sábado, 19 de julho de 2014

INVENTAR A CHUVA NO MOLHADO




 Há dois modos de atacar um conto.
Uma, é mobilizar imediatamente uma escrita que nos suspende a descrença e devolve ao entusiasmo que inocula de energia a palavra, e dou dois exemplos, o primeiro com o arranque de Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, de Mathias Énard:
«A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E, juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos um povo de degredados, de condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o teu amigo turco; é um dos nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido pelas sombras e pelas suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer o empurrou para nós, para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho, talvez o amor; talvez alguma obscura ferida da alma, bem escondida nos recessos da memória.»,
o segundo é a abertura do capítulo III de As Núpcias de Cadmo e Harmonia, de Roberto Calasso, onde se lê:
«Delos era um dorso de rochedo deserto, e navegava seguinte a corrente como uma haste de asfódelo. Aí, onde nem os infortunados servos se vão esconder, nasceu Apolo. Naquele penedo perdido, as únicas que pariram antes de Leto foram as focas. Havia, porém, uma palmeira a que a mãe, sozinha, se agarrou. Enterrando os joelhos na erva escassa. E Apolo surgiu. Nesse momento, tudo, desde os alicerces, se transformou em ouro. Era também de ouro a água do rio, e as folhas de oliveira. Esse ouro deve ter-se expandido para as profundezas do mar, porque fez ancorar Delos, que, desde então, deixou de ser uma ilha errante
Mas podíamos também ter citado a frase de abertura do livro: «Na praia de Sídon, um toureio tentava imitar um gorjeio amoroso.»
O outro processo envereda pela entronização imediata do leitor no enigma. É o acontece com esta anedota que conta Tcheckov: "Um homem em Montecarlo, vai ao casino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se".
O que temos aqui? A tensão que organiza a loucura normal. Não há quem não queira saber o que se passou para o protagonista adoptar este comportamento paradoxal.
Adianta Piglia, a quem fui buscar este exemplo, que um bom conto narra sempre duas histórias, a manifesta e a oculta (achado meio freudiano mas que a minha prática confirma).
Daí que Hemingway não desacertasse quando referia que um texto flui quase automaticamente quando achamos para o seu arranque algo de verdadeiro, o que, sublinhe-se, não significa algo de lógico mas antes o que entreabre, no espaço amorfo da rotina, outra dimensão, irredutível a qualquer função ou simetria; uma duplicidade.
Sempre que consigo “ferir” o texto logo no seu arranque, ele desdobra-se diante de mim, convulso e estruturado até ao fim, sem que, a meio, me estorve qualquer cortina opaca.
O que penso ter achado hoje para uma novela curta, ao escrever:
«Inventamos o amor para que Deus não se suicide!».
O resto é para ler depois.

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