quarta-feira, 6 de agosto de 2014

UM HAMLET AFRICANO

                                                                             Tapiès

Anteontem à tarde um meu vizinho ocasional de café, pessoa que nem conhecia mas com quem tive uma conversa de circunstância, mostrou-me no telefone um vídeo de cinco minutos onde se via um linchamento colectivo – tendo aí sido mortas cerca de seis pessoas. Fiquei embatucado (nunca se tem estômago para a violência e a brutalidade selvagem e cega das multidões) e a matutar como conseguiria traduzir a indignação que me foi subindo do estômago à cabeça e que me fez dar milhentas voltas na cama.
Ontem, às sete da manhã fui dar uma aula dedicada a Hamlet. Quando saí da aula fui tomar um café, decidido a ler um bocado. Mas a moinha não deixou, às 9h30 abri o computador e às 11h30 tinha a pequena peça escrita. Uma catarse por via dum pastiche shakespeariano, inclusive na linguagem.
O caso a que o vídeo reporta, dizia, passou-se o ano passado, no centro de Moçambique, mas estamos a vê-lo em Gaza, em milhentos lugares.
Se estivesse em Gaza escreveria sobre Gaza (aliás já o fiz em «Combate de Flautas», três cartas a três poetas árabes, editado pela &etc.).
Agora estou em África, dói-me África mais directamente. É o humano que está doente e espalha a barbárie em todas as coordenadas. Que a literatura seja uma medicina, a possível. Pelo menos para mim, que vi, e ainda não sacudi o estupor.



UM HAMLET AFRICANO



Hamlet anda insone pelos corredores do palácio. Olha para a janela, ainda é noite.

HAMLET
Depois desta noite
não passarei de um bastardo…
que maldição… e que a noite não encalhe
no limiar da dor
e a sua língua volte a escorrer,
inocente cascata, nas palavras que clareiam,
e que seja o seu miolo lavável,
passível de ser esquecido,
sem trazer, tormentoso,
ao espírito o promontório                         
que vicia na contemplação da borrasca.
Que a noite polinize a manhã
e arda nela a tua alma como o matutino
que foi lido e embrulha agora o peixe
no mercado, esquecida de si
mesmo e com a paz com que a pedra
se redime ao sol.
Quero ser pedra, sim.

Senta-se no parapeito de uma janela, enquanto atrás de si a luz vai mudando, fazendo chegar a alba.
A sua mãe entra em cena, os óculos de ler pendidos no peito.

GERTRUDES
Falavas com quem, filho? Ouvi-te…

HAMLET
Falo com a sombra, mãe,
com este rio
que não me cessa de ser frio.

GERTRUDES
Às vezes assustas-me, filho,
desconcertas-me em falas
que me esfumam a razão.
Que tens tu a apaziguar na tua sombra?

HAMLET (evasivo)
Enlaça-me a dor, e como um baloiço
sobe e desce…

GERTRUDES
Vê, a manhã nasce sem culpa.
Que te pode trazer tão sombrio?

HAMLET
Não viu a mãe, esta noite, um fogo que mordia o céu,
como as esporas nos cavalos, em negros cachos?

GERTRUDES
Quando viste tu, o que tanto te afecta?

HAMLET
Um fumo frondoso, espesso e escuro tomou
esta noite conta da cidade e penetrou nela
como um caroço que tem a esconder
no centro do fruto
um mal que não se dissipa.

GERTRUDES (metendo os óculos na cara)
Meto os óculos, não porque vá ler,
mas para me defender de ti… filtro
as tuas palavras amargas - que algo
de bom há-de ter acontecido algures.

HAMLET
Em algures e talvez também em nenhures,
mas entretanto vá a mãe à janela
e inspire fundo,
e diga-me depois que odor
se recorta no azul do céu. Vá, mãe…

GERTRUDES
Se precisas tanto que te sossegue, filho…

HAMLET
Não hesite mãe… Redobro o meu pedido: vá…

GERTRUDES
Se insistes... (chega-se à janela e inspira)
há um leve aroma adocicado…

HAMLET
São os degraus com que a cinza chega ao céu…

GERTRUDES
Que cinza filho, só vi um azul onde se podem enxotar as moscas.

HAMLET
Mas sentiu?

GERTRUDES
Levemente. Pareceu-me que algo se infiltrava no ar… semi-doce. Não sei definir…

HAMLET
E ouviu gemer?

GERTRUDES
Porquê? Vi a torre da igreja ao fundo
e o coreto a meio
e chegada à janela não se via vivalma…
Quem poderia ouvir gemer?

HAMLET
Dormem ainda, depois do massacre…

GERTRUDES
Falas por enigmas e os labirintos assustam-me…

HAMLET
… porque se me desconjunta o futuro
antes que o próprio comboio
se entronize nas calhas do tempo.
Escusas de matar o pai, o kutchinga está feito.

GERTRUDES
Deliras… o teu transe desacredita-te.

HAMLET
Antes não tivesse visto, mãe. Antes
morresse antes de ter visto
os fantasmas tomarem forma
e a violência engrossar neles o sangue. 

GERTRUDES
Pões-me nervosa. O que viste
então, estando eu adormecida?

HAMLET
Vi que uma mole humana subia a serra
com archotes e num alarido
e pensando que fosse um meteoro
que ali caía, segui-os. Que o tempo
me tivesse cegado com a sua lima de ferro,
mas tinha de assistir para saber como o homem
não é mais que a maçã que apodrece
num tiquetaque…

GERTRUDES
Cada palavra tua me acorda para as sirenes
em Gaza…

HAMLET
Deixe que o distante se faça distante
e antes aproxime, mãe, a mira dos seus,
para que não seja lisa a aspereza
do que aí vem… e a dor cobre
o seu peso em ruínas,
inflamando-as ao rubro até
que toda a lembrança espanquem…

GERTRUDES
Aproximas-me do fogo, como quem murmura…
Pé ante pé mortificas-me…

HAMLET
Que então o fumo do fogo não te embote mais
a dor daqueles que ontem arderam
pois até os antepassados que assistiam
sentiram repentino frio no prepúcio
que há tanto circundaram.
Mas, dizia-te, segui a multidão
curioso de não haver reticências e de um entusiasmo
a transportar, como o esfomeado segue
tolamente as miragens, até a de um leão. E lá em cima
na clareira com o tamarindeiro milenário,
a quem rodeiam os embondeiros onde se oferta
aos espíritos as libações e o sangue dos cordeiros,
vi que havia uma vala já feita,
como se tudo fora previamente combinado,
e que a multidão excitada chambocava
seis cidadãos que na aflição e na dor
se revezavam. Não te saberia descrever
o desorbitado naqueles olhos e o deserto
nos dos outros que pulavam com os seus cascos
sobre os desgraçados, pisando-os, e insultando-os,
enquanto os paus faziam da sua prévia fúria embalo.
Em breve as vítimas, no sonho de acharem
um reduto que os salvasse, se encolhiam
de joelhos encostados ao queixo
como os fetos no útero, e inclusive
os queixumes baixaram como se extirpados
da vida real eles sonhassem apenas aquilo.
Depois a multidão, a uma voz dos incitadores,
encheu de ramos e folhas secas a vala
e nela pegou o fogo…

GERTRUDES (a voz embargada)
Quem eram, os que estavam a ser linchados?

HAMLET
E isso salvará as aparências?
Que importa os nomes, quando tudo arde?
Quem nos salva do ódio que fez
primeiro dos outros lenha, e depois
esbraseia, voraz, à espera
que capitulemos ao seu mandato?
Quando fazemos do ódio supermercado
nenhuma prateleira nos esconderá
os seus recursos. E entre os incitadores, mãe,
entre aqueles que não renunciavam
a envilecer as suas palavras, estava o pai.
Como o chefe da polícia e dois agentes
e o secretário de bairro, e o padre,
mãe, o padre que os devia acalmar
e meter de novo na cama.
Por isso o kutchinga está feito.

GERTRUDES
Desejas a morte do teu pai?

HAMLET
Está já morto. No seu lugar senta-se
agora a infâmia. A infâmia
que se deitará no teu leito e que chegou
de um paradeiro invisível para tomar
o seu lugar, fazendo dele o parente
que morreu. Quem te acariciará
é já o incesto com o mal.

GERTRUDES
Eu não vi, filho. Que queres que julgue?

HAMLET
E é por isso Mãe África, que a partir de agora serei um actor mudo.

Sai.
Elipse.
Dirige-se para o pátio com um gerican de petróleo, senta-se a meio do pátio.

HAMLET
Quero ser pedra… mas não a pedra
do não-ser, a pedra que arde.

Deita petróleo por cima dele, depois acende um fósforo.

   
notas:
1. o kutchinga é a prática, muito em voga no campo mas também em certas franjas periféricas da cidade africana, da viúva passar a ser mulher do irmão do morto. o que aliás é o que também acontece no Hamlet
2. chambocar: um verbo que designa o acto de malhar em alguém com um cassetete ou um pau                                                                  

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