seis médias, três litros de cerveja e não dá efeito, o entorpecimento do calor não deixa; em África só nos podemos embebedar à noite, e é psicológico, ou antes, neurológico, a brisa da noite associa-nos ao bem estar do sono, e aí embebedamo-nos porque começámos a sonhar. O resto é merda. Não há cerveja que nos possa embebedar nos trópicos, ou pelo menos aceder à percepção disso – o calor interpõe-se, “eleva-nos” à temperatura das tripas. Quando é tudo visceral nada funciona.
Apanho um táxi para a Baixa, são baratos na Beira. Por vergonha, acho, motivada por a cidade ser  tão comprida que quase se estende por Los Angeles adentro enquanto os ordenados que a massa trabalhadora nela óbtem são tão mínimos que o preço há dois lustres que não sobe. Ninguém pede o que gasta em gasolina mais serviço, seria impraticável, atendem ao cliente e ao fim do dia, conscientes de que trabalharam para a perda, embebedam-se no Sunlight. São os últimos socialistas em serviço. É a única explicação que tenho para que a mesma distância seja paga a um terço do preço de Maputo. Para todos é melhor, peço um recibo mais abonado e partilho ainda um pouco com o motorista. Ficou-me também uma réstia de princípios socialistas, um rodapé... desde que não haja outra maré neo-liberal, talvez resista.
O engenheiro Manhoca, ao contrário do que me tinha dito, não estava no serviço. Que tornaria o engenheiro Manhoca a pessoa ideal para ser o gestor de uma clínica que se chama Partos em Flor ninguém me disse e não ousei perguntar. Gastei duas horas à procura da intratável figura, a matutar onde é o manganão perdera a oportunidade de ser citado como “o Minhoca”, onde é que se dera o desnorte. Minudências que ocupam o forro da espera. Diga-se, em abono da verdade, que em Moçambique, nada tem o nome próprio. Em Nampula encontramos uma Livraria Central que vende motos, computadores, azulejos para casa de banho, e, fónix, máquinas chinesas para fazer a barba. Nenhum livro. E não é única, topei em Gurué com a Livraria Chaimite – nome excelso para uma livraria! – que vendia babygrows, frangos congelados, todo o tipo de aftershave, lençóis e cobertores, artefactos vários para acampamento, equipamento informático, e instrumentos para agricultura, e livros... só invisíveis. Contudo, talvez o must seja uma empresa que vemos publicitada em todos os aeroportos, Apple Car Rent, que anuncia hotéis, condomínios, bares, lojas, restaurantes, mas há muito não aluga carros. Nada é o que parece.
O mesmo gostaria de ter dito do uppercut que recebi ao dobrar da esquina para a Praça Chaimite (nesta terra tudo se repete, e não há como contrariar isso, do mesmo modo que no calor um dia parece apenas o vintém do seguinte e do seguinte and so on). Acordei no bar Thing Pink, deitado entre três cubos e dois puffs que nadavam no meio de seis mesas de plástico. Num chão de cimento vermelho. Pisquei os olhos e levei a mão ao queixo para amaciar a moinha que lá sentia. Estava sozinho, no âmago de quatro paredes pintadas de laranja e verde. Na mesa mais próxima havia um copo de água e um comprimido. Ergui-me a custo, vociferando contra o chão duro e tomei-os sem hesitar. Depois arrependi-me imediatamente com a estupidez do que havia feito, sabia lá que comprimido era aquele, mas estava ainda meio grogue. Foi então que ela chegou.
Bonita como uma gazela em corrida. Tinha uma estrela cadente presa a uma boquilha. Exibia o ar de quem não deve nada a ninguém mas se sente ligeiramente em falta por isso. Foi o que eu aproveitei:
Num chão de cimento? – censurei.
Era o chão que tínhamos.
Bom, e não havia uma esteira?
Pedimos, ninguém nos deu...
O mundo está a ficar cão...
As sílabas sairam-lhe ao ritmo com que o indicador fazia cair a cinza do cigarro:
Não é?
Levantei-me. Tinha a gravata numa rodilha:
Disseram-me que era de seda.
Nem tudo são tempos... – respondeu-me, misteriosamente.
Como vim aqui parar?
Estava desmaiado no chão à frente da Nacional e trouxemo-lo.
E porque não me pegou a gente da Nacional?
Está fechado.
E é o quê?
Uma cervejaria, a maior da zona, com uma boa esplanada...
Está fechada ao meio-dia?
É a Beira...
É a Beira-túmulo?
Antes de ter um filho quis pensar assim, agora não admito isso...
Ah, tem filho! E tem nome?
Pitágoras...
Como?
Quero que seja inteligente, logo no nome. O nome é trinta por cento, aqui...
Mas porquê um nome grego? Trazes-me uma Laurentina preta?
A resposta dela cilindrou-me:
É tão bárbara a sociedade oral que devora o nome dos seus filhos... Quanto à cerveja, estamos fechados...
Falas bem... e não tens sotaque...
Fui adoptada por brancos... até que fugi.
Foge-se sempre dos brancos, não é?
Também eu fugira dos meus brancos, mas não lhe disse. O queixo contraiu-se-me, dorido:
Quem me bateu, perguntei.
Talvez uma betoneira... estavas maltratado. Nunca mais acordavas, tenho de ir buscar o meu filho à creche...
O que é que se passa aqui?
Estamos a redecorar... para reabrir em breve. – Deixou cair a beata que pisou com a biqueira do sapato alto, enquanto lhe saía, sem afectação - Mas foi sempre uma espelunca e voltará a ser... Onde te deixo?
Hotel Savoy.
Vejo que gostas de dormir em antiguidades.

Não sei porque lhe menti, se estou no Estoril. Ainda por cima, o hotel está fechado para obras e ela deve sabê-lo. Ao jantar, se o houvesse, teria de desfazer o engano com elegância. Ela deu-me o número de telefone mas não foi afirmativa quanto ao meu convite:
Ligue, que então veremos... – Atirou, antes de eu fechar a porta do carro.
Pende grelhado. Sempre que venho para Sofala mato saudades. Um saboroso peixe de rio que me traz memórias dos salmonetes que comia na infância, em Setúbal. Pena o calor.
Ao balcão, uma empregada não deixa de olhar para o meu cabelo escorreito, liso, que não preciso de desfrizar, herança do meu avô indiano. Há mulatos mais infelizes. Elas sentem-se maltratadas por Deus com aquela carapinha, que nem as extensões ajeitam. Ou olharia a nódoa negra no queixo, o seu ligeiro inchaço que me dói quando mastigo? Faria menção disso quando me apresentasse ao Manhoca – uma travagem brusca do táxi? Que se foda sua excelência!
Era absolutamente desproporcional a quantidade de batatas cozidas. Primeiro perguntaram se queria com batatas fritas. Peixe grelhado, perguntei eu, mas não passava de uma pergunta de retórica, aqui os hábitos estão no tecto. Pedi cozida, e teve de vir num prato à parte, o peixe grelhado num e a batata e o feijão frade noutro. Se fosse arroz, com o que sobrasse daria para fazer uma barricada.
O paradeiro do Manhoca continuava a ser desconhecido, e não atendeu a duas chamadas da secretária, feia como o joelho dum comundongo. Deixei o meu cartão e pedi que ele retornasse, com urgência.
O senhor é detective privado? – perguntou espantada a pacóvia – Isso há em Moçambique?
Tão certo como eu me chamar Leonardo.
“Sweet”, tem um apelido bonito. – E acrescentou algo que me deixou piurça – E a sua actividade é legal ou ilegal?
450003245, é o meu número de Nuit. Se precisar de algum serviço...
Cá fora, o sol continuava a roer qualquer princípio de esperança. Tinha a camisa colada às costas. Tomei um táxi para o Estoril, um duche e três horas de sono haviam de recompôr-me. E precisava de pensar de onde viera aquele uppercut fantasma.

Ela acedeu a jantar comigo. Levei-a ao Tropicana, que tem uma bela esplanada sobre o mar, um menu variado e os preços duma viagem à luz. Queria impressioná-la. Não se impressionou. Enfiou um cigarro na boquilha, e martelou:
Ou és o filho do dono do Savoy, ou não sabes mentir.
Não tive saída:
Foi infantil, desculpa, estou numa hospedaria no Estoril... foi uma sequência de golpes rápidos, o murro, aquele comprimido, a tua presença... desatei a dizer coisas sem pensar... E como é que tu fumas bouquilha?
Fica-me mal?
Não, fica-te lindamente... fica a matar com o teu perfil etíope...
Como te disse fui adoptada por portugueses. Sairam daqui em 85 e eu fui com eles. Eles não tiveram uma boa adaptação à vida portuguesa e mandaram-me durante um ano para casa de uma mulher deputada e escritora que era amiga deles, a Natália Correia. Ela deu-me pouca atenção, andava demasiado ocupada, mas o secretário dela, o Dórdio Guimarães foi quem cuidou de mim, me corrigia o português e me pôs a ler, porque a senhora tinha muitos milhares de livros em casa... Foi um período feliz da minha vida... Ela fumava boquilha...
E não ficaste por Portugal?
Quando eu estava no terceiro ano de Direito ofereceram-me umas férias a Moçambique, para visitar a família. Nessas férias conheci um italiano e apaixonei-me. Ele levou-me com ele para Milão, mas quando lá cheguei não era o que eu pensava, ele tinha-me recrutado para o putedo.
Como?
Prostituta. Como fiquei grávida, levei dois anos para conseguir fugir àquela rede. E como em todo esse período tinha mentido aos meus pais e dito que vivia no melhor dos mundos, não tive coragem de voltar...
Ela falava metendo cadenciadamente o garfo com o arroz de marisco na boca, mas moia a comida sem a dicção se alterar, articulada, claríssima. Perguntei-lhe:
E eles, com o bebé, não quiseram ir visitar-te?    
Por sorte, uma sorte macaca neste caso, a minha mãe teve um longo combate contra um cancro de mama nessa altura e eu arranjei todos os artifícios para não os visitar, mas falávamos todos os dias ao telefone...
Eles não tinham outros filhos?
Ela não podia. Por isso me adoptaram... Desde os dois anos. E três meses depois de cá chegar, na véspera de cá virem visitar-me, eles morreram num estúpido acidente de viação... eu acabei por receber o suficiente para comprar uma casa e montar um pequeno negócio... e eles nunca viram o neto, coisa de que nunca me perdoarei...- fez um sorriso forçado e vincou as covinhas que lhe davam metade da graça.
Já tinha ouvido falar dessa... dos italianos. Parece que foi uma razia.
Eles são gentis, charmosos, têm aquela língua semi-cantada... misturam-se bem. Mas o esquema não lhes sai do sangue, vem da Camorra... Bom, foi menos mau, adquiri outra língua, o custo foi pesado mas já lá vai. E o meu amigo do Savoy?
Detective Particular... – tirei um cartão do bolso da camisa e passei-lho.
Uau! – leu – Leonardo “Sweet”, investigações honradas.
Essa copiei-a dum português, Detective Correia, investigações honradas...
E que quer dizer investigações honradas?
No meu caso, que não aceito casos de adultério... imagina, neste país em que qualquer bruto tem duas, três mulheres, eu pôr-me a investigar casos de adultério... e não alinho em arranjar provas para um divórcio litigioso... não quero ganhar dinheiro com domínios morais, eu não me meto na vida das pessoas, se ela quer encornar o marido é um direito dela...
Então que tipo de casos te aparecem?
Neste país, onde tudo é semilegal e existem buracos legislativos enormes tudo pode acontecer e necessitar de ser elucidado...
Que caso te traz aqui?
Talvez não fosse prudente abrir o jogo, mas o abre-latas da história dela escancarara-me o coração com. Resolvi confiar:
A filha de um graúdo deste país foi a uma festa de teenagers, foi drogada e acordou no dia seguinte num hotel. Estava sentada numa banheira de água gelada, apinhada de pedras de gelo e fiapos de sangue. E ao querer mexer-se teve uma dor e viu que tinha uma ferida feia nas costas. Tinham-lhe levado um rim. Agora estou no rasto desse rim. – resolvi baralhar o baralho – Bom, mas esse cartão é falso, esse é o cartão que dou aos maus... o verdadeiro é este... – e passei-lhe outro.
Bom... – gracejou ela -  Peter Cunha/ Detective Privado, não é pior.
Nem pior, nem melhor, é o meu nome verdadeiro. E esses contactos são correctos.
E como sei que não tem um terceiro?
Não tem, aquele – apontei o primeiro cartão, jogando a cartada final, visto que ela gostava de ler – é o meu único heterónimo. E o murro, em tua opinião, tem alguma explicação?
Esquece. É um louco que há naquela esquina, um desmobilizado, que bate em todos os brancos que pode.
Eu sou mulato.
Para eles não.
Bom, olhando para ti, concluo que estou em dívida com o meu nocaute.


II

Puz as certidões de óbito à frente do gigante Manhoca e perguntei:
De si, só queria saber como é que estas certidões de óbitos, de pessoas que ainda estão vivas, têm o carimbo da sua clínica?
Os óculos escuros iam-lhe caindo, do nariz à latitude das bermudas. Até aí ele procurara disfarçar a babalaza com que chegara ao serviço nessa manhã, os olhos macerados e avermelhados, os zigomas cinzentos, o cansaço com que se lhe moviam as beiçolas, mas aí os óculos desceram-lhe até ele ter de os segurar na ponta do nariz. Aproveitei para sossegá-lo:
O agente Manjate da PIC é meu amigo e passou-me cópia destes documentos que foram confiscados quando o camião com as crianças foi apanhado na fronteira de Ressano Garcia, na semana passada, mas isso é um assunto da polícia, eu não tenho nada a ver com esse assunto... eu vim oferecer-lhe três ou quatro dias de fuga em troca de informações sobre o tráfico de orgãos.
O homem embatucou, desceu-lhe a negrura para os tornozelos, onde ficou, azul, a boiar como umas peúgas largas, enquanto ao semblante aflorava um cinza claro, de empalidecimento.         
Espremer aquela bizarma foi mais fácil do que tirar as moscas da espuma da cerveja preta, porque esta é terra onde as moscas voejam dentro do copo. Infelizmente sabia pouco. Mas o passo seguinte, obrigatoriamente, levava-me a Nampula, onde, segundo ele, estariam alguns cabecilhas do negócio.

Inês? Peter. Sempre nos encontramos logo?
Não posso, desculpa. O meu filho chegou com febre da escola e não posso deixá-lo sozinho.
Mas não tens uma ama, uma amiga que possa ficar com ele?
Deixar sozinho o meu filho doente, por causa de um homem que conheci ontem?
Marcava pontos. Tinha razão. Nem dava para balbuciar qualquer argumento:
Ok, falamos então amanhã. As melhoras do miúdo.
Fechei o telefone com a impressão de um leve dissabor. A noite tórrida do dia anterior pusera-me a planar, mas a um elemento sucede-se sempre outro. Tinha de ir descarregar a energia que ficara entre os elementos. Rumei ao Miramar, na marginal, território de engate e partilha, da esplanada, ampla, às diversas salas de jantar.  Cansa um pouco a música de discoteca e os plasmas, sintonizados no pornográfico Wild, mas a comida é bem confeccionada e a um preço decente. E as miúdas chegam aos cachos, dispostas a tudo, por preços merdosamente decentes.
Engraçei com uma das empregadas de mesa, que me parecia uma espécie de Cassandra relaxada. Chamei-a:
Como te chamas?
Sónia.
E quantos anos tens?
Dezanove.
Tinha um rosto jovial mas o rosto desgastado – dar-lhe-ia vinte e oito.
E tens um filho, tens barriguinha de ter tido um filho...
Tenho dois.
Dois? Com quantos anos tiveste o primeiro?
Doze.
Fiquei seco. Só me ocorreu perguntar-lhe:
E quantos anos tem o segundo?
Catorze.
Só podes estar a brincar... se a tua primeira sorte tem sete...
Então tem treze... - tentou ela.
Decidi não esmiuçar mais a concepção que ela tinha do tempo e da sua cronologia pois já em outras ocasiões me vira em assados.
Diz-me lá, que idade tinha o rapaz que te fez o primeiro filho?
Dezassete.
Estás com ele?
Não.
Mas estás com o segundo?
Não.
E que idade tinha esse?
Vinte e cinco.
E agora?
Vivo com o meu irmão.
E estudas?
Não. Só trabalho aqui...
Chegaste a que classe?
Oitava.
Portanto, sabes assinar o teu nome... – escarneci.
E assino o nome dos meus filhos, regozijou-se.
Enterrei ali a minha pretensão de lhe explicar o que era um orgasmo feminino. Fiquei a pensar num país à nora, devoluto, zerado de um mínimo de capacidades e orientações, com os serviços maioritariamente ocupados por gente que não é capaz de discernir o que seja o tempo, as suas medidas e cronologias - mas onde se fode a granel.
Assim que passou uma música não electrónica, pus-me a dançar com o tronco e os braços, enquanto fazia momices para uma mesa com duas miúdas. Acharam graça, rapidamente ocupavam a minha mesa e entabulámos a conversa possível. A mais gira e espontânea tinha vinte e cinco e a outra dezanove. Comemos umas ameijoâs e fui-me emparelhando com a mais velha, de uma certa pica gaiteira a que achava piada. Estávamos para sair e passar aos finalmentes quando ela recebeu uma chamada. O rosto cerrou-se-lhe. Proferiu alguns monossílabos antes de fechar o telemóvel. E disparou:
Tenho de ir para a Manga, o meu filho está muito mal. Mas ficas com a minha amiga, ela é de confiança e é muito doce...
Que fazer? As miúdas mais giras da esplanada já estavam ocupadas. E, why not? Eu só queria descarregar a energia acumulada na noite anterior.

Tomámos um duche juntos, e fui-na acariciando enquanto ela soltava guichinhos.
Pássamos à cama. Meti-lhe a mão na rata, à procura do clitóris. Estava pelada e parecia que no exercício de depilação teria decapitado o clitóris. Tinha a lisura de um selo. Os olhos dela estavam encharcados de malícia mas fechava as pernas sobre as minhas mãos, e grunhia, ai, ai, ai...não me mexas no rabo... Como, perguntei, enquanto lhe metia um dedo mais fundo na cona.  Não me mexas no rabo, pedia ela.
Pareceu-me excessivo pagar um estipêndio sobre tão profundo analfabetismo sexual. Um mínimo de reciprocidade sexual não pode surgir de tanta ignorância, ainda que eu pudesse aproveitar para sodomizá-la garantindo que praticávamos um coito vaginal há uma réstia de dignidade que temos de manter, mesmo nas relações venais. Dei-lhe dinheiro para o táxi, mais duzentos e cinquenta meticais pelo tempo perdido e mandei-a embora.  
E a seguir masturbei-me, pensando na noite anterior.



III

Foi infame, porque houve cúmplice de dentro, e fiquei com o corpo bastante inflamado depois de me terem carregado, amordaçado, para o caminho de buganvílias que leva da guest house à estrada e de a meio me terem atirado contra os três cactos que aí arrepiam mais de dois metros de altura. Duas vezes. E dobraram-me, amarrando-me ao pé da planta, num nó apertado que me espetava no peito para cima de seis picos. Acabei por desmaiar.
A esponja suave que me humedecia o tronco, entre as ligaduras, acordou-me quando o seu travo fresco me chegou ao pescoço. Tenho há muito a superstição de que morrerei em torno duma ferida que envolva o pescoço, ou talvez dum estrangulamento, de algo que mo abra ou parta, e sou extremamente sensível nessa parte do corpo. A cada macaco as suas manias.
Dessa vez o perigo tinha a macieza do mel. Era Inês, que fez beicinho, antes de protestar, teatral:
Fui promovida a ama-seca dum bebé chorão...
Com uma Eva destas, é natural que se repita a queda...
Não é preciso teres sempre a resposta pronta, este não é um romance do Chandler...Dói-te?
Arde.
Tiveste sorte. (O nome em latim): os picos são venenosos, mas não nesta época.
Como sabes?
Wikipédia.
Que horror, o saber já não nos vem das árvores, dos rios, do chão...
Modera-te, o país precisa de quadros, chega de campónios...
Foi uma delícia aquela hora de visita, embora aquela merda me incomodasse bastante. Vinte e quatro furos em todo o corpo, três com mais de um centímetro de comprimento. Fora um aviso. De quem? Isto só significava que o meu cliente tinha um infiltrado no escritório e que um dos recepcionistas fora comprado. Eu também seria, se ganhasse o que eles ganham, mas, foda-se, teria escolhido o hóspede mais asqueroso.
Tive direito a mais dois dias de visitas paradisíacas. Soube entretanto que o Manhoca se pusera ao fresco. E resolvi não avisar de imediato o meu cliente de que tinha uma jibóia no seu círculo mais próximo.
O grande benefício do meu maltrato foi ter passado a última noite da Beira na casa dela – posta a criança, prudentemente, a dormir na casa de uma amiga. Gosto de crianças, mas não é preciso abusar.
As minhas chagas de Cristo não me impediram uma execução quase exemplar. Acho, que nem sempre é o que elas acham.  
Bom, mas apanhei o avião certo de que uma coisa nos unia: o sentimento de que ambos havíamos chegado demasiado tarde para nos acomodarmos com a auto-condescendência africana, contaminados pelo fodido fermento crítico europeu. Sempre era uma âncora, numa terra onde me sentia entre. Éramos os dois perigosamente pós-coloniais, no sentido em que nenhum de nós queria fingir que ainda vivia à mama de colocar as culpas no outro, no eterno colonialismo.


Sem comentários:

Enviar um comentário