terça-feira, 9 de outubro de 2012

RETRATOS QUE NÃO TÊM FEBRE NEM ECOS



É um dos poemas mais belos e simples que me tem sido dado ler nos últimos tempos. É do americano Robert Creeley e surpreende pelo achado e pela estrondosa verdade que nele se reflecte a partir da observação duma singularidade na natureza. É um daqueles poemas que se sente não ter sido inventado mas que irrompeu “por si mesmo” e que a faculdade de Creeley foi ter sabido aceitar a sua oferenda, sem querer acrescentar nada, na sageza de saber que muitas vezes um limite é, ao contrário do que parece evidente, uma condensação. Nem sempre é assim, mas quando acontece dá nisto:  

AMOR

A coisa vem
por si mesma
                      (Olhe para cima
e repare
no gato e no esquilo,
                                aquele
rasgado, uma coisa vermelha,
             este
de alguma maneira imaculado
 
Uma das razões porque resulta, tal como resultam os haikus, é porque se laboram a partir de coisas concretas que, numa arte combinatória inesperada, enfatizam sentidos ou um fluxo novos.
Como lembra Creeley, em entrevista: «A “Literatura” não é, definitivamente, amiga da poesia nem o são os géneros e muito menos as tentativas de se colocar condições abstractas entre a arte e as suas pessoas». O que o leva a rejeitar o engodo das ideias, no verso e na vida:

NOVO MUNDO
Terra edénica, pessoa adâmica –
tolice é o preço que você terá de pagar
por esta inútil sabedoria.
              (tradução de Régis Bonvicino)
 
e a devolver o seu a seu dono:
O HUMOR

É tão frágil o humor
como aparenta querer ser,                                                      
vento correndo no mar, árvores
galgando ao vento e à chuva.

Coisas simples, como os retratos que não têm febre nem ecos.

Ψ 

Maltrato os livros. Ponto. Abarroto-os, nas margens, de sublinhados, redigo as páginas em branco. Não há centímetro que escape. Na última página de um livro brasileiro – o precioso Poesia- Experiência, de Mário Faustino, descubro estas duas quadras grafadas a lápis:
Também eu, um cemitério odiado pela lua,
também um sol moribundo que s’encripta:
no último arquear do arco:
também eu confundo o eco e a vala comum.

E este outro mimo:

Absoluta reclusão, a do veleiro
à chuva – frágil lâmina
que a carne azul engolfa e inebria
martelando-lhe peito e proa.

A única explicação é que nesse momento estaria a ler Augusto dos Anjos, ou estaria a andar de chapa com um famélico tuberculoso a tossir ao meu lado.
Hoje sinto-me um bocadinho mais optimista e menos antique.
Riam, riam, meus caros, nem sempre um poeta se agasalha confidenciando que é um cabotino. Só em dias ímpares.

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