A este
livro, hoje nomeado finalista do prémio Pen Clube, apresentei-o assim,
num
textículo na sua última página:
“Anatomia
Comparada dos Animais Selvagens 
–
um título inspirado em Diderot, para quem «a poesia quer 
qualquer
coisa de enorme, de bárbaro e de selvagem» –, 
que
tem o subtítulo irónico de Conversas em quadra, tercetos e sonetos, 
é
a um tempo um livro medidativo, lavrado pela tensão 
entre
as circunstâncias e a necessidade de um movimento ascensional 
que
tem o seu foco no vazio, na ausência de Deus, 
e
um livro de transbordo, 
que
tem no amor a única saída, pelo que fecha com um ciclo de sonetos 
narrativos
de feição lírica, 
Para
os que o leram: introduzi alteraçoes em dois dos poemas que aqui
deixo.
De Conversas em Quadra
7. (intermezzo para uma recordação feliz)
O trigo afinal rescendia a tigre, naquela 
tarde em que as minhas mãos indefesas 
julgaram encontrar entre as tuas pernas 
um cristal. Era uma das minhas primeiras 
idas ao campo e lera, na camioneta 
da carreira, A Peste, mas nada quebrara 
nos meus pulsos o desejo felino 
que ali reaproximou o meu século 
daquele poder angélico que as tuas pernas 
perfilhavam. E ficámos mais felizes 
do que a águia, que há milénios, 
naquele lugar, roubava os anhos.
11.
O cego mira a flor, a flor 
sorri. Alucinação que fende 
um mar de luz, ou algo 
que despende a vida, até
que pela ausência um trovão 
lampeja? O céu não pode 
impedir‑se de ladrar, 
mas nós podemos calar.
Se de novo olharmos o mar, 
humildes, e nos seus corais 
dissiparmos de novo a crueldade, 
como a flor que floresce
para o cego. O que nos sobressalta 
é o apego das areias, esquecidos 
do vento, até que a doença mostre 
a glande? Voltemos ao mar.
de Conversas em Tercetos
1.      
da
arte 
2.      
 
O essencial é estancar a hemorragia, 
despertar no verso a pedra‑pomes 
que se afeiçoava aos lanhos 
no queixo quadrado do meu pai; 
ou isso, ou rapinar, furtando‑me 
à confiança e aos seus desastres. 
Como em miúdo as castanhas 
que surripiava na mercearia 
do rés‑do‑chão enquanto o pigmeu 
com cara de ovo (cada um tem o Virgílio 
que pode) e orelhas de abano pesava 
as línguas de bacalhau e os cartuchos 
de rebuçados e a minha mãe se embuçava 
de vergonha recurvando as costas 
para não ser vista. Mas 
na minha mão rebrilhavam 
as apetecidas e a sua casca macia 
era clemente. Na idade 
em que os navios mirram ao longe 
e a malícia não se submete ainda às leis 
da gravidade. Nem as comia, 
guardava‑as numa lata com botões, 
pregos e alguns cromos dos magriços. 
O fito era embalsamá‑la em susto,
expor naquele redondo resumo 
o inatingível acanhamento de sua vida. 
Não o saberia ainda, intuía 
apenas que o mundo precisava 
de impulsos, cansado do medo, 
do cochicho, da decência 
de aceitar a impossibilidade de lobrigar 
nos intervalos da chuva a Lollobrigida 
que me fascinara num cartaz, 
da desvantagem de renunciar ao fruto 
por indolência do arbítrio. 
Repeti três quatro vezes o gamanço 
e as chineladas em casa não 
me desmanchavam o riso ou podiam 
trazer receio a quem perseverara 
na senda do delito, pois nomeava‑se 
assim esse looping de gaivota 
da criança que descobre 
numa castanha uma intensidade 
só sua, sem preço ou penhora 
atribuíveis. Seria de sermos pobres 
aquele terror a prestações 
de minha mãe, das unhas 
nos crescerem para dentro
dos panarícios e de não 
sonharmos com viagens mas 
com aerogramas que lembravam 
guardanapos dobrados num abraço. 
Mas naquela dúzia de castanhas rapinadas 
para trespasse da alma de minha mãe, 
que nunca mais foi a mesma 
ou pelo menos me tirou da catequese 
num assomo de vergonha, descubro 
hoje o mútuo consentimento 
com que a arte se disfarça 
de irrelevante para poder capturar 
o que não está à venda, o que nunca 
se expôs e vibra quando se estala 
a jarra e o ar de dentro sorve 
o de fora 
com a sua boca 
silente.
7. Excídios
Devoram ovos de formiga, escreve 
Cabeza de Vaca sobre os sioux. 
Assim matavam a fomeca.
Sobre o tamanho das formigas 
ou se, em cachos, fariam sombra 
ao caviar, nada adianta. Continua,
«e comem terra e madeira e esterco 
de veados, e outras iguarias que deixo 
de contar…» – e cresce‑nos a água
na boca. Problemas que os brancos 
atalharam exterminando‑os ou pondo‑os 
ao fiapo, muito atrelados ao fundo do gargalo.
Já o excídio dos astecas era intrínseco, 
com facas de sílex e varas de fogo 
desorbitavam os corações.
Julgavam‑se tão responsáveis 
pela mansuetude do clima 
e dos corpos celestes
que não aceitavam a clemência 
e Tlacahuepan rejeitou até a honra 
de ser vice ‑rei, exigindo a pedra
do sacrifício. Isto não contou 
o australiano, no seu filme, 
onde mentiu a troco
de pequenas intensidades. 
E afinal lê‑se nas tábuas enceradas 
dos astecas como a graça não chega,
efémero trevo, e não são dispensáveis 
a coragem, a doçura e a renúncia. 
Quinhentos anos depois a palavra
de ordem é não ao sacrifício 
e a minha vida é um pequeno seixo 
que um deus menor chupa
na canícula para sentir na boca 
o frescor das azedas, um deus 
manco a quem já falta o delírio
dos bagos. E as fitas estão aí 
tão ocas que nenhum punhal 
lhes encomenda o coração.
De Conversas em Soneto, três Trípticos Tropicais (ou
sonetos com contexto)
2. A
palafita assustada 
«–
Pai, como se processa um soneto? 
–
Como se processa? Bom, é uma palafita assustada que corre em catorze pés… 
–
Catorze, nem mais uma? 
–
Bom, o Rimbaud fez tudo com vinte pernas… mas isso é já um compromisso e por
isso, como dizem no brasiu, “se escafedou”. Devemos espreitar os quinze, mas
pingar antes, no catorze… 
– O
“Catorze” não era aquele teu amigo? 
– O
“rei da lerpa”, e vai nos cinquenta e quatro… 
–
Vês? 
–
Tens razão, as pernas das palafitas reproduzem‑se… 
–
Como é que se chama o que estás a escrever? 
–
Tristeza. 
–
Pai, a tristeza só tem uma perna… 
– Tens razão, por
isso vou mudar‑lhe o nome, vai‑se chamar:
DA FALÊNCIA DE RILKE 
Do ar
que nos sufoca 
somos o
cais de embarque. 
Nem mais
nem menos, cereja 
imaculada
antes do picanço 
a bicar.
A sede que nos move 
é a dor
em viagra 
por
mares de um desejo 
que só o
vendaval sagra. 
Secreta,
lancinante, e nunca 
cicatrizada
esta fuga de ar 
de um
fole que não ressuscita 
nem em
manobras de boca‑a‑boca, 
nem na
alusão esquecida 
por um
anjo que já só cita. 
–
Quero pagar… 
– São
dois copos… 
– É,
mais um que acho que te devo… 
– Ah.
Esse “lá…” 
– Ainda…»
3. Coisas que
não se extraviam 
«– Não te enganes,
sou de uma fertilidade acabrunhante e por isso não olhemos a lua... 
– Falas de quê? 
– Se tu me pedires
para namorar contigo… dediquemo‑nos a ler o Du Fu… 
– Isssh! Olha o
mulungo… ia lá querer um velho! 
– No ocaso, há
quem bata latas! 
Nunca vi
tantos cemitérios juntos 
como nos
poemas do checo Vladimir Holan: 
o homem
não é mais do que um erro 
«cometido
no censo dos mortos», escreve, 
e lembra‑me
um deus que conheci 
em
Namuli, nas montanhas do Gurué, 
chegado
dos Carpátos e volta, que 
fazia
rodar os planetas ao som da sua ocarina. 
Negro‑dourado
fauno com vespas nos olhos, 
o aéreo
peso da transumância engrossava‑lhe 
as veias
nos calcanhares. Assustado 
pela
luminescência que lhe sulcava 
as
pegadas, perguntei, Quem és, e respondeu‑me 
num assobio, Sou o pastor de
cemitérios.
– Posso? 
– Sente‑se. 
– O senhor está
sempre a ler? Que lê? 
– O mar entre as
vírgulas… 
– Não entendo… 
– Coisas que não se extraviam.»
6. Retrato oblíquo da Jenny
«– Uuuuih! – e
adiantou – Não é bom, isso aí! 
Uma mulher de
trabalho que não teme 
os machos, os bêbados
que aderem 
ao balcão do bar como
velcro. 
Admiro a energia com
que demove 
as mentes mais
conspícuas com um Iiiissch! 
de mármore que
colapsa a veia mais atrevida, 
a de bode que aspire
à ruminação de fêmea. 
Como ao boomerang,
nem a chuva a detém.
Um vez quis prosseguir estudos e pediu 
perdão senhor antónio me aconselhe e lá abri 
o herbário que consentia ligar o pouco 
que ela aprendera à ocasião. Gostas de sonetos,
perguntei, um misto de alfazema e agrião 
que reponta numa escadaria de catorze degraus 
que podem conduzir à lua? Prefiro ciências, 
explicou ‑me, com a mão acariciando a lotaria
da minha, Minerologia era o meu sonho, ouro 
e platina…as açucenas são brancas, 
não são, indagou, e podem levar ‑nos à luz,
não é – olho castanho a furar ‑me a pupila. 
Branco era o teu avô, e preveni: cruzar anel 
de noivo de ouro com açucena dá ovo de avestruz.
– Como diz? Acha‑me
hoje mais ácida? 
– Nem todos os
sonetos são perfeitos… 
– Quer outro copo de
preta, senhor António? 
– Lembras‑te que uma
vez te falei de rimas? 
– Naquele felatio,
senhor António, fiquei grávida...»
Quem quiser ler o último poema do livro, um longo
poema lírico, pode encontrá-lo aqui:





 
 




