terça-feira, 15 de julho de 2014

LANCELOTE E A CRUZADA CONTRA O REI ARTUR



                                                                                                               para a Ana Maria Pereirinha

Várias vezes escrevi sobre o Herberto e nenhuma bem, e creio que também não será desta que melhorarei a minha performance. Porque não basta ter vontade e parafrasear o que nos escapa, nem isso traz consolo à evidência duma inteligência lacunar. Não admira que por isso me espante o carácter peremptório do que leio.
Vem isto a propósito de um texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto Helder, saído no «I» e replicado no seu blogue, O Melhor Amigo, crónica de execução, eivada de um tom com que não posso estar mais em desacordo.
Não li ainda A Morte sem Mestre e, apesar da curiosidade, não sofro de ansiedade. Acho que quase todos os livros são dispensáveis e creio, como Robert Lowell, que foi um dia feliz para Satã quando Mallarmé declarou que o mundo cabia num livro. Isto deixa-me mais à vontade para dizer que acho impossível que Herberto tenha escrito um “mau” livro, um livro “desprovido de magia”.
Há é vários tipos e graus de magia.
Um homem envelhece e já “não dá quatro por noite”, é ultrapassado aos vinte metros por qualquer pintainho zarolho, e percebe finalmente que na sua retorta alquímica fabricou tinta dourada mas não ouro.  E di-lo, com toda a honestidade que acarreta o seu verbo magnificado por um uso onde nunca defraudou. 
Agora, não é plausível que face à sua nova condição lhe exijam que repita o seu reportório ou que seja estanque à experiência de estar acossado pela morte. É um livro rude, direto? Bastava seguir a sugestão fonética que o remete para Le Marteau sans Maître, de René Char, para entender que desta vez, como um furibundo Nietzsche, o velho vate, resolveu ser intempestivo, fazer poesia à martelada. Golpe contra golpe, retirando o verso do seu território de segurança, jogando contra a noite a insónia, contra a anestesia da sageza a ferocidade da dor. 
A mim parece-me uma indagação radical, da base e do cimo, uma forma de neutralizar a atracção dos ímanes, e depois vida é isso mesmo: mudança, sob um capitoso desprendimento.
Tenho passado os últimos dias a ler com as minhas filhas de sete e dez anos As Mil e Uma Noites. Tem sido uma festa, eu faço as vozes e lanço as canas e elas apanham os foguetes e reciclam-nos para que eu os volte a atirar. Perco nisso uma hora e meia por dia, que arranco à escrita do romance em que ando mergulhado. Há uns anos atrás eu não o faria. Acharia que perdia tempo e que a minha “obra” não admitia esse desvio de energia. Agora estou-me nas tintas para a “obra”, escrevo-a quando me diverte, e o mais importante é conseguir fazer passar aquela corrente e as miúdas ulularem, divertidas. E que me exijam todos os dias esse ritual. Eu sou apenas um elo.
Somos elos, não a cadeia inteira, nem a montanha mais alta de uma cordilheira. Na cordilheira seremos sempre o vale, onde as águas confluem. A idade ensina-nos que nem tudo o que se inclina é para subir e que vezes há em que cá em baixo fulgem as iluminações.
Porém quando somos novos é-nos insuportável que não nos deem importância, que os nossos princípios não sejam tomados por pedra angular. É o mesmo quando a velhice nos torna rígidos em certos princípios, o contrário do que pelos vistos manifesta Herberto, que não se importa de se mostrar luxuosamente contraditório.
As três coisas que me entristecem no texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto:
- que ele confunda tão precipitadamente a opinião com o conhecimento – esquecido de que lhe estão ainda vedados  os cinquenta anos que o separam do vate; tendo pela frente a longa viagem que, com
as modulações inesperadas que a vida inocula na escrita, lhe desenganará todas as teses;
- depois, que, numa projecção algo heróica, exija ao livro que cumpra uma “via correcta”: fiel ao que ele, Diogo, acharia pertinente como “continuação” da obra herbertiana, em vez de escutar no livro a sua respiração fanhosa, a materialidade com que é ali exposta uma particular vulnerabilidade;
- por fim, o que no Diogo tem sido infelizmente recorrente, que olhe para o mundo a partir da perspectiva de um entomologista – altaneiro, superior –, como se ele, insusceptível de crítica, um eleito, fosse o último dos “puros”, investido pela missão de manter a piolheira sob vigilância e à mercê da lente com que foca o «asco».
Eis que o Herberto, coitado, sucumbiu a esta nova zona categorial – encontrou a sua «ascuidade».
Custa-me engolir que, ainda que o livro fosse menor (não sei, não o li), falte ao Diogo a sensibilidade para perceber que o Herberto, por tantos exemplos sublimes que nos ofereceu, não merecerá,  aos oitenta e picos, que um jovem lhe cuspa na fronha que ele já não passa de um eunuco, de um ouro convertido em lata.
Porque, afinal, será o Herberto o Dantas de Vaz Pinto? Há aqui uma desproporção inacreditável e não se descortina o fundo da vanidade deste exercício. Repita-se, será o apelido de Herberto Dantas? Ou a sua simetria: terá Diogo as qualidades de um Negreiro?
No texto de Diogo ficamos a saber mais sobre o que ainda lhe sobra de arrogância infantil do que aquilo que convinha quanto aos antídotos que ele nos pode transmitir em relação aos modos como reagir à morte, à decadência, e aos ímpetos de cobardia com que a senectude nos verga. Afinal, onde se situa o lugar de onde nos fala, com escusada presunção? Não se descortina.
Faltou talvez à sua leitura aquilo que, pelo pouco que já li, é mato no livro: a humildade de reconhecer os limites, que não somos só urdidura, estilo, abstracção, distância, alquimia e acabamento, mas desequilíbrio, pathos, diarreia, carne viva, dor, inacabamento, e por isso palha demasiado humana.
Detecta-se no seu texto, para além duma falta de urbanidade (enfim, uma equidistância, se temos de facto tanto escrúpulo em endereçar um gesto, um carinho), uma ingratidão profunda, mesquinha.
Não estará o livro à altura do estatuto do velho leão e do seu lugar na história da literatura? Talvez. Não li. Mas isso não importa sequer: creio que o Herberto neste momento caga para esse desiderato, que, pelo contrário, se deixou de poses e depôs a máscara: é um ser falho e carecido de amor, como todos.  E di-lo: até a merda da poesia o trai, a ele que tanto traiu em seu nome. O Herberto grita, implora com susto, que a poesia lhe ensine a cair? Até aqui planava sobre o terreno – aterrou. É um crime ter medo de morrer? Não creio que isso lhe retire um grama de dignidade. Mais: um mau Scorcese é sempre melhor que todos os bons Zefirellis deste mundo.
Uma vez perguntaram ao Picasso o que faria se fosse metido na cadeia. E ele respondeu: desenharia com a merda que fizesse. Como diz o ditado, quem não tem cão caça com gato. O importante é o acto de caçar. Quando se fez isso toda a vida, capturar a presa ou não é irrelevante, o alvo é interior e não exterior. Daí que os arqueiros zen, nos seus exercícios, visassem alvos que se situavam a três metros de distância: o fito não era demonstrar a pontaria, mas tornar una a respiração e o acto.
Ora, o que faria Picasso ao pintar com a própria merda, é o que faz Herberto ao escrever com os recursos que lhe são próprios à lucidez consentânea ao seu actual estado. A merda só dá castanho, mas  a expressão no traço não faltaria ao Picasso e isso é que seria preciso captar e não acusá-lo de uniformidade cromática... ou do aroma. 
A vida muda-nos, e aos nossos austeros princípios com ela, e ainda bem que é assim, pois, ao contrário do que julgam os jovens a vida não é uma luta perpétua entre vampiros e lobisomens, é antes um movimento que não consente os maniqueísmos, mais aparentado à dança, ou a um golfo onde confluem múltiplos braços, numa rede complexa e extensa. A vida não consente a separação entre nós e os “outros”, porque afinal é sempre nós “com” os outros; a vida não se define pela dicotomia: ou eu ou o inimigo, posto que o nosso pior inimigo habita em nós mesmos, nas nossas projecções.
O Diogo, verifico, ainda não teve o discernimento de ver que está refém do asco que quer detectar nos outros, e como o seu comportamento se inscreve numa postura de ressentimento, reactiva. Julgo que ele, que é criativo e tem evidentes qualidades, não merece a armadilha que estende a si próprio.
Interrompi o texto para ler mais uma história de As Mil e Uma Noites e descobri abismado que, ao contrário das minhas filhas, não me lembrava de todo onde ontem tínhamos ficado. Passava-se o enredo que esqueci no Palácio das Lágrimas. A minha súbita, inconcebível, falta de memória irmanou-se aí, nesse esquecimento das lágrimas, com as imprecações do Herberto, contra os que lhe exigem o silêncio e o acusam de bluff (de bluff, Diogo?) no vestíbulo duma morte que, foda-se, só a ele pertence.
Outro grande equívoco de Diogo é invocar como modelo crítico o Luís Pacheco, um dos homens mais mediocramente auto-complacentes que conheci na vida. O Luís Pacheco foi sempre labregamente parcial e muitas vezes injusto e desonesto – canalha , diria – por birra circunstancial. Era tudo o que uma inteligência pode ter de patológico quando destituída de calibragem emocional. E o que fez de bom, de realmente bom, foi pouco, muito pouco, em relação ao que podia ter feito, não fora a sombra da sua própria ruindade o ter mutilado. Porém, a hagiografia tem destas coisas: ficamos muito críticos para os outros e menos lúcidos em relação aos nossos modelos.
A intransigência de Diogo Vaz Pinto é aliás contraditória com a pulsão dialógica que existe na sua poesia – bizarro. Não creio que o poeta Diogo Vaz Pinto merecesse ter assinado este texto.
Há de facto muito a apontar e a criticar no sistema e na instituição literária mas é incerto que seja este o modo de modificar o estado das coisas, e julgo que o pretexto foi absolutamente mal escolhido.  
O Herberto foi sempre um dos nossos “homens dignos”. Isso merece respeito. Ou o decoro, se o seu passo for em falso, e nunca que o tomemos como objecto de repreensão e desdém. Nenhuma vaca é sagrada, mas a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur, acusando, imagine-se, o mar de entrar no Amazonas.
O irónico é que, inadvertidamente, Diogo serviu o último intento do velho cisne: sacudir, aos 83 anos, o manto da unanimidade.
O Herberto deve estar contentíssimo. E eu com ele.

1 comentário:

  1. Diga se o que se disser ( e louvo a sua rscrita António) o novo velho novo eterno HH é só responsável pela una dss nelhores poéticas deste país que se revolve no lixo das ideiazinhas e da inveja pura e dura. Não li o artigo a que se refere mas li mts outros e só me inscrevo aqui para escrever que viva Herberto seja em que registo for. Tenho tudo o até agora publicado e sou fã incondicional. Até do reescrito e do menos conseguido.
    Abraço deste lado do mar. E obrigada pelo post.

    Isabel mendes ferreira.

    (ou seja ninguém)

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