segunda-feira, 27 de abril de 2015

ZAMAGNA E OS RAIOS DE SEU JUCA



Tudo devia ser mais rápido na vida. Tudo. Se um feto ultrapassa o tempo ideal (os três meses) para ser extirpado por um aborto devia forçar o seu nascimento de imediato, ressurrecto dir-se-ia.
Para quê suportar o trauma de nascer apenas nove meses depois da gestação, com a sensação de que o nosso restaurante favorito fechou para obras?
Talvez por isso, numa postura simétrica, de combate, me tenha negado nove meses a falar – do quê, se eu próprio me traía à primeira oportunidade – mas à posterior concedo que afinal não foi consolo.
O problema é que sou claudicante, um verdadeiro Tônio-Toco-A-Conta-Gota, que até da hipótese do plural se cansa.
Isto para explicar que recebi um livro maravilhoso e de que quero falar há dois meses e que tenho andado para aqui mula, sem saber como lhe pegar, quando afinal é só agarrá-lo pela crina e deixar que ele nos marque o trote.
O livro é this one, autor,

SEU JUCA SEM FIO

título:

ELES ANDARÃO... EU ANDORINHA!»

O título como explica no excelente prefácio Marcantonio Costa parte do trocadilho que montava dois versos do famoso “Poeminha do Contra” de Mário Quintana, onde se lê:

«Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho
Eles passarão...
Eu passarinho.»

Este poema conheceu a sua variação paródica em Evandro Sousa Gomes, que grafou:

«Todos aqueles que por aí vão
No caminho jogando pedrinha
Eles andarão... Eu andorinha!»

Terceto que serve de epígrafe ao livro de Seu Juca Sem Fio e que justifica o título.
Quem é afinal este simpático anónimo sem fios com nome de alcunha?

Um poeta-andarilho, eterno vagabundo que só tem de seu os vaga-lumes do caminho e que até de ser “guardador de rebanhos” abdicou, pois como explica num haiku, «TODA ESTRADA FINDA/ ANTES DO FIM, SE PERGUNTAS/ AONDE TE LEVA»..
Este poeta-andarilho é um seriíssimo companheiro de travesseiro (que não de sonhos, aí cada um tem os seus) do humorista, poeta e ilustrador Tuca Zagmana.
Tão sério que já não sei qual é a fonte e qual o encanado, entre Tuca e Juca, sendo apenas certo que ambos gostam de andar pelados, como duas torneiras em flor, cientes de que «ÁGUAS PASSADAS NÃO PERDEM O VINCO». 
Seu Juca é um trânsfuga, da natureza que ele mesmo retrata noutro haiku: «EU SOU ESSE MENDIGO/ QUE VAI PASSANDO POR MIM/ SEM PEDIR ESMOLA.»

Tuca – que toda a vida foi um polinizador de mitos e um sabotador de paisagens de licra, inventou “gente” e mil pronunciamentos impossíveis (sem saber li-o centenas de vezes na MAD brasileira), num fermento que não cessa e que hoje se pode apalpar, trincar, saborear e interpelar (já que ele é também um generoso aglutinador de afectos) no seu blogue Desinformação Selectiva (tucazamagna.blogspot.com) – resolveu aos sessentinhas (ele que como eu parece ter trintinhas) começar a publicar a sua obra literária.
Numa douda e delirante entrevista em 2012 (http://roxo violeta.blogspot.com/2011/12/os-humoristas-sao-as-pessoas-mais.html ), explicou-se o autor:

«Minha cabeça é uma verdadeira cabeça-de-porco, com mais de 30 pessoas amontoadas dentro. São elas – além do blogueiro Tuca Zamagna, do jornalista, cronista e humorista Antonio Claudio Zamagna, do humorista Tutuca, do ceramista Tuca Z. e do roterista televisivo Zamagna, o compositor e letrista Aranha, o humorista e cronista Pedro Brás, o sexólogo Dr. Eustáquio Pinça, ex-editor da revista erótica Eros, cuja equipe era formada por mais cinco pessoas, entre elas os gêmeos El Zamagna (roteirista de pornofotonovelas) e Elza Magna (astróloga responsável pelo Eróscopo – e hoje minha parceira de blog),
Há também o arquivista e etimólogo BUARQUE, Vando (autor da coluna Aquivocabuloso); a redatora de necrológios Carola de Athaúde, o cronista social Paulo Peroba Grande, que assinava a coluna Perobão, na revista Mad; o crítico musical e saxofonista de rock-melequeira Lambrecão; o fabulista portugárabe Falabu Bulafa Lafabu, autor do livro “!ALBUFAS SAFUBLA! – Fabulas Bufalas”; o canalha do bem Teophanio Lambroso, vulgo Teopha... e mais uma 14 ou 15 figuras, inclusive Anga Maz, que assinou os meus primeiros textos publicados, aos 16 anos, e há dois anos virou a minha parceira de blog Anga Mazle, deixando de ser anagrama de Zamagna para ser anagrama de Elza Magna e  El Zamagna.
Já ia me esquecendo do Caio Julius Caesar, o Cesinha, um vira-lata poeta (e não um poeta vira-lata, como eu), autor do livro “Poemas de um cão sem dono”.»

Agora, peço ao leitor que esqueça todas estas facetas referidas, este caudal de humor sôfrego e melancólico e que mata em surdina, que esqueça o ecletismo e as suspeitas que sempre provoca, e encomende este livro,
dado que é absolutamente um marco na actual poesia brasileira.
Seu Juca é o anti-brega, e tem neles fundidos o cinzelar rigoroso de Melo Neto e a veia aforística do argentino Antônio Porchia, o famoso autor de “Voces”.
Há poetas que têm cisma, poetas que têm cisco, e poetas que vêem coriscos – Seu Juca reune os três, e daí que o livro explore três veios, o haiku, o poema livre (reticentemente lírico), e os aforismos.
Deve dizer que em língua portuguesa neste momento só conheço um cultor de haicais à altura de seu Juca, Jorge Sousa Braga, pois estes são lapidares e inolvidáveis. Vamos a exemplos:

«SOMBRA

Sou de entrar em ostra
pra pedir em casamento
a sombra da pérola.

CARROÇA

Basta o carroceiro
desatrelar os cavalos
pra carroça voar.

ESTRELAS

Nada sei da noite
senão o nome de estrelas
que já se apagaram

CONSELHOS

Não ando até o mar
para admirá-lo ou me banhar,
só pra ouvir conselhos.

NÃO

Mundo, insano pasto;
passa boi, passa boiada,
só não passa a fome.

AVE!

Ave, matemática!
de uma andorinha se fazem
quantas avestruzes?

CAVALO

Eu tive um cavalo
que só pastava a contento
se montado em mim.»

Cada um inventa o Alberto Caeiro que pode, se para tal tiver dentes, uma espécie de reserva moral, a partir do qual um espírito pode corrigir a vida e soltar os seus afluentes.
E gratos devemos nós ficar, pois SEU JUCA SEM FIOS não oferece uma gordurinha, um lugar-comum, é um tratado de contenção e de (sobreleve-se o paradoxo) desprendimento.
Como diz Marcantonio «na poesia de seu Juca as palavras não enlouquecem (...), não dançam como bacantes nem deliram ou desmaiam (...) O ritmo é evidente (...) O poeta está no comando da condução, não como um pastor árcade, mas um andarilho que se observa enquanto anda, compondo um diário afectivo suas andanças em imagens».
Não há descuidos, antes uma tensão oficinal esmeradíssima como em Melo Neto,embora ao mesmo tempo no verso/texto resplenda a grande liberdade que advém da sageza e daí referir-me a Porchia, nestes artefactos poéticos que armam uma espécie de anti-poética, como Nicanor Parra a trilhou (- seu Juca repudiaria tanta biblioteca, mas como eu ainda tenho fios...).
Junte-se a este caldo o Cioran, mas desta vez no humor buñueliano que o autor aprecia e teremos o tom dos aforismos, dos quais só posso transcrever alguns dos mais curtos:

«Durante o coito, o pênis é um órgão que pertence aos dois amantes.

A palavra escrita é a palavra falada vestida de um silêncio justo e decotado.

Tenho sido religioso muitas vezes na vida. Mas só quando bebo mal. (Certa vez, durante um porre atravessado, me vi entre Deus e o Diabo – os três tentando fazer um quatro e se estabacando de cara no limbo infecto de um banheiro de boteco).

O pior cego é aquele que não lê as entrelinhas em braille.

Certas pessoas só encontram a pessoa certa quando escolhem errado.

Pensar é como montar certinho todas as peças de um quebra-cabeças. Pensar bem é montar da melhor forma possível um quebra-cabeças no qual faltam peças.

A moda, felizmente, é como a passadeira e a uva desidratada: passa.

Os olhos são capazes de fazer tudo o que a boca faz, menos ficar em silêncio.

O que eu mais quero na vida? Ficar invisível. (Por enquanto, o mais próximo disso a que cheguei foi me esconder dentro de mim).

Quatro coisas íntimas que sei slobre os bichos: 1)  a bôta bota chifres no boto com seus botões; 2) tamanduá t’amando a tamanduá, 3) se rola rolo amoroso, o tatubola desenrola a rola, 4) o reto da galinha é oval.

Se alguém te chama de animal não retruques. Que sentido tem discutir com um vegetal ou mineral?

A poesia é meu deus. O diabo são as palavras. »

São cento e trinta páginas de uma factura que nunca relaxa ou desmerece e coerente do princípio ao fim, o que mostra bem como Seu Juca Sem Fio é um heterónimo de mão cheia, nascido de um espírito dispersivo e neo-dada.
O livro encontra-se à venda na net. No próprio site do Tuca. Não deixe de comprar que o fruto da venda servirá para o Tuca Zamagna, o ortónimo, poder editar os seus “Contos de Réis”, tarefa urgentíssima.
Não falte à chamada... e senhores editores (portugueses), menos distracção, por favor.   
    




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