sábado, 18 de abril de 2015

O ÉTER NO EXPRESSO E MARICHIKO, O HETERÓNIMO FEMININO DE KENNETH REXROTH


Uma muito simpática crítica de José Mário Silva sobre o Éter, saída hoje no Expresso.



Em 1978, depois de ter traduzido duas antologias de poesia chinesa e outras duas de poesia japonesa, que se tornaram clássicos, o poeta americano Kenneth Rexroth apresentou uma nova poeta japonesa, desta vez contemporânea, MARICHIKO, e os seus poemas de amor. O livro teve um enorme êxito e só uns anos depois é que se colocou em causa a identidade da poeta, que, na verdade se tratava de um heterónimo do poeta. Aqui deixamos algumas versões desses tão breves mas tão electrizantes poemas de amor:

I
Sento-me à escrivaninha.
Que mais te dizer?
Doente de amor,
só convalesço se te vejo em carne e osso.
Nada mais há a escrever, apenas,
“Amo-te. Amo-te. Como te amo!”
O amor corta o meu coração
e rasga as minhas entranhas.
Espasmos de saudade sufocam-
-me, imparáveis.


II
Pensasse eu que me poderia escapar
e ir ao teu encontro,
dez mil milhas seriam menos que uma milha,
mas estamos ambos na mesma cidade
e não me atrevo a ver-te -
uma milha é mais comprida que um trilião de milhas.


IV
Perguntas-me em que pensava
antes de sermos amantes.
A resposta é fácil.
Antes de conhecer-te
não tinha nada em que pensar.


V
O imenso outono recobre o mundo
com brocado chinês, antigo.
Os grilos, que apregoam “remendamos roupa velha!”,
são mais frugais do que eu.


VI
Só nós.
No nosso pequeno abrigo.
Longe de todos,
longe do mundo.
Só o som da água rolava sobre a pedra.
E então digo-te:
“Escuta: o vento passa entre as árvores”.


IX
Acordas-me,
afastas as minhas coxas e beijas-me.
Dou-te o orvalho
da primeira manhã do mundo.


x
A geada cobre os juncos do pantâno.
Uma chuva miudinha sopra através deles
e faz fremir as lanceoladas folhas.
Pulsa o meu coração inteiro, de felicidade.


XVIII
Atiçam-se
fogueiras no meu coração.
Fumo nem vê-lo.
Ninguém se dá conta.


XXII
Grito quando me mordes
os mamilos, e o orgasmo
atravessa o meu corpo, como se
tivesse sido cortado em dois.
 

XXV
A tua língua contorna e desliza
dentro de mim.
E torno-me surda e resplandeço
com uma luz instável
como o interior
de uma expansiva
e dilatada pérola.


XXVII
Saía da casa de banho,
agarraste-me diante do espelho grande
e enrolámo-nos no divã,
rapidamente os meus seios baloiçavam
nas tuas mãos e as minhas nádegas
estremeciam contra o teu corpo.


XXXII
Sustenho a tua cabeça apertada entre
as minhas coxas, e pressiono
contra a tua boca - flutuo à deriva
para sempre, numa barca
de orquídeas que sobe o Rio do Céu.


XXXVII
É só o vento
roçagante na erva de bambu?
Ou és tu que vens?
Ao menor estalido
o meu coração saltita num latido.
Tentando suprimir o meu tormento
dormito um pouco
mas só consigo espertar-me mais.



XXXVIII
Esperei toda a noite.
À meia-noite quem me tocasse
pegaria fogo.
Ao amanhecer, no anelo
de sonhar uma réstia de ti,
enfiei a cabeça cansada
nos meus braços cruzados,
mas o pipilar dos pássaros
que despertavam atormentou-me.


XLII
Quantas vidas faz
que nadei pela primeira vez na torrente do amor,
para descobrir ao fim
que a margem é inalcançável.
E no entanto sei
que seguirei nadando e nadando.

XLIV 
Se o meu cabelo está uma rodilha
é devido à minha insónia e ao travesseiro solitário.
Os meus olhos encovados e o meu rosto desfigurado
é culpa tua.

L
No parque um corvo desperta
e lastima-se sob a lua cheia.
E eu acordo e choro
pelos anos que se foram.


LI
Fizeste-me tua porque me amavas?
Fizeste-me tua sem me teres amado?
Ou somente me fizeste tua
para meter à prova o meu coração?



LX
Com arrepios, levanto-me
ao primeiro fogacho de luz. Do lado de fora da janela
uma folha vermelha de plátano cai em silêncio.
No que devo acreditar?
Indiferença?
Maldade?
Eu odeio os sinais do dia que chega
desde aquela manhã quando
o teu relance insensível me congelou
como pálida lua na bainha da alba.

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