domingo, 26 de abril de 2015

KENNETH WHITE, UM POETA ANDARILHO, EM HONG-KONG


Traduções minhas de um poeta, que me fascinou desde a leitura de A Estrada Azul, e de quem fui coleccionando livros no sonho de um dia lhe traduzir poemas, até que finalmente me atrevi 


CENAS DO MUNDO FLUTUANTE
                                             para o Paulo José Miranda, que conhece este mundo

1
Fiapos de bruma, brancos e pegajosos, retocam a baía
e um velho junco acomoda-se
pesadamente ao seu caminho –
dava tudo para não perturbar esta mansidão…
mas já o dia alça consigo as gruas giratórias,
as pessoas apressam-se e tossem, os motores
e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones
- Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas


2
Espreite-se agora o mercado do peixe:
como cintila o sol vermelho
nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias,
tubarões, barracudas e serpentes do mar,
enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso
que pescadores exaustos até ao osso acendem
para agradecer a bondade da Rainha dos Céus
e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes


3
Tilinta um vozear cantonês
sobre um amontoado de faces amarelas
(lado Hong-Kong e lado Kowloon),
o ferry-boat aberto aos ventos
atravessa o verde estreito
por entre juncos, chalupas e wallas-wallas:
jornais impressos em vermelho e negro
e expostos às lufadas do mar da China


4
Uma secretária privada
(«privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho),
de vinte anos, bonita como um óleo (sem o brilho plástico dos posters),
com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês
e um apartamento só dela em Happy Valley,
amante de um próspero médico local,
e que sonha vir a ser estudante no Hawaii
- ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta,
no ferry-boat da manhã


5
O vetusto e encardido pedinte mongol
desce do seu poleiro
nas colinas de Kowloon,
levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo,
e, rindo sozinho,
calca o passeio com os seus pés nus
deixando atrás de si um rastro de vazio,
uma larga onda de riso e de vazio
que reflui até à Montanha Fria


6
No refrigerado escritório de um arranha-céus
acaba de chegar a uma linha de inventário
um milhar de caixotes com abalones mexicanos
e uma tonelada de coelhos chineses
é expedida noutra – enquanto nas ruelas
reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong
por entre um estrelejar de frituras, o fedor
dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos


7
No seu encavalitado gabinete em Mody Street
“Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês)
atende a sua próxima fornada de clientes
e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas
 – «sou um topa-tudo» -
e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério
nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso
onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua
todos os cinco minutos


8
Espreguiçado à sua vontade,
coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon,
Ken Cameron, vagabundo
abre o South China Morning Post
e lê o discurso que um general inglês
proferiu num jantar do Rottary Club
- passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas
de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura


9
Com dois novos scripts sob o braço:
«Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau»
(sucesso comercial garantido a 100%),
Brooklin Joe, bigode mate e fato branco,
sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde
enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas,
insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas
(«somos gente de Hong-Kong, nada de política…»)


10
Eis Scott Hawkins, escritor
muito rodado em toda a Ásia,
sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui,
uma garrafa de uísque ao alcance da mão
e um caderno novo aberto sobre a mesa –
na primeira linha lemos:
«o Rosto do vento do este»
e abaixo desta: «um romance impossível».


11
Ao cair da noite, as ruas são estriadas
pelos reclames em néon, negro
bailado de ideogramas: uma loura holandesa,
numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios
aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo
para marinheiros ianques empanturrados de cerveja;
enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico
se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem  de Hong-Kong


12
Um cinema em Kowloon:
no átrio, laranjas descascadas às carradas,
castanhas que fumegam ao ritmo do abanador;
um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango –
na imensa sala
o vizinho fuma como um danado e cospe no chão
enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra
e as heroínas gemem no écran gigante



13
No seu apartamento, num décimo andar
dos arrabaldes -
esteiras atapetam o chão, à japonesa,
mas num canto vê-se um pi-pa chinês -
Christopher Cheung
(«não sou um artista, eu sou um ser humano»)
serve-se de um copo de maotai
e sonha com Kyoto


14
No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho:
Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário,
gala sem esperanças
a baixa empregada de saia fendida
ou segue às vezes uma mulher no passeio
colando os olhos à linha dos slips sob as calças,
depois regressa ao seu quarto, inconsolável
com o seu magazine ilustrado


15
Lá em cima em Aberdeen
um rato lambareiro esgueira-se para o buraco
sob as pranchas de um restaurante do cais
os últimos jogadores bocejam e cospem,
num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes,
enquanto dois juncos maciços, a popa alta,
lavram as águas sombrias da noite
farejando a rota dos antigos lugares de pesca. 














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