quarta-feira, 19 de agosto de 2015

AS TRÊS GRAIAS

As três Graças, Rubens
 
Vasculhando materiais antigos descubro este ciclo, que me agrada.
As três Graias: o Tempo, a Memória, o Sono.
Já terei usado um verso ou outro noutros poemas, refundindo, não importa. A coisa surge-me como uma unidade que merece a sua contemplação à janela.
Para ilustrar escolhi o quadro do Rubens sobre as Três Graças, porque estas, ao contrário do artista, me parecem Três Graias.
 
O TEMPO
 
1
Gosto, no Tempo,
que me dispa
em contramão.
 
Se me aperalto,
Ele, num aceno
açula os mastins,
 
arma no desejo
de Teseu
a labirintite.
 
2
O simples: estria
que difere
por natureza –
a despeito
dos liftings do amor,
alguma coisa
que difere.
 
Agarrado ao galho
do Tempo,
sou o último fiapo
que o rato
ainda não
visou.
 
3
O meu corpo é o corrimão
onde se coçam as calças
da valiosa criança
do Tempo.
 
4
Era assim quando fui cão.
O orgasmo?
O McGuffing da morte.
 
E hoje cheira-me que transijo
em solo desconhecido,
que o Tempo se devota
a polir a vigota do temor.
 
5
Não é matéria de calendarização.
O Tempo, apenas, num desnorte,
treme treme no luxo da tsé-tsé.
Desaba de si e dos seus como
ninguém,
ou talvez a térmita.
 
6
Fanados por um mistério mais vão
que o das Fossas Marianas,
chegamos a confiar nele,
a incutir:
 
você é quem sabe,
você faz o preço!
 
O Tempo,
de sorriso a tiracolo
tira-nos as divisas:
o seu troco
de alfaiate é o nosso luxo.
 
7
‘Complicas em demasia
a tua vida, se te preocupas
com a acústica do caixão!’,
 
confiou-me Ele, na única vez
em que partilhámos
beata & aguardente.
 
8
É um princípio
de borra-botas, matar
gratuitamente para que a vítima
não chegue a distinguir trufas
de miosótis.
 
Por isso,
enternecidamente,
me escama
o Tempo,
alheio a que eu não seja
sequer
o travesti
de um peixe
.
9
As varizes do Tempo
(coisa feiota de se ver)
renovaram
em mim os brotos.
Nada a fazer.
O temperamento
do bruto
fatiga-me,
dois pontos,
embora a fadiga
me faça crescer, escoucear.
Julga ele que m’ensandece:
que tomarei a baba
que decorre
por cogitação dos fósforos.
Vai uma aposta?
 
10
As nádegas do meu tempo
que foram rijas
como bilhas
de gás
já não enxameiam.
 
11
Não há psicologia que suporte
o pleno
de uma cabeça peneirada
no vidro,
nem a palpitação do sinistro que irisa
e avermelha o empeno do para-brisas.
 
A alta velocidade,
o Tempo é o olho das três Graias,
polinizado de mão em mão,
até que, sem raiz,
pira.
 
 
 
A MEMÓRIA
 
 
1
A memória, a cento e trinta à hora
nos cromados novos
e acossados pela extensa,
tangível, crepitação dos girassóis,
 
de meu só anseia o escalpe.
Que a goiva - insculpido o pó
nos sulcos da madeira –
não descure a sede da galinhola.
 
 
2
A memória, a ocasião falida,
respira como o chacal
apodrecido pelo amor.
 
3
Com a imparcialidade que perfura
a ferrugem - sonha a memória
pôr à tona dos dedos – xamã
em viagem – a mão.
 
4
Na acerada ponta da palavra
confluem as aves e o dardo.
 
5
Desvairo lancinante, o nome,
assim que o lobo
do silêncio imobila a palavra
pelo cachaço.
 
 
6
Inescrutável, nas carótidas do Indiviso,
a dor da terra apátrida
– há ração provisória p’ró indulto?
 
 7
Corvo: fuliginosa tatuagem
da insónia no coração de Noé?
 
 8
A memória, hesitação duradoura
entre fogueira e litoral.
 
9
Infértil o faro do cão qu’esgaravata
o pisca-pólos sob o asfalto.
 
 10
A memória que, com uma grua, alça
a lua afogada do lago
orbita em que domínio?
 
 11
A pele, o sorgo, os ratos, o sisal:
quatro momentos de estupor da pedra.
 
 
12
Aturdidamente, os galos ganham
à noite - num fullen de duques –
o combate pela transigência.
 
13
Restituída, em nome da orfandade,
a memória entricheira-se.
 
14
Gastou-se, a lixa
da caixa de fósforos. Paul
onde a incandescência da imagem
fundiu alma e asma.
 
15
O mais nítido pavor,
veia que pulsa por msn
e cinzela a respiração do osso.
 
16
Quem estanca o pipilar
das aves nocturnas?
Quem aguarda, inebriado,
por detrás da roldana da tristeza
até que chegue o mar,
que chegue a luz?
 
17
Incorrespondido o enigma,
a memória desprende-se
da pele que ladrilhou
- reminiscência tão pura
que, saciada, a veia
bebe aos goles.
 
NOTA: este poema corresponde a uma leitura de Antecedentes Criminais, de Amadeu Baptista; os versos em itálico são deLE.
 
 
 
O SONO
 
Cansada de enfiar o dente nas penas
dispersas, a terceira Graia dorme.
Sileno ri e coça o casco.
A minha filha Luna interrompe:
Pai, que bodega, hoje sonhei
outra vez com o galo amarelo.
É contra as séries.
 
 
 
 
 
 
 
 


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