sábado, 21 de setembro de 2013

REVISITAÇÃO DE HELDER MACEDO & UM PROBLEMA

 O problema com o Mal é que sob a sua filigrana já lá não respira ninguém, um outro. Não que o não “pareça”, ostensivo, importuno, omnipresente. Mas os seus modelos estão de tal forma saturados que já não trazem o pavor que os tornava indescritíveis.
Já não consentimos imaginar o Mal para além do que nos é oferecido. Estamos reféns das imagens que os seus modelos reproduzem. Ei-los mensuráveis, colados como selos às cartas endereçadas ao bem-que-nos-pariu.
E eis-nos abarrotados, até ao infinito, de cabidela, de vampiros, de espelhos que se vingam retroactivamente, de ogres & aliens, de democratas que mentem ruidosamente e de tiranos de viscosas mentes que florescem sob o bolor dos Hannibals desta vida, de putaria baixa & escarninha.
Como insistir na perfídia que já só se repete, extenuada, e já não afigura ser mais do que uma sobra?
Ser sacana, maldoso, ímpio, perverso, f. da p. qb, enrabar os anjos, engessados ou não, que intensidades traz agora, quando os massacres se sucedem indiferentes, em directo, e em Chicago escalpar bebés é o divertimento?
Lady Macbeth boceja e nós, depois de todo o bem cariado, chegámos ao mal sem sombra.
Para abusar de dois versos de Helder Macedo, o mal “telefona-me às vezes depois da meia-noite/quando o silêncio raspa o vidro da janela” – e, foda-se, mal damos por esse “penetra” na nossa festa.
E suspeito que depois da “naturalização” do mal começaremos a perceber que o silêncio foi perfurado. 
Quanto tempo precisaremos para compreender que perfurado não quer dizer perfumado?
“E eu nem sequer estarei aqui a dar por isso/ por termos ficado todos tão parecidos” – volta a escrever o Helder Macedo, um poeta absolutamente a redescobrir
e mais uma voz que confirma a minha intuição de que há décadas que confundimos a literatura com o turismo de massas, cabendo-nos a obrigação de corrigir o tiro.
 
 
Ladrilhos emprestados a “POEMAS NOVOS E VELHOS” de Helder Macedo, Presença, 2011, livro a que voltarei:
 
 
De VIAGEM DE INVERNO
 
2
Um salto de raposa sobre a estrada
último sol à beira da fronteira.
depois somente a sombra
duma luz diurna
a câmara dos ecos
e círculos de corvos sobre a neve
(…)
 
3
Na encruzilhada
vi-me reunido
restituído ao corpo que previra
despedido
na bifurcada ausência
da estrada sem regresso
ou transgredido
na transparência nua
da pele em que te teço
ou reconheço
nessa rasgada lua
nesse mar vão de sangue reflectido.
 
9
(…)
Mas os olhos que eu vi ainda eram negros
da cor da primavera.
 
10
A esquina estava lá
e a árvore prevista
mas não eu.
Falto-me?
Faltei-me
mas nem sempre é necessário não faltar.
Basta o simulacro de árvore na esquina
basta a avenida sem estrada onde passei
basta ouvir-me o silêncio em cada passo.
 
18
O laranjal coberto de limões
 
no corpo suculento da memória
 
(…)
 
De O LAGO BLOQUEADO
 
Não há mistérios
há corpos
com saídas e entradas
que se encontram
e articulam o serem divididos
 
não há não há mistério
 
e só assim conheço a minha imagem
onde mais me desconheço
no teu corpo
minha imagem verdadeira
como quis sempre não saber
 
há corpos
corpos apenas que não são embrulhos
de alma
nem morte redimida pela vida
 
por isso meu amor vejo-me em ti
porque te desconheço
e também te vejo em mim
 
mas não falo já de mim nem para ti
porque não és o corpo
que reflicto
à tua semelhança
que no entanto é tudo quanto sou
 
sossega meu amor
não há mistério
meu amor
meu excesso frio de paixão
há corpos
há corpos que se encontram
e se sondam
até que os corpos parem de morrer.
 
 
De O SETE
 
 
(…)
pra cama pra cama
e basta de prosa
quem fica de fora
não sofre nem goza
 
e arrunfa tafunfa
menina cachuncha
e trica larica
na pita catita
 
(…)

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