No segundo número da excelente Duas Margens, revista de livros on-line (http://duasmargens.pt/), capitaneada por uma anti-troika de firmes e ecléticos saberes: João Guardado Moreira, Vítor Quelhas, e Carlos Pessoa, destacarei a longa e saborosa entrevista com Carlos Araújo, editor com 45 anos – repito, 45 anos – de amor à causa e que esteve por trás de tantos sucessos da D. Quixote, Sá da Costa, Edições 70, Terramar, Teorema, e Asa - um cardápio de peso.
Às duas por três perguntam-lhe «o que é para si um editor?». E o Carlos Araújo
responde: «Tem de haver paixão pelo livro. Ser editor não se “transmite”. Ou se tem, ou não se tem. Não há cursos que “façam” um
editor. Tenho quarenta e cinco anos de editor, sempre com uma intensidade e rigor
que vejo pouco hoje em dia. Praticamente já não há editores, porque os verdadeiros
editores estão mortos. Temos vindo a assistir ao desaparecimento daquilo que
para mim ainda é a figura do editor. O Lyon de Castro (Europa-América) foi um
grande editor, tal como o Joaquim Magalhães (Ulisseia), o Rogério de Moura
(Livros Horizonte), o Manso Pinheiro (Estampa), o Augusto da
Costa Dias (Portugália). E o retirado Francisco Espadinha (Presença), mais um
ou dois.
O que se está a assistir é a substituição do editor
pelo gestor. A qualidade deu lugar à quantidade.»(…) e mais
adiante, refere: «Quanto aos grandes
grupos editoriais, parece-me que a coisa vai começar a desintegrar-se, e vai
começar pela Leya. Posso enganar-me, mas tudo isto está a ser uma miragem, porque
o capital investido é meramente especulativo.»
Tornava-se
urgente que alguém com a autoridade moral do Carlos Araújo viesse dizer,
preto no branco, que o «rei vai nu».
De facto, o «negócio» dos
livros é realmente especial porque envolve a «coisa humana» e os afectos e isso
faz a diferença na forma como se transmite um livro. Porque um livro transmite-se,
como a gripe, não se vende (a venda
de um livro é um feliz efeito colateral
do acto de contaminação). Quando unicamente se vende é porque não constitui uma
experiência – nem para quem o faz, nem para quem o adquire. E todas as
não-experiências são descartáveis.
Afastado do país há
sete anos, tenho tido as mais nefastas experiências quanto ao meu relacionamento
com editoras e editores a uma distância de 10 000 km e com prejuízo evidente
para a visibilidade dos meus livros. Exactamente porque não tenho encontrado a
corrente de afecto que torna o livro e o contacto necessários e que criam o
primeiro elo de uma corrente entre os leitores e os autores, dado que o editor
começa por ser primeiro um leitor. Se o primeiro leitor que o editor é está
entusiasmado então isso reflecte-se no seu acto de partilha com o leitor; se o
livro tem atrás dele um gestor que nem lê e que unicamente se preocupa com as letras
em relevo e em dourado da capa o livro parte orfão para o mercado.
Hoje não há um mercado
de livros em Portugal mas sim uma delapidação de títulos. E esta não tem em
conta o ritmo de sedimentação que um livro exige para se impor verdadeiramente
como referência ou âncora. Os livros sucedem-se vertiginosamente nas montras e
nos expositores, sendo que a lógica que preside a esta rotação acelerada é a
estúpida ideia de que todos os livros têm de ser ou best-sellers ou carne para
o canhão da guilhotina. Num fluxo de edição próprio da fórmula um, cada livro apenas atropela o anterior, enquanto põe a prazo a sua manutenção na pista - raros chegam à meta, a qualquer meta.
Em 2008 saiu o meu
último livro de ficção que teve edição em Portugal: Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, pela Teorema. Coitado do livro, saiu
precisamente na altura em que a editora se passava para a Leya e nessa passagem
de testemunho o meu, e com certeza os demais saídos na mesma altura, foram absolutamente
abandonados. Mas enfim, vi montes de livros à venda nos hipermercados e Fnacs,
antes de voltar a Moçambique e entretanto saíram 4 artigos nos jornais, todos
laudatórios, apesar do desinteresse da editora. Dois anos depois, a Leya,
mandou-me, a meu pedido, um relatório de vendas: 70 exemplares. O que me
parecia impossível, a não ser que a editora tivesse aceitado a devolução de
todos os livros “vendidos a firme” – prática que se tornou um cancro no ramo. Mas,
a ser verdade, algo falhou na cadeia comercial. Não foi o autor, que fez um
livro elogiado por quatro críticos diferentes. Inconformado, por altura da saída do filme Tintin, de Spielberg, que foi um êxito em Portugal, voltei a contactar a Teorema, na pessoa de quem havia substituído o Carlos Veiga Ferreira, e argumentei que seria a ocasião para relançar o livro, era uma boa boleia. «É um livro muito antigo para as livrarias…», respondeu-me o senhor. Lembrei-lhe que podia por exemplo recapar, com algumas frases extraídas da crítica, já que a edição só tinha vendido os míseros 70 exemplares. E aconselhava-o a consultar os recortes sobre o livro e a reler dois ou três contos, para ver se o livro tinha ou não potencialidades de venda. Não obtive qualquer resposta.
A questão que então se
me colocava era, mas será que o verdadeiro negócio destes senhores é livros, ou
isto é apenas um álibi para outra coisa - porque ele não manifesta qualquer
interesse em comercializar o livro? É que a ocasião do Tintim voltar à crista
era de facto única. Parecia-me como se um cego treinasse uma equipa para deixar
no banco o Eusébio e o Cristiano Ronaldo.
Pela mesma altura o
Carlos Alberto Machado enviou por mail um manuscrito a uma editora grande e
recebeu, um minuto depois, uma resposta automática: «De momento não estamos a
aceitar manuscritos». Coisa bizarra para uma editora, como se o mesmo treinador
cego, para além de deixar no banco o Eusébio e o Cristiano, tive uma alergia a
golos na baliza contrária. Porque como saber se o manuscrito é merecedor de
rejeição ou se é o «tal» livro que procurávamos para os 200 000 exemplares
vendidos numa semana sem lhe dar sequer uma espreitadela? É absurdo. Voltei a
ficar baralhado com o de que vivem afinal estes novos editores, e suspeito que
o editor esperto que não queria ser incomodado e instalou esse dispositivo
electónico no seu mail é um competente causador de naufrágios, em nome da
gestão.
Até que quinze dias
depois li na imprensa que esse editor e uma meia-dúzia de outros haviam sido
dispensados da Leya.
Com o meu romance A Maldição de Ondina, que foi aceite no
Brasil numa semana e que foi recentemente nomeado para finalista do
Telecom/Romance, tentei também bater à porta da Ulisseia. Deram-me boas referências do editor, que fizera parte do
núcleo fundador da Cavalo de Ferro –
o que para mim era uma dica muito favorável – e contactei o senhor. Antes de
haver o tempo para uma resposta qualquer li de novo pelos jornais que o editor
havia sido dispensado pela Babel – provavelmente por não apresentar resultados
convincentes de vendas. Podia ao menos ter-me mandado um mail a explicar a
situação, pensei. E fiquei sem interlocutor.
Porque esta é outra
questão importantíssima na relação editor- autor: quem é o interlocutor? Com quem
falo, de quê, para quê, com quem partilho empatias ou antipatias, com quem falo
de futebol, projectos e de literatura, ou mesmo tecnicamente do livro?
Na Porto Editora pediram-me que fizesse uma versão light do meu
romance A Maldição de Ondina. Julgo
que a verdadeira razão era política, tinham receio de que o livro melindrasse
os responsáveis de um país onde têm alguns negócios. Quem habita em Moçambique
sou eu, mas o receio era deles. Mas a desculpa era técnica: não era livro
para o «leitor médio». Eu sou um narrador, não tenho nada de um criador
experimentalista, em mim pode o tema, unicamente, ser mais ou menos duro, e por
isso me pareceu bizarra a consideração de que o livro não era indicado para o
«leitor médio», obstáculo que, entretanto, não me tem sido referido por nenhum leitor.
Mas este jargão técnico esconde outro facto: hoje já não é o gosto ou o afecto que permeia a escolha dos livros mas a imposição de um maior denominador comum não-cultural como expressão para os livros.
Um autor que exiba um estilo pessoal e use um maior
espectro lexical é imediatamente considerado um caso para engavetar na escrivaninha
dos nichos. A diferença, que ontem era uma marca, hoje é um defeito para os
novos editores. Por isso sobrevém-me demais a sensação de estar sempre a
ler o mesmo livro, escrito por um notário para candidatos a notários.
Também tenho, à
distância, a sensação de que a Leya está por um fio. Dizem-me que neste momento
não paga a muitos autores nem a tradutores. Isto podia ser só boataria. Mas quando
eu compro na rua em Maputo livros de uma colecção da Leya em que já se
confundem todos os catálogos interrogo-me como podem as editoras que a compõem sobreviver
se a casa-mãe lhes faz concorrência desleal? É como dar dois tiros em cada pé e
depois ordenar ao corpo: corre.
Boas ideias de gestor
em pânico, pois.
escrevi uma nota sobre este post no meu blogue.
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